1b
“À Luz
da Razão”
por Fran Muniz
Pap. Venus – Henrique Velho & C. – Rua Larga, 13 -
Rio
1924
Desgarrado
que fui, voluntariamente, deste rebanho cujo pastor lança uma torrente de
maldições sobre quem procura esclarecer a inteligência, era preciso abeirar-me
desse sentimento dulcificante que nos fala à alma e indispensável a todo o
homem criterioso - a Fé raciocinada.
Já
então, por algumas vezes tinha ouvido exaltarem as excelências do “Positivismo”.
Uma das principais filosofias, à cuja sombra, dizia-se, agasalhava-se a maioria
dos homens eminentes. Resolvi, pois, embora com alguma relutância, familiarizar-me
com essa outra Moral, não na qualidade de “eminente” mas por necessitar de uma
crença sem cavilações nem sofismas.
Quem
sabe? Dizia eu, talvez eles tenham razão.
No
pórtico desse novo templo lia-se esta bela inscrição:
“O amor por princípio, a ordem por base e o
progresso por fim.”
E
vinha a legenda enriquecida de mais atrativos:
“Viver para outrem. Reviver em outrem”.
Maravilhoso!
Amor,
ordem e progresso, pensei. São três elementos componentes da Grande Lei; não
pode haver objetivo mais desejável, mais justo, mais racional!
Que
encantadora doutrina deve ser a desta filosofia! Estudemo-la:
“A inteligência do homem é uma propriedade
da matéria. O homem não é nada antes. Não é nada depois da vida corporal”.
E
outra vez a dúvida, minha atroz perseguidora se levanta a interpelar:
Oh
I Então não temos alma? Para que, pois, necessitará o homem de amor e progresso
se amanhã tudo desaparecerá para sempre com o corpo nos insondáveis e misteriosos
abismos do Nada?
E
assim sendo, parece lógico que o homem durante a vida só tem que gozar os bens
materiais, cada um a seu modo, o melhor que puder, sem se sacrificar em
beneficio dos seus semelhantes.
Portanto,
para que viver para outrem? Mas, ensina-nos ainda a experiência do mundo: Os gozos
não estão ao alcance da nossa mão. E também se dá o caso inexplicável de quem
deserte a vida saturada de prazeres.
Assim
considerando, o estímulo de “reviver em outrem” não será aumentar o número dos
torturados da existência?
É
então isto que os “eminentes” chamam - amor por principio? E de onde lhes virá também
a ordem com tal ambição e o progresso com semelhante Egoísmo? Todavia, prossigamos:
“A ciência já aposentou o Pai da Natureza
agradecendo-lhe os serviços provisórios de que mais não precisa.” Que? Então, também não há Deus? E essa!
Uma
Ciência sem Deus! Como pode o homem - esse audacioso micróbio – nega-lo, excluí-lo
de suas filosofias? É verdade- que eles são homens de “talento”... Deve ser por
isso, talvez, que eu os não compreenda. Contudo, prefiro tal ignorância a
nulificar todos os meus esforços e obter como laurel da minha abnegação estas três
“preciosidades” que, com mais justiça, deviam substituir o seu lema:
“Pretensão
por princípio, egoísmo por base e nulidade por fim.”
E,
chegado a este ponto, fiz as minhas despedidas do “Positivismo”, cedendo o meu
lugar a alguém mais fácil de contentar.
Insatisfeito,
portanto, e sentindo a necessidade da fé, como do ar que respiramos. pus me
novamente em campo em demanda de um sistema doutrinário que me apresentasse
solidez de princípios e fundo de verdade.
Recomecei
a experiência pelo “Panteísmo”, não sem algum embaraço para discernir, dentre
tantas a melhor de suas múltiplas ramificações; isso, porém, me não impediu de
estudar lhe o fundo conjuntivo:
“A
alma é independente da matéria e está espalhada por todo o universo. Logo que o
homem nasce absorve uma certa porção de alma e com ela, atravessa toda a existência.
Pela morte do corpo. recolhe-se a alma à massa comum do universo.”
Assim
uma espécie de “positivismo” com a alma de permeio. Tiremos, pois, as
conclusões:
De
modo que um pobre crente nasce, cresce, instrui-se, progride, supondo, enfim receber a recompensa dos seus esforços e
num belo dia, vem a morte, para atirar-lhe com a alma à tal «massa».
E
está tudo acabado.
Mas,
continuemos:
“Deus
é, em suma, tudo quanto existe. Não há coisa alguma fora de Deus”.
Excelente!
De sorte que, pelo menos, cada um dos seus sectários considera-se um fragmento
de Deus. Se tal teoria não encerrasse uma simples pretensão do orgulho humano,
que honra para os “panteístas”!
Não
gostei disso. E buscando nova alforria vaguei algum tempo, sempre conjecturando
sobre o aspecto e qualidade da tal “massa comum do universo”, misto de tantas
inteligências diversificadas, quando me ocorreu a existência de um outro sistema
religioso, citado vagamente em alguns dos livros que haviam passado sob meus
olhos. Quero referir- me ao “Deísmo”. Sem mais detença, pois, a essa nova fonte
encaminhei a minha sede.
Composta
de duas ordens. “Independentes” e “Providenciais”, iniciei a minha análise na filosofia
dos primeiros. Eis o que aprendi:
“Existe
Deus com todos os seus atributos como criador, dispondo as suas leis gerais que
regem o universo; essas leis, porém, funcionam por si sós, sem que Ele se
preocupe mais com eles”.
Quer
dizer que as criaturas fazem tudo quanto querem sem que Deus com isso se
incomode. De modo que nada temos a pedir a Deus e menos ainda a lhe agradecer.
Um menino malcriado, ou um positivista sapiente
seria capaz de outro tanto dispensando a proteção do Criador ou aposentando o
Pai da Natureza o que equivale a mesma coisa.
E
continua a doutrina:
“Deus
é muito superior para descer até suas criaturas.”
É
evidente, pois, que por aqui também temos um Deus orgulhoso e negligente que
abandona as suas obras ao bel-prazer dos "deístas independentes” e por consequência
vamos reincidir nos princípios do “Materialismo” visto que existir um Deus
nulo, ou negar se lhe a existência é o mesmo.
Desanimado
por me não convir também esta seita, dei mais um passo e penetrei o pórtico da
ordem dos “providenciais”. A súmula de sua doutrina demonstrou-me ser ela uma
variante do catolicismo com pequenas modificações. Lá havia igualmente o
inferno e o purgatório. Somente difere em não admitir o culto externo nem os
dogmas da igreja católica. Divide-se, por sua vez, em várias
seitas que são: “Batistas”, “Anabatistas”, “Metodistas”, “Presbiterianos” etc.
cada qual pretendendo ser “a única preferida.”
Seus
prosélitos são submetidos a um batismo especial e exótico. Conduzindo a bíblia
por toda a parte, leem-na a todo o instante e vivem a discutir o seu texto. De
onde se pode depreender que enquanto a discutem não estão ainda bem senhores da
sua verdadeira interpretação. Adotam a santa ceia, simbolizada no pão e no
vinho; cantam infernais e monótonos salmos e, apesar de toda essa beatitude, odeiam
os refratários à sua seita.
Em resultado da análise e concluindo pela ineficácia
de tal doutrina, vi-me na contingência de renunciar a esta seita sem o que
nenhuma vantagem me adviria de ter desertado a igreja romana.
Dir-me-ão,
talvez, que sou difícil de contentar.
Não
há dúvida; mas quem tem ânsia de luz intensa não se satisfaz com a chama da
candeia. Demais, não estava ainda tudo perdido e tratei de procurar o abrigo do
Politeísmo, outra filosofia que, dizia-se, aninhava em seu seio os mais belos
raciocínios, eximidos de falsos
preconceitos.
É
verdade que essa ideia de muitos Deuses não me era lá muito fagueira; a prova é
que me não agradara o Deus múltiplo e ao mesmo tempo fracionável, do catolicismo,
que me fazia confundi-lo com as alternativas da razão direta ou inversa da Regra de Proporção.
De antemão sabia que duas opiniões nunca serão
perfeitamente idênticas ou como, se diz vulgarmente – “cada cabeça cada
sentença”. Aqui, porém, tratando-se de deuses, bem podia falhar a observação humana,
pois era de esperar que entre eles nada
fosse impossível... Além disso, se é verdade que, ”o que é de mais não
prejudica” também o será que m. olhos
vêm mais do que dois.
Demais,
provado que o universo é infinito, mesmo que existisse um exército de deuses,
cada qual teria bem em que se ocupar, talvez mesmo sem desperdício de tempo.
Mas,
apesar de toda a lógica, não concordei com tal teoria. A razão e o bom senso
manifestaram desde logo a sua repulsa. Agora seria preciso admitir que o meu
sentimento cultual fosse também bastante capaz de sofrer a divisibilidade e não
sei por quantos ou quais fatores. Ficava-me até a dúvida de não ser um múltiplo
perfeito, vindo a deixar resto... de sentimento.
Extenuado
com as minhas baldas e fatigantes tentativas em busca de convicções filosóficas
ou religiosas, tornei-me livre pensador, o que equivalia a um “tudo-nada” ou simplesmente um “coisa-nenhuma” e assim me conservei por
longo tempo.
Nessa
interinidade de situação, em que tudo me servia e nada me agradava, por um
instante desejei voltar ao catolicismo, atraído pela ostentação e redundâncias
de suas práticas, dizendo a mim mesmo: Afinal
é a única religião que não obriga a pensar. A vida corre divertida entre música,
badalar de sinos, leilões de prendas, deslumbrantes fogos artificiais, procissões,
ladainhas, missas campais e do galo. Oh!
as missas do galo! Haverá coisa mais interessante, mais atrativa, mais
deliciosa do que uma missa do galo?
Demais,
quando qualquer pecadilho esteja a remorder-nos a consciência, aí temos o bom
cura com o perdão fácil e imediato.
Mas,
nesses momentos de pueris divagações, sentia por vezes que os reclamos da razão
eram mais tenazes e me advertiam interiormente; “- Insensato, é preferível descrer em Deus, a rebaixa-lo”.
Desisti,
então, desse tentame, mas daí a pouco, desorientado e sem rumo para me conduzir
aos paramos da fé, desejava converter-me, novamente, em “positivista”. Depois
imaginava substituir este por um outro pensamento e assim vivia eu, deixando o
que era para volver ao que havia sido antes; no dia seguinte abandonando o que
estava sendo para ser outra vez o que havia deixado de ser na véspera, e, assim,
sucessivamente.
Em
suma, nesta insípida situação de dubiedades, debatia-me sem fé, sem norte e sem
esperança.
Um
dia lastimando-me a um amigo sobre tão profundo desânimo a que fora reduzido
pela incongruência das religiões, disse-me ele:
-
Queres um conselho? Lê o espiritismo.
Hein?... Não, meu velho, falta-me o tempo.
-
Ora, para ler sempre se dispõe de tempo, por muito escasso que seja, depende
apenas de boa vontade.
-
Não é ao tempo para ler que me refiro, é ao tempo para ficar maluco.
-
Não digas isso! Uma tal resposta nunca deve ser externada sem a prévia noção da
matéria que se discute. Olha o que disse Victor Hugo:
“- Substituir o exame pela negação ou condenação
é muito cômodo; mas hão de convir que é pouco sério.
“- O dever de todo homem é aprofundar os fenômenos
que se oferecem. A própria ciência está muito atrasada para rir-se do que ela
não conhece.
“- O que ri do que não examinou, mormente tendo
fatos para analisar, está muito longe de ser um homem de saber e muito perto de
ser um mentecapto”.
-
Ora, disse eu. Victor Hugo era um alucinado que também acreditava em
espiritismo.
- Não fales assim. Confessas ter estudado
tantas filosofias; estuda mais esta que é, aliás, a ciência das ciências
prestes a superar todas as outras edificadas sobre opiniões humanas e farás
depois o juízo que te merecer.
-
Não, meu amigo, não estou disposto a perder mais tempo em busca da fé; estou
certo de não a encontrar.
-
É porque ainda nenhuma se te apresentou consentânea com o bom senso. Presta atenção
ao que disse Allan Kardec:
“- A fé inabalável é somente aquela que pode
encarar a razão face a face em todas as épocas da humanidade”.
-
É razoável, não há dúvida; mas esqueces
que esse Allan Kardec foi o chefe dos alucinados, a quem as suas vítimas,
inclusive tu, devem agradecer, limpando as mãos à parede.
Enganas-te;
Allan Kardec foi um predestinado a quem a “Providência” confiou a missão sublime
de soerguer as almas do infecto lodaçal da ignorância. Por isso, insisto em que
leias o Espiritismo.
-
Qual, meu velho, não posso tolerar, de forma alguma esse tal espiritismo, ainda
que muito acate os teus sentimentos.
-
No entanto vais tolerando os curativos espirituais de que fazes uso.
-
Isso é diferente: uma vez que eles produzam efeito, pouco importa a procedência
que lhe queiras dar.
-
Contudo, és testemunha de que um doente grave da tua própria família, só
conseguiu restabelecer-se com os medicamentos de uma receita espírita, segundo
tu próprio o afirmaste.
Afirmei
e afirmarei sempre. Atribuo, porém, isso à simples mudança de terapêutica - da alopatia
para homeopatia.
-
Nesse caso, a que atribuis também o diagnóstico exato que leste na própria
receita?
-
Coincidência.
-
E os outros diagnósticos?
-
Outras coincidências.
-
Sinto imenso ouvir-te falar deste modo, sem teres o menor conhecimento de
causa. Demais, é sempre assim; quando se quer encontrar uma explicação fácil
para um fenômeno como este, que a ciência materialista não explica, lá vem a
tal expressão “acaso”, “coincidência”. Oportunamente, porém, levar-te-ei
a uma sessão espirita onde, diante das comunicações espirituais, tenho como
certo que qualquer daqueles termos não basta para definir o que vires.
-
Esta agora é melhor! Então também acreditas que os espíritos venham às sessões?
-
Perfeitamente. Tenho disso provas.
-
Explica-me como se dá esse... absurdo.
-
Não é absurdo, é a realidade. Eles se comunicam por meio de certas pessoas que
se chamam “médiuns”.
-
E tu também és “médium”.
-
Felizmente, devo a Deus essa graça!
-
Ah I Que belo há de ser! Parece-me que já te estou a ver em plena sala. Mãos
nas ilhargas, cabeça inclinada para trás, pé direito à frente numa cômica e
grotesca posição mefistofélica, gritando com voz autoritária: Ó Deus, manda-me
cá o espírito de minha avó I
-
Não blasfemes, nem antecipes juízo sobre fatos que só tem de irrisória a
irrisão do teu próprio julgamento.
-
Qual espírito, homem! O que se comunica com vocês, é o Diabo!
-
Repetes, nem mais nem menos, a opinião insensata dos doutores da igreja romana.
de quem não deves usurpar esse direito de propriedade. O Espiritismo esclarece,
ilumina, rasga o véu da hipocrisia e isto não lhes convém. É preciso esconde-lo,
nega-lo, aponta-lo aos tímidos como artimanha diabólica, porque, ai deles!
quando a humanidade abrir os olhos.
-
E talvez eles tenham razão. O Diabo é ardiloso e com a sagacidade e o transformismo
de que dispõe pode perfeitamente iludir os que se consideram atilados.
-
Surpreende-me deveras agasalhares também a existência desse diabo mitológico.
Ouve-me: Se visses numa sessão o espírito de uma mãe cujo filho presente,
convencidíssimo, a reconhece-se. O que dizias?
-
Que era o diabo, transformado em mãe.
-
Meu caro, hás de permitir que duvide da sinceridade dessa resposta. Se essa mãe
fosse a tua havia de merecer-te mais respeito para que não a confundisses com o
diabo. Não perderei, pois, a esperança de te ver dobrar à evidência. É uma
questão de tempo, apenas.
-
Essa esperança te trairá, meu amigo, porque jamais me convencerás desse
espiritismo que tanto prejudica a ti e aos outros.
-
Apesar disso, porém, afirmo-te que, dentro de cinco anos, ver-te-ei um espírita
professo. Neste ponto, não me pude eximir de uma estridente e gostosa
gargalhada.
-
Podes rir a vontade, disse-me ele, mas tu mesmo estarás compenetrado de que não
é este o melhor argumento dos que tem lançado mão o teu ceticismo. A propósito,
ainda repetirei aqui esta verdade de Eugenie Benemére:
“Como todo mundo, eu também ri do
Espiritismo, mas o que pensava ser o riso de Voltaire, não era senão o riso do
idiota, muito mais comum que o primeiro.”
-
Olha, meu velho, não falemos mais nisso, nem me queiras mal, por não me ser
possível cooperar na realidade de tuas profecias. Toma lá mais um abraço de
amigo... e adeus.
Ao
afastar-me, o meu amigo repetiu, mostrando-me a mão direita em leque:
-
Olha, não te esqueças... Cinco anos!
E
separando-me daquele visionário, disse para comigo: Coitado! É mais um
irremediavelmente perdido!
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