Oportunismo
e Verdade
Redação
Reformador (FEB) 16 Junho 1929
As verdades eternas, que sucessivamente são reveladas ao homem,
preciso é que elas sejam aceitas livremente. (Roustaing, v. IV, 173)
A doutrina espírita não tem dogmas no sentido etimológico
do vocábulo. Ponderada em sua concepção mais lata, tomada em suas fontes, considerada
em seus meios e julgada em seus fins, ela exprime e demonstra, praticamente, a
imanência (conceito religioso e metafísico que defende a existência de
um ser supremo e divino (ou força) dentro do mundo físico) de leis eternas, a que se prendem e se conjugam
aquisições de consciência, progressivas no tempo e no espaço.
Evolução indefinida, evolução eterna em constante e
permanente ascese para todos os planos e níveis da criação, proporcionada à inteligência
das gerações que neles se alternam e se sucedem em agregados de maior ou menor
grandeza, de mais ou menos luz, dela derivam as muitas moradas da casa do Pai -
mundos materiais, mundos fluídicos, mundos divinos com as suas humanidades e as
suas leis peculiares.
Escola Universal, cenário de absoluta plenitude, sem
fronteiras, nela aprende e colabora a criatura mais ou menos larga e conscientemente,
conforme o seu grau de adiantamento, a colher o fruto das próprias obras sem
soluções de continuidade, de vez
que a morte - e esta só
para os seres degradados da escala - não existe substancialmente e vale apenas
de variante condicional e remissiva.
Fora e acima de todo o cognoscível - mas, entretanto, sensível e compreensível através da
obra opulenta e tangível, sublime e inconfutável
(que não se pode contestar) o Criador
Supremo, a Inteligência Universal – Deus! manifesto e manifestado no foro íntimo
de cada qual, não, porém, dogmático no sentido teológico, mas, como imperativo
incoercível da Razão - centelha do mesmo Deus, no dizer unânime de todos os
altos Espíritos, que ao tema se têm reportado.
Este só conspecto (aspecto) do problema fora de molde a precaver a maioria dos nossos confrades na
sistematização da propaganda que fazem, principalmente na propaganda escrita,
destinada ao grande público leigo, observador atento e interessado em os nossos
gestos e atitudes, mais do que a muita gente se afigura e pode presumir.
Em se fecharem tantas e tantas vezes nos seus pontos de vista
personalíssimos, dão mostras, esses confrades, de não haverem compreendido que
a Revelação ou ensino dos Espíritos. Invariável nas leis que a regem de toda e
para todo a eternidade, imutável em seus princípios básicos, é, no entanto,
multiforme e cambiante nas suas aplicações e rendimentos, proporcionais de
tempo, de meios e de fins.
Não há nem pode haver, desta arte, ciclos fechados à
inteligência e ao conhecimento humanos, dando-lhes um lastro de razão, cuja síntese
representa verdades relativas, em coeficientes de uma só e única Verdade
absoluta.
E querer subordinar o proselitismo ou pretender conforma-lo
simplesmente a moldes e regras fixos, seria estulto e irrisório quanto
improdutivo e irritante, por lhe infirmar o cunho originário de universalidade
e progressividade, tão bem compreendido e exaltado por seu emérito codificador.
O fim precípuo, implícito e explícito da doutrina em
qualquer dos seus aspectos e atividades, científico, filosófico, religioso, é, incontestavelmente,
a graduação do homem, seja da humanidade, em nível moral superior, adveniente (que
advém) lógica e naturalmente da noção segura dos
seus destinos. Ele já não se considera o escravo de um planeta, o cidadão de
uma pátria, o chefe de uma família, o senhor de si mesmo senão a título precário
e transitório, porque, itinerante do Infinito e como ele eterno, a sua gleba, o
seu “habitat”, é o Universo; e a sua pátria e a sua família são os mundos e
humanidades neles escalonadas, à caminho da perfeição.
Não quer isto dizer, nem pode significar, muito menos,
que assim esclarecido e norteado por objetivos superiores, possa e deva o
crente alienar obrigações contingentes de ordem planetária e correspondentes à
tarefa equivalente aos compromissos assumidos para o tempo e fins de sua
encarnação.
Muito pelo contrário, isto lhe serve de estímulo e de fulcro
para melhor se plasmar ao meio ambiente e suportar lhe com proficuidade, todas
as vicissitudes e hostilidades.
Divulgar a doutrina, que aliás não é nossa mas dos Espíritos,
leva-la a todos os meios mundanos, esclarece-la a todas as inteligências e,
sobretudo, exemplifica-la, é mais que um dever legítimo porque é um imperativo espontâneo
da própria consciência. Mas, neste afã dignificador e dignificante, bom que
procedamos a fito (com premeditação), sem
nos distanciarmos da razão e do bom senso, que foram apanágio de AlIan Kardec
relegando ao futuro a solução de uns quantos problemas, contornando dificuldades
e, sobretudo, jamais aceitando ou negando qualquer hipótese em caráter absoluto
– ex-cathedra.
O que nos interessa e deve preocupar - e ainda assim
dentro de uma tolerância cristã bem conjugada ao relativismo de todas as coisas
- é a edificação das criaturas, maxime
pelo exemplo de nossa conduta pública ou privada.
Se, para a consecução desse objetivo nos devemos
associar, nos devemos unir e dar ao mundo uma expressão de força e de ação
coletivas, cooperando no mundo em realizações de ordem material e concreta, não
se justifica que vamos de tropel e levianamente sacrificando em discrimes (discriminações) pessoais o objetivo maior - solidariedade
substancial, confraternidade cristã.
Melhor orientado, mais certo, infalível, quem, de fato,
se poderá presumir nesta seara imensa de poucos trabalhadores – rari nantis in
gurgite vasto (poucos nadando no imenso abismo. Verso de
Virgílio (Eneida, I, 118)).
Deus, apenas, o sabe e o tempo só, o irá revelando dentro
daquela fórmula incontroversível (incontroversa) de que - só pelos frutos se conhece a árvore.
Cada homem, cada grupo, cada associação tem, a seu tempo
e no seu meio, funções próprias a se integrarem no plano geral da evolução. E
cada qual pode e deve realizar a sua tarefa, sem atrituras (atritos) nem violências, desde que não se afaste na teoria, e
muito menos na prática, do critério evangélico, este, sim, posto de princípio e
sancionado pelos Espíritos superiores, com caráter de universalidade.
As revelações particularistas, as concepções bizarras, as
teorias ousadas: quase sempre lançadas do espaço em penhor de confusão para
lisonjear vaidades pessoais, constituem o maior escolho do proselitismo
espírita, não raro degenerando em escolas de fanatismo e separatividade,
destinadas a vegetarem circundadas de si mesmas, para se extinguirem com a
pessoa dos seus fundadores e propugnadores, sem outra repercussão e eficiência
além e afora daquele escândalo necessário.
Estes perigos e desvios, que são ao mesmo tempo a pedra
de toque do orgulho humano, precisam ser meditados e combatidos de um ponto de
vista superior, com isenção de ânimo e com firmeza.
Já veio o tempo em o qual as verdades devem ser ditas de
cima dos telhados, para que a vejam e ouçam os que tiverem olhos de ver e ouvidos de ouvir.
Se os que pretendemos colher para espalhar, a boa
semente, não temos o critério das oportunidades na escolha dos eirados (terraços) e das estações; se não sabemos dominar os nossos
ímpetos e paixões, sem embargo de melhores votos intencionais, é claro que nos falece autoridade para
falar ao mundo em nome da verdade.
Nem a Verdade precisa, tão pouco, de violências para se
impor, se é que ela se pode impor e não representa, primacialmente, para quem a
recebe, um toque de misericórdia traduzido, para nós, em voluntária aquiescência
da razão.
A hora que transcorre, de luta e ameaças, convida os
crentes de boa vontade, todos os que se julgam com parcela de responsabilidade
definida na laboração do ideal comum a meditarem a doutrina, para reprimirem
estas e atitudes porventura nobres e bem intencionados, mas perniciosos como
exemplo de arritmia disciplinar, sem a qual toda a edificação assenta na areia
das conveniências e convenções temporárias.
Sem dogmas nem cânones, livres, com a liberdade de consciência
que nos permite o conhecimento do Evangelho em espírito e verdade, não nos
esqueçamos de que a humildade não está no calar os erros por amor ou por temor
dos homens, mas em saber e poder corrigi-los para
cura-los.
E mais, que essa cura não se alcança com palavras, sim
com sentimentos, desses que valem por obras de amor.
Se quiserdes ser reconhecidos como meus discípulos, disse o Divino Mestre amai-vos uns aos outros.
Mas a verdade é que por amor d'Ele, vivemos aferrados aos
nossos prismas, quais faríseos de antanho, a digladiar-nos em contendas e
paralogismos (raciocínios falsos involuntários) estéreis incapacitados até de uma discreta tolerância mutua.
Que os Apóstolos divergiam muitas vezes entre si,
sabemo-lo; mas estas divergências não tiveram a força de prejudicar a causa no
que ela continha de substancial para o seu tempo e para o seu meio.
Imitemo-la, pois, sabendo colocar acima dos nossos pontos
de vista a unidade da causa, que é uma e única, a legitimar-se na demonstração
de um só rebanho com um só pastor.
E convençamo-nos de uma vez por todas que, sejam quais
forem as latitudes da seara, em lavratura de sinceridade, a qualquer tempo, digno é o trabalhador de seu salário.
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