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“À Luz
da Razão”
por Fran Muniz
Pap. Venus – Henrique Velho & C. – Rua Larga, 13 -
Rio
1924
A HÓSTIA
De
todos os dogmas convencionados pelo Catolicismo para sustentáculo da sua igreja,
o da hóstia é, por certo, o mais grave e o mais profano, por afetar diretamente
a divindade do Criador.
Na
febre indeclinável de enclausurar adeptos, ela não hesita ante a heresia e a
blasfêmia contanto que eles produzam superstição e terror que atuem sobre a parte
fraca da humanidade.
Temos
visto já muitas dessas esquisitas aberrações; vejamos mais esta atirada á luz
da publicidade:
“A
Ordem dá Ministros à Igreja a quem Deus confiou dois grandes poderes: o
primeiro de converter o pão e o vinho no corpo e sangue de N. S. Jesus Cristo;
o segundo de perdoar os pecados pelas palavras sacramentais.” (1)
(1) Goffiné.
- Manual do Cristão.
Isto
está escrito com todas as letras nos alfarrábios do catolicismo e é ensinado à
infância, tão digna de melhor educação. Incutem-se, pois, tais disparates no cérebro
frágil da massa tímida e inexperiente, como um acinte ao Progresso, à Ciência e
à Civilização.
No
entanto, a igreja não prova de maneira a merecer fé, o modo pelo qual recebeu
também autoridade para praticar o transformismo, e não o fazendo demonstra
apenas ter se arrogado um direito que não tem valor algum.
Contudo,
para fazer prevalecer essa autoridade, serviu-se de alguns textos evangélicos
que mais lhe convinham; refundiu-os a seu modo no cadinho dos Concílios e,
julgando-se, assim, solidamente estribada, ditou leis clericais e pretendeu
avassalar o mundo.
Daí,
mais esse erro crasso e irritante da transformação do pão e do vinho que
apresenta como realidade baseando-se numa Epístola de Paulo aos Coríntios.
Para
nos convencermos dessa ilusão da igreja, tomemos os quatro evangelistas em
conjunto:
“Estando
eles ceando, tomou Jesus o pão e o benzeu e partiu, e deu-o a seus discípulos e
disse: Tomai e comei: Este é o meu corpo que se dá por vós; fazei isso em memória
de mim; e tomando o cálice deu graças e deu-o, dizendo: Este cálice é o
novo testamento em meu sangue que será derramado
por vós. Mas vos digo que não beberei mais este fruto da vida, até que o beba
de novo, convosco, no reino do Pai.”
Façamos,
pois, um estudo criterioso e raciocinado e vejamos a que distancia fica a
igreja com o seu modo de interpretação:
Tomai
e comei; este é o meu corpo que se dá por vós. Isto é, o meu corpo que será
dado como exemplo e em benefício da humanidade, é tão necessário para saciar o
desejo estúpido e bárbaro dos ignorantes, do mesmo modo que este pão, ou o pão,
se torna necessário para saciar a fome do homem da terra
que só pode viver dos alimentos materiais.
De
sorte que: o meu corpo desaparecerá tragado pela voracidade dos homens atrasados
e incompreensíveis, da mesma forma que o pão desaparecerá, tragado pela fome
natural do homem. Meu corpo vai satisfazer um desejo; este pão vai satisfazer
uma necessidade; assim meu corpo está para a necessidade
deste povo tal qual este pão está para a necessidade do alimento humano.
Logo,
meu corpo está nas mesmas condições do pão porque o pão é tão necessário como é
o meu corpo. Portanto, “tomai e comei.”
Fazei
isto em memória de mim. Isto é, dai também o pão aos famintos, dai o alimento
aos necessitados, o consolo aos que choram, a suavidade aos oprimidos; pratica a
caridade com o vosso irmão. Do mesmo modo, dai
também o vosso corpo, se for necessário, lembrando-vos de mim, em meu nome,
com o pensamento em mim.
Jesus
serviu-se dessa comparação figurada no pão como a de que, por exemplo, se
serviria um padre, dizendo:
-
Esta igreja é o meu braço direito, ou, os sacramentos são a minha enxada. Isto
não quer dizer que a igreja seja o braço carnal do padre, nem que os
sacramentos sejam um instrumento para cavar a terra, mas sim que a igreja e os
sacramentos são o arrimo e o sustento dele para não morrer à mingua.
Depreende-se,
da alusão contida no vinho, a mesma figura feita pelo Cristo:
“Este cálice é o novo testamento em meu
sangue que será derramado por vós”. Quer dizer, este é o cálice dos martírios
que devem ser tragados com resignação, tal como vos exemplifiquei; é isto que
vos deixo em novo testamento. (Novo - porque há o antigo que são as escrituras
sagradas de Moisés e outros profetas). Este testamento são as minhas vontades para serem cumpridas depois da minha morte e ele é feito em meu sangue,
isto é, à custa do meu sangue, com o meu sangue, porque vou dai-o por vós.
Portanto, este cálice é o novo testamento
em meu sangue que será derramado por vós.”
Fazei, pois, isto em memória de mim.
Quer
dizer: Tragai o cálice da amargura, sofrei, deixai-vos martirizar, também,
lembrando-vos de mim, crentes em mim, e não temais a dor, porque o martírio
sofrido em meu nome, ou seja, em cumprimento das leis que prego, tornam-se mais
suaves e purificam o espirito. E Deus só aceita o espírito, quando chegado à
perfeição, acrisolado no cadinho da dor suportada com resignação por amor dele.
Não hesiteis, pois, bebei este cálice.
Mas
vos digo que não beberei mais este fruto da vida. Isto é, não beberei mais deste
vinho que é o produto da uva, do mesmo modo que não beberei mais o cálice da
amargura, que é o fruto da inconsciência dos homens representada neste vinho.
Igualmente não me banquetearei mais convosco neste festim que representa a
união, a fraternidade que desejo seja o novo apanágio na Terra, até que de novo o faça convosco no reino de
Deus. Isso quando já estiverdes perfeitos e dignos de fazer parte no
banquete do Pai; isto é, quando a vossa pureza de sentimentos de amor, permitir
nova união nesse festim onde então beberemos novo fruto: O fruto colhido na
Videira do reino do Senhor:- Amor eterno.
Sem
nenhum esforço pois, compreendemos o sentido real do que Jesus teria tido o
desejo de minuciar por ocasião da Ceia e que não foi possível faze-lo, visto
não poder ser compreendido naquela época.
De
sorte que, teve necessidade de servir-se desse emblema da páscoa, como um último
apelo à prática da fraternidade e do amor entre os homens.
Assim,
pensamos ter demonstrado claramente, a relação de ideias entre o pão, o vinho,
o corpo e o sangue de Jesus. Todavia se houver ainda quem não se satisfaça com
ele, tem toda a liberdade de entendê-la como lhe aprouver, menos como sendo
realmente aquelas substâncias, o corpo e sangue de Cristo . Tal ingenuidade
toca às raias do absurdo; é um verdadeiro crime de lesa-divindade.
Observe-se
mais que, se a intenção de Jesus fosse ensinar que o pão era realmente o seu
corpo e o vinho realmente o seu sangue, então, havíamos de concordar que ele
estando intacto, mostrava e oferecia o seu próprio corpo que, nesse caso, nem
mesmo seria duplo, porque ele disse: - Este é o meu corpo e não este é meu outro corpo.
Supondo
mesmo que o seu corpo fosse duplo, Jesus teria induzido seus apóstolos à
praticarem um crime sem utilidade, devorando um de seus corpos antes de ser
assassinado o outro.
Bem
sabemos que para sanar semelhante confusão, a igreja nos acena com o célebre e
já demasiado gasto - mistério, com o
qual muita gente ainda se contenta.
Mistério ou milagres são coisas
sobrenaturais, e o sobrenatural não existe. Tudo no universo tem uma razão de
ser.
Ora,
raciocinemos: Se Jesus, de fato, teve a intenção de demonstrar que aquele pão
era realmente o seu corpo segue-se que, quando disse: “- Fazei isso em memória de mim” não se
dirigia tão somente aos doze apóstolos, ao contrário, o padre teria sido intruso
em fazer o mesmo uma vez que não era dos comensais. É claro, pois, que Jesus
falava para a humanidade de então e para as gerações vindouras.
Por
consequência, qualquer pessoa tem o direito de distribuir pães uns aos outros
dizendo: Eis aqui o corpo de Jesus; porque o Nazareno foi bem explícito: “- Fazei
isso em memória de mim.”
Donde,
pois, o privilégio da igreja? Com que autoridade tomou a si, exclusivamente,
essa incumbência?
Teria
Cristo se esquecido de avisar aos Apóstolos que só os sacerdotes romanos o
poderiam fazer?
Convençamo-nos
de que a igreja, apesar de infalível,
errou, tomando a “letra que mata” e o resultado foi o disparate de querer
convencer de que um biscoito de farinha de trigo e um cálice de vinho zurrapa
hão de ser, à força, o corpo e o sangue do Divino Mestre.
Mas
a igreja tem a sorte de ser amparada pelos que ainda não se dispuseram a estuda-la
e, apesar de contar em seu seio, homens de reconhecido valor intelectual. Isto
deu causa a que o ilustre sábio Lamartine, escrevesse:
“Causa
lastima ver o talento arcando com o impossível.”
Não
obstante, lembramos ainda que essas Ceias foram sempre efetuadas pelos
discípulos, em comemoração à última realizada na companhia do Mestre; devido,
porém, às cenas escandalosas que se deram durante o período das perseguições
aos Cristãos em Roma, os sacerdotes tomaram a si essa comunhão do pão e do
vinho, e mais tarde substituíram o pão pela hóstia.
Os
concílios, aproveitando a confusão, instituíram a transformação da hóstia em
corpo real de Cristo e a apresentaram como uma receita, cuja fórmula
pretenderam ser um dos melhores veículos da salvação, descrevendo assim o seu
modo de usar:
“Para
recebê-la (a hóstia), aproxima-se a gente da santa mesa, abaixando os olhos.
com o maior recolhimento e penetrado do mais profundo respeito; pede-se aos
anjos que nos acompanhem. Pega-se na toalha, dizendo: Vinde, Deus meu. vinde a
mim! Eu creio em vós, em vós espero e de todo o meu coração vos amo etc.
Endireita-se a cabeça, abre-se a boca, apresenta-se a língua na qual o padre
coloca o alimento celestial.” (1)
(1) Goffiné. - Obra
citada.
A
realização desse ato deve ser adrede preparada com o jejum, a fim de que a hóstia
não seja precedida de outro alimento. Resta, apenas, sabermos qual a utilidade
que possa ter tal precaução.
Se
é pelo fato da hóstia ter a primazia de ser engolida nesse dia, perguntamos:
Não é verdade que ele será, apesar disso, precedida do alimento da véspera, que,
portanto, a coloca em segundo lugar?
Se,
porém, é para que o ‘alimento’ celeste não se junte incontinente com o alimento
material, não é também verdade que eles se juntarão, para logo, internamente,
em piores condições?
Demais,
será o alimento comum menos imundo do que o próprio homem, assim criado, certamente,
para que sejam abatidos o orgulho e a vaidade de si próprio?
Todavia,
responde a igreja:- a hóstia deixa de ser o real corpo de Cristo, logo que se
desfaz sobre a língua, o que equivale a descer retornado em matéria aos lugares
escusos.
Assim
sendo e apesar do capcioso lance de misteriosa prestidigitação, perguntamos:
Qual
o valor, qual o efeito desse ato, desde que Deus não passa da língua? Depois, é
admissível que Deus se dissolva na saliva e se conserve nesse segregado nauseante
e repugnante?
Além
disso, sendo essa hóstia mais tarde expelida em matéria, asquerosamente
decomposta, é possível admitir que tal imundície (é horrível dize-lo) tivesse
sido o corpo de..?
Como
é ingrata a humanidade! Perdoai-lhe Senhor!
Devemos
esclarecer os inexperientes que hóstia quer dizer ‘vítima do sacrifício’; e a
igreja transformando Deus em hóstia, está, até certo ponto, coerente consigo
mesma, pois outra coisa não tem feito ao Criador senão torna-lo a maior das
suas vítimas, sacrificado em todos os sentidos: dividindo-o, multiplicando-o,
reduzindo-o aos quatro estados da matéria, amoldando-o, enfim, às suas conveniências
insaciáveis.
E
quando as consciências se levantam num justo impulso racional para pedir
explicações de tais irregularidades, são imediatamente sufocadas pelo espectro
do Mistério! E com essa repressão aos pensamentos tímidos, continua a ser
rebaixado, torpemente o Deus infinito, tão infinito em todos os seus atributos,
que somos indignos sequer de compreendê-lo!
É
esse Deus que vem conduzido nas mãos de um padre e transformado na mesquinha e
ridícula forma de um disco de massa de farinha ao qual se diz: “Vinde Deus meu,
vinde a mim.”
Mas,
Senhor, Vós, a Fonte infinita do Amor e da Bondade já os perdoastes! Porque,
Senhor, bem o sabeis, isso que eles fazem, já não é mais ofensa. É inconsciência!
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