domingo, 19 de abril de 2020

Oportunismo e verdade



Oportunismo e Verdade
Redação 
Reformador (FEB) 16 Junho 1929

            As verdades eternas, que sucessivamente são reveladas ao homem, preciso é que elas sejam aceitas livremente. (Roustaing, v. IV, 173)

            A doutrina espírita não tem dogmas no sentido etimológico do vocábulo. Ponderada em sua concepção mais lata, tomada em suas fontes, considerada em seus meios e julgada em seus fins, ela exprime e demonstra, praticamente, a imanência (conceito religioso e metafísico que defende a existência de um ser supremo e divino (ou força) dentro do mundo físico) de leis eternas, a que se prendem e se conjugam aquisições de consciência, progressivas no tempo e no espaço.

            Evolução indefinida, evolução eterna em constante e permanente ascese para todos os planos e níveis da criação, proporcionada à inteligência das gerações que neles se alternam e se sucedem em agregados de maior ou menor grandeza, de mais ou menos luz, dela derivam as muitas moradas da casa do Pai - mundos materiais, mundos fluídicos, mundos divinos com as suas humanidades e as suas leis peculiares.

            Escola Universal, cenário de absoluta plenitude, sem fronteiras, nela aprende e colabora a criatura mais ou menos larga e conscientemente, conforme o seu grau de adiantamento, a colher o fruto das próprias obras sem soluções de continuidade, de vez
que a morte - e esta só para os seres degradados da escala - não existe substancialmente e vale apenas de variante condicional e remissiva.

            Fora e acima de todo o cognoscível - mas, entretanto, sensível e compreensível através da obra opulenta e tangível, sublime e inconfutável (que não se pode contestar) o Criador Supremo, a Inteligência Universal – Deus! manifesto e manifestado no foro íntimo de cada qual, não, porém, dogmático no sentido teológico, mas, como imperativo incoercível da Razão - centelha do mesmo Deus, no dizer unânime de todos os altos Espíritos, que ao tema se têm reportado.

            Este só conspecto (aspecto) do problema fora de molde a precaver a maioria dos nossos confrades na sistematização da propaganda que fazem, principalmente na propaganda escrita, destinada ao grande público leigo, observador atento e interessado em os nossos gestos e atitudes, mais do que a muita gente se afigura e pode presumir.

            Em se fecharem tantas e tantas vezes nos seus pontos de vista personalíssimos, dão mostras, esses confrades, de não haverem compreendido que a Revelação ou ensino dos Espíritos. Invariável nas leis que a regem de toda e para todo a eternidade, imutável em seus princípios básicos, é, no entanto, multiforme e cambiante nas suas aplicações e rendimentos, proporcionais de tempo, de meios e de fins.

            Não há nem pode haver, desta arte, ciclos fechados à inteligência e ao conhecimento humanos, dando-lhes um lastro de razão, cuja síntese representa verdades relativas, em coeficientes de uma só e única Verdade absoluta.

            E querer subordinar o proselitismo ou pretender conforma-lo simplesmente a moldes e regras fixos, seria estulto e irrisório quanto improdutivo e irritante, por lhe infirmar o cunho originário de universalidade e progressividade, tão bem compreendido e exaltado por seu emérito codificador.

            O fim precípuo, implícito e explícito da doutrina em qualquer dos seus aspectos e atividades, científico, filosófico, religioso, é, incontestavelmente, a graduação do homem, seja da humanidade, em nível moral superior, adveniente (que advém) lógica e naturalmente da noção segura dos seus destinos. Ele já não se considera o escravo de um planeta, o cidadão de uma pátria, o chefe de uma família, o senhor de si mesmo senão a título precário e transitório, porque, itinerante do Infinito e como ele eterno, a sua gleba, o seu “habitat”, é o Universo; e a sua pátria e a sua família são os mundos e humanidades neles escalonadas, à caminho da perfeição.

            Não quer isto dizer, nem pode significar, muito menos, que assim esclarecido e norteado por objetivos superiores, possa e deva o crente alienar obrigações contingentes de ordem planetária e correspondentes à tarefa equivalente aos compromissos assumidos para o tempo e fins de sua encarnação.

            Muito pelo contrário, isto lhe serve de estímulo e de fulcro para melhor se plasmar ao meio ambiente e suportar lhe com proficuidade, todas as vicissitudes e hostilidades.

            Divulgar a doutrina, que aliás não é nossa mas dos Espíritos, leva-la a todos os meios mundanos, esclarece-la a todas as inteligências e, sobretudo, exemplifica-la, é mais que um dever legítimo porque é um imperativo espontâneo da própria consciência. Mas, neste afã dignificador e dignificante, bom que procedamos a fito (com premeditação), sem nos distanciarmos da razão e do bom senso, que foram apanágio de AlIan Kardec relegando ao futuro a solução de uns quantos problemas, contornando dificuldades e, sobretudo, jamais aceitando ou negando qualquer hipótese em caráter absoluto – ex-cathedra.

            O que nos interessa e deve preocupar - e ainda assim dentro de uma tolerância cristã bem conjugada ao relativismo de todas as coisas - é a edificação das criaturas, maxime pelo exemplo de nossa conduta pública ou privada.

            Se, para a consecução desse objetivo nos devemos associar, nos devemos unir e dar ao mundo uma expressão de força e de ação coletivas, cooperando no mundo em realizações de ordem material e concreta, não se justifica que vamos de tropel e levianamente sacrificando em discrimes (discriminações) pessoais o objetivo maior - solidariedade substancial, confraternidade cristã.

            Melhor orientado, mais certo, infalível, quem, de fato, se poderá presumir nesta seara imensa de poucos trabalhadores – rari nantis in gurgite vasto (poucos nadando no imenso abismo. Verso de Virgílio (Eneida, I, 118)).

            Deus, apenas, o sabe e o tempo só, o irá revelando dentro daquela fórmula incontroversível (incontroversa) de que - só pelos frutos se conhece a árvore.

            Cada homem, cada grupo, cada associação tem, a seu tempo e no seu meio, funções próprias a se integrarem no plano geral da evolução. E cada qual pode e deve realizar a sua tarefa, sem atrituras (atritos) nem violências, desde que não se afaste na teoria, e muito menos na prática, do critério evangélico, este, sim, posto de princípio e sancionado pelos Espíritos superiores, com caráter de universalidade.

            As revelações particularistas, as concepções bizarras, as teorias ousadas: quase sempre lançadas do espaço em penhor de confusão para lisonjear vaidades pessoais, constituem o maior escolho do proselitismo espírita, não raro degenerando em escolas de fanatismo e separatividade, destinadas a vegetarem circundadas de si mesmas, para se extinguirem com a pessoa dos seus fundadores e propugnadores, sem outra repercussão e eficiência além e afora daquele escândalo necessário.

            Estes perigos e desvios, que são ao mesmo tempo a pedra de toque do orgulho humano, precisam ser meditados e combatidos de um ponto de vista superior, com isenção de ânimo e com firmeza.

            Já veio o tempo em o qual as verdades devem ser ditas de cima dos telhados, para que a vejam e ouçam os que tiverem olhos de ver e ouvidos de ouvir.

            Se os que pretendemos colher para espalhar, a boa semente, não temos o critério das oportunidades na escolha dos eirados (terraços) e das estações; se não sabemos dominar os nossos ímpetos e paixões, sem embargo de melhores votos intencionais, é claro que nos falece autoridade para falar ao mundo em nome da verdade.

            Nem a Verdade precisa, tão pouco, de violências para se impor, se é que ela se pode impor e não representa, primacialmente, para quem a recebe, um toque de misericórdia traduzido, para nós, em voluntária aquiescência da razão.

            A hora que transcorre, de luta e ameaças, convida os crentes de boa vontade, todos os que se julgam com parcela de responsabilidade definida na laboração do ideal comum a meditarem a doutrina, para reprimirem estas e atitudes porventura nobres e bem intencionados, mas perniciosos como exemplo de arritmia disciplinar, sem a qual toda a edificação assenta na areia das conveniências e convenções temporárias.

            Sem dogmas nem cânones, livres, com a liberdade de consciência que nos permite o conhecimento do Evangelho em espírito e verdade, não nos esqueçamos de que a humildade não está no calar os erros por amor ou por temor dos homens, mas em saber e poder corrigi-los para cura-los.

            E mais, que essa cura não se alcança com palavras, sim com sentimentos, desses que valem por obras de amor.

            Se quiserdes ser reconhecidos como meus discípulos, disse o Divino Mestre amai-vos uns aos outros.

            Mas a verdade é que por amor d'Ele, vivemos aferrados aos nossos prismas, quais faríseos de antanho, a digladiar-nos em contendas e paralogismos (raciocínios falsos involuntários) estéreis incapacitados até de uma discreta tolerância mutua.

            Que os Apóstolos divergiam muitas vezes entre si, sabemo-lo; mas estas divergências não tiveram a força de prejudicar a causa no que ela continha de substancial para o seu tempo e para o seu meio.

            Imitemo-la, pois, sabendo colocar acima dos nossos pontos de vista a unidade da causa, que é uma e única, a legitimar-se na demonstração de um só rebanho com um só pastor.         

            E convençamo-nos de uma vez por todas que, sejam quais forem as latitudes da seara, em lavratura de sinceridade, a qualquer tempo, digno é o trabalhador de seu salário.


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