O Pavão
de Penas Brancas
Faz muito tempo, na velha Constantinopla,
vivia um sultão poderosíssimo, despótico e presunçoso. Chamava-se
Salim-al-Soliman e se dizia descendente do grande e famoso califa de Bagdá,
Harun-al-Raschid, cuja sombra augusta conserve Alá bem guardada nos jardins
floridos do paraíso, entre as mais lindas e ardentes huris...
*
Um dia, à hora vespertina, quando o muezim convocava os fiéis para o
cumprimento de seus deveres religiosos, Salim-al-Soliman, que discutia com
alguns sábios certos pontos exegéticos do Alcorão, mandou chamar a palácio o mufti. Este, entregue aos exercícios
espirituais, não atendeu imediatamente à ordem, a fim de não interromper a
prece a Alá. Sabedor disso, o sultão determinou que o mufti viesse à força, ainda que preciso fosse perturbar a oração. E assim foi feito. Dentro em pouco, diante do irascível Salim-al-Soliman, se
achavam os sábios, o mufti, o imã da mesquita de Omar-Abud e o grão-vizir
Arbzura. Pretendia o sultão solucionar problemas que escapavam à sua
inteligência apoucada e escassíssima cultura. Corajosamente, o mufti lhe fez ver a conveniência de
estudar melhor os
suras do Alcorão, sem o que não
penetraria a essência da doutrina deixada por Maomé, que Alá tenha sempre em
seus braços. Colérico, Salim-al-Soliman ordenou que o mufti, o imã e os sábios fossem postos a ferros, nas masmorras do
palácio. Isto feito, baixou um édito, modificando os versículos do Livro
Sagrado do Profeta.
"- Sou mais sábio que todos os sábios,
maior que Maomé e, portanto, ninguém está mais autorizado do que eu a
compreender as Palavras Santas de Alá!"
*
O sacrilégio foi logo de todos
conhecido. Os fiéis estavam consternados, mas temiam a truculência de
Salim-al-Soliman, que achava a ação mais simples e natural deste mundo cortar
cabeças. As cimitarras tinham sempre muito que fazer, durante os momentos de
cólera do tirano... Apareceu, porém, na almadena
da mesquita, de Omar-Abud, o khatib
Khaled-Bram, que até hoje é venerado onde quer que haja um muçulmano.
Destemerosamente, profligou
os atos de Salim, levando aos mais recuados pontos de Constantinopla a
eloquência de sua palavra de fogo. Não tardou que o déspota tomasse
conhecimento da ocorrência, por intermédio do intrigante vizir Arbzura.
Khaled-Bram foi preso e arrastado à presença do sultão. Ao penetrar os luxuosos
salões do palácio, o altivo Khaled fez a tradicional saudação muçulmana, tocando
com os dedos da mão direita a testa, a boca e o peito.
E disse:
"- Mismillah-er-rahman-er-rahim!” - acrescentando em
seguida: "A graça de Alá esteja convosco,
poderoso senhor, mas que não me abandone ..."
Embora estranhando estas últimas palavras
do pregador da mesquita de Omar-Abud, o monarca admirou-lhe o atrevimento.
Logo, porém, interpelou-o com severidade sobre o que dissera aos fiéis. Sem se
perturbar o mais mínimo, Khaled-Bram respondeu com altiva serenidade:
"- Augusto soberano! Acima de
todos os reis da Terra, dos sultões mais fortes, dos príncipes mais belicosos,
acha-se o santo nome de Alá! Ele é mais belo, mais rico, mais forte, mais
sábio, mais poderoso do que todos os monarcas juntos, porque Ele é senhor da
Terra e do Céu, senhor do nosso Espírito e do nosso corpo, senhor dos nossos
mais íntimos pensamentos. Se hoje, grande Salim, dispuserdes que um golpe de alfanje faça rolar a cabeça deste
misérrimo khatib, agradecerei,
contente, o premio de Alá e louvarei toda a beleza do Alcorão, porque não há
felicidade maior para o crente do que o sacrifício por Aquele que tudo é!"
*
Como que magnetizado, o sultão ouviu
em silêncio as palavras audazes de Khaled-Abud.
E o pregador continuou:
"- Salim-al-Soliman,
descendente ilustre do nobre Harun-al-Raschid, que foi modelo de bondade e
sabedoria: podeis dispor do meu corpo, mas não penetrareis jamais o fundo dos
meus pensamentos, nem conseguireis sequer deter o voo de minha alma. Assim como ninguém sabe ao certo quando a Santa Kaaba caiu sobre o deserto árabe,
assim também vós, grande monarca, não sabeis a sorte que vos espera... Do mesmo
modo que Alá permitiu que Maomé, com os seus trezentos fiéis, derrotasse
novecentos inimigos na batalha de Bedr, concederá que a minha insignificância
triunfe da vossa suprema autoridade, que só pode ir até à minha morte. Não irá
além disso..."
Antes que Salim pudesse articular
qualquer resposta, o khatib
prosseguiu, no mesmo tom impressionante:
- "Está escrito que a palavra
de Alá será integralmente cumprida, nem que o mundo seja subvertido.
O que fizestes, encarcerando o mufti
e o imã, perturbando o serviço
religioso, foi um sacrilégio, senhor; foi um desrespeito ao Sábio dos Sábios;
foi uma afronta a Alá. Deveríeis prosternar-vos diante da Santa Kaaba, grande sultão Salim- al-Soliman, por não ter vindo dos
céus um raio que vos fulminasse. Foi mudado o kiblah até que sejam desagravados o mufti e o imã. Sois
feroz, não apenas porque o vosso coração contenha fel vivo, mas também porque a
vossa vaidade é imensa. Quereis ser tão grande quanto o nobre Harun-al-Raschid,
mas, perto do querido e chorado califa,
que os perfumes suaves do paraíso envolvem por vontade de Alá, não sois sequer
uma sombra... Cortai a minha cabeça, senhor, se quiserdes; porém, esta é a
verdade. Estrangulai a vaidade que vos corrói a alma, que vos transforma num
verdugo do povo,
que vos amesquinha à condição dum infiel. Matai-me, torturai-me, se vos apraz,
senhor; mas lembrai-vos de combater sem tréguas a presunção que vos cega e enlouquece.
Não há senão um Deus, que é Alá; e Maomé é seu Profeta!"
*
De súbito, o sultão estremeceu,
ficou rubro, os olhos faiscantes de ira. E exclamou com estrépito, cerrando os
punhos: "Imundo cão vadio! Como ousas insultar-me?! Eu, o mais sábio e
mais poderoso dos monarcas, não sei como consenti ouvir dos teus pútridos
lábios tantas inconveniências! Vizir
Arbzura! Quero que este miserável khatib
seja açoitado em praça
pública, até que o sangue jorre de seu corpo nojento, Depois, mande besuntar-lhe
as chagas com mel grosso, para que os tavões se deliciem com o seu sofrimento,
Por fim, decepem-lhe a cabeça com um golpe seguro de cimitarra! Já! Fora daqui
com esse cão vadio!"
A uma ordem do vizir, os janíseros se dispunham a arrastar o khatib
Khaled-Bram para a tortura, quando este, erguendo os braços, fê-Ios estacar involuntariamente.
Dirigindo-se pela última vez ao sultão, o pregador apostrofou-o com veemência:
"- Poderoso, poderosíssimo
Salim-al-Soliman, descendente do boníssimo e sapientíssimo Harun-al-Raschid,
cujo nome vive embalsamado na memória de todos os muçulmanos: Podeis castigar
como vos aprouver minha desditosa carcaça, Alá está comigo, eu o sinto, e
minh'alma será perfumada pelas flores do paraíso, onde Maomé me aguarda de
braços abertos. Irei feliz, Salim-al-Soliman, porque a minha consciência é
limpa como a leira dos Livros Sagrados do Profeta. Destruí este vaso gasto
pelos anos, porque o meu Espírito irá para os altos páramos em que Alá tem seus
jardins de ouro e pedras preciosas. Ouvireis duas vezes o cantar o Ababillo, o pássaro sagrado, no momento
exato da minha partida da Terra. Depois do segundo canto do Ababillo, um grande acontecimento
recordará minha morte. Começo a ouvir as vozes dos eleitos de Makoraba e elas me anunciam que Alá
glorificará o meu sacrifício, dando ao homem mais vil, mais estúpido e vaidoso
de toda a Terra a forma
dum
pavão de penas brancas e bico dourado!.. Alá se compadeça do vosso destino,
Salim-al-Soliman!"
*
E tudo sucedeu conforme a predição
de Khaled-Abram. Após o segundo canto do
pássaro sagrado, o sultão desapareceu misteriosamente do palácio e até hoje
ninguém tem notícias dele. Em compensação, foi visto a percorrer os salões
monumentais um lindo pavão de penas brancas... Quando os muçulmanos ouvem esta lenda,
seus olhos brilham e seus corações
pulsam mais fortemente, porque todos se lembram do khatib de Omar-Abud, que Alá guarde em seu seio..."
José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Agosto 1948
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