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quinta-feira, 29 de novembro de 2012

9. "À Luz da Razão" por Fran Muniz



9
“À Luz da Razão”

por   Fran Muniz

Pap. Venus – Henrique Velho & C. – Rua Larga, 13 - Rio
1924


A HÓSTIA

           
            De todos os dogmas convencionados pelo Catolicismo para sustentáculo da sua igreja, o da hóstia é, por certo, o mais grave e o mais profano, por afetar diretamente a divindade do Criador.

            Na febre indeclinável de enclausurar adeptos, ela não hesita ante a heresia e a blasfêmia contanto que eles produzam superstição e terror que atuem sobre a parte fraca da humanidade.

            Temos visto já muitas dessas esquisitas aberrações; vejamos mais esta atirada á luz da publicidade:

            “A Ordem dá Ministros à Igreja a quem Deus confiou dois grandes poderes: o primeiro de converter o pão e o vinho no corpo e sangue de N. S. Jesus Cristo; o segundo de perdoar os pecados pelas palavras sacramentais.” (1)

            (1) Goffiné. - Manual do Cristão.

            Isto está escrito com todas as letras nos alfarrábios do catolicismo e é ensinado à infância, tão digna de melhor educação. Incutem-se, pois, tais disparates no cérebro frágil da massa tímida e inexperiente, como um acinte ao Progresso, à Ciência e à Civilização.

            No entanto, a igreja não prova de maneira a merecer fé, o modo pelo qual recebeu também autoridade para praticar o transformismo, e não o fazendo demonstra apenas ter se arrogado um direito que não tem valor algum.

            Contudo, para fazer prevalecer essa autoridade, serviu-se de alguns textos evangélicos que mais lhe convinham; refundiu-os a seu modo no cadinho dos Concílios e, julgando-se, assim, solidamente estribada, ditou leis clericais e pretendeu avassalar o mundo.

            Daí, mais esse erro crasso e irritante da transformação do pão e do vinho que apresenta como realidade baseando-se numa Epístola de Paulo aos Coríntios.

            Para nos convencermos dessa ilusão da igreja, tomemos os quatro evangelistas em conjunto:

            “Estando eles ceando, tomou Jesus o pão e o benzeu e partiu, e deu-o a seus discípulos e disse: Tomai e comei: Este é o meu corpo que se dá por vós; fazei isso em memória de mim; e tomando o cálice deu graças e deu-o, dizendo: Este cálice é o
novo testamento em meu sangue que será derramado por vós. Mas vos digo que não beberei mais este fruto da vida, até que o beba de novo, convosco, no reino do Pai.”

            Façamos, pois, um estudo criterioso e raciocinado e vejamos a que distancia fica a igreja com o seu modo de interpretação:

            Tomai e comei; este é o meu corpo que se dá por vós. Isto é, o meu corpo que será dado como exemplo e em benefício da humanidade, é tão necessário para saciar o desejo estúpido e bárbaro dos ignorantes, do mesmo modo que este pão, ou o pão, se torna necessário para saciar a fome do homem da terra que só pode viver dos alimentos materiais.

            De sorte que: o meu corpo desaparecerá tragado pela voracidade dos homens atrasados e incompreensíveis, da mesma forma que o pão desaparecerá, tragado pela fome natural do homem. Meu corpo vai satisfazer um desejo; este pão vai satisfazer uma necessidade; assim meu corpo está para a necessidade deste povo tal qual este pão está para a necessidade do alimento humano.

            Logo, meu corpo está nas mesmas condições do pão porque o pão é tão necessário como é o meu corpo. Portanto, “tomai e comei.”

            Fazei isto em memória de mim. Isto é, dai também o pão aos famintos, dai o alimento aos necessitados, o consolo aos que choram, a suavidade aos oprimidos; pratica a caridade com o vosso irmão. Do mesmo modo, dai também o vosso corpo, se for necessário, lembrando-vos de mim, em meu nome, com o pensamento em mim.

            Jesus serviu-se dessa comparação figurada no pão como a de que, por exemplo, se serviria um padre, dizendo:

            - Esta igreja é o meu braço direito, ou, os sacramentos são a minha enxada. Isto não quer dizer que a igreja seja o braço carnal do padre, nem que os sacramentos sejam um instrumento para cavar a terra, mas sim que a igreja e os sacramentos são o arrimo e o sustento dele para não morrer à mingua.

            Depreende-se, da alusão contida no vinho, a mesma figura feita pelo Cristo:

            “Este cálice é o novo testamento em meu sangue que será derramado por vós”. Quer dizer, este é o cálice dos martírios que devem ser tragados com resignação, tal como vos exemplifiquei; é isto que vos deixo em novo testamento. (Novo - porque há o antigo que são as escrituras sagradas de Moisés e outros profetas). Este testamento são as minhas vontades para serem cumpridas depois da minha morte e ele é feito em meu sangue, isto é, à custa do meu sangue, com o meu sangue, porque vou dai-o por vós. Portanto, este cálice é o novo testamento em meu sangue que será derramado por vós.”

            Fazei, pois, isto em memória de mim.

            Quer dizer: Tragai o cálice da amargura, sofrei, deixai-vos martirizar, também, lembrando-vos de mim, crentes em mim, e não temais a dor, porque o martírio sofrido em meu nome, ou seja, em cumprimento das leis que prego, tornam-se mais suaves e purificam o espirito. E Deus só aceita o espírito, quando chegado à perfeição, acrisolado no cadinho da dor suportada com resignação por amor dele. Não hesiteis, pois, bebei este cálice.

            Mas vos digo que não beberei mais este fruto da vida. Isto é, não beberei mais deste vinho que é o produto da uva, do mesmo modo que não beberei mais o cálice da amargura, que é o fruto da inconsciência dos homens representada neste vinho. Igualmente não me banquetearei mais convosco neste festim que representa a união, a fraternidade que desejo seja o novo apanágio na Terra, até que de novo o faça convosco no reino de Deus. Isso quando já estiverdes perfeitos e dignos de fazer parte no banquete do Pai; isto é, quando a vossa pureza de sentimentos de amor, permitir nova união nesse festim onde então beberemos novo fruto: O fruto colhido na Videira do reino do Senhor:- Amor eterno.

            Sem nenhum esforço pois, compreendemos o sentido real do que Jesus teria tido o desejo de minuciar por ocasião da Ceia e que não foi possível faze-lo, visto não poder ser compreendido naquela época.

            De sorte que, teve necessidade de servir-se desse emblema da páscoa, como um último apelo à prática da fraternidade e do amor entre os homens.

            Assim, pensamos ter demonstrado claramente, a relação de ideias entre o pão, o vinho, o corpo e o sangue de Jesus. Todavia se houver ainda quem não se satisfaça com ele, tem toda a liberdade de entendê-la como lhe aprouver, menos como sendo realmente aquelas substâncias, o corpo e sangue de Cristo . Tal ingenuidade toca às raias do absurdo; é um verdadeiro crime de lesa-divindade.

            Observe-se mais que, se a intenção de Jesus fosse ensinar que o pão era realmente o seu corpo e o vinho realmente o seu sangue, então, havíamos de concordar que ele estando intacto, mostrava e oferecia o seu próprio corpo que, nesse caso, nem mesmo seria duplo, porque ele disse: - Este é o meu corpo e não este é meu outro corpo.

            Supondo mesmo que o seu corpo fosse duplo, Jesus teria induzido seus apóstolos à praticarem um crime sem utilidade, devorando um de seus corpos antes de ser assassinado o outro.

            Bem sabemos que para sanar semelhante confusão, a igreja nos acena com o célebre e já demasiado gasto - mistério, com o qual muita gente ainda se contenta.

            Mistério ou milagres são coisas sobrenaturais, e o sobrenatural não existe. Tudo no universo tem uma razão de ser.

            Ora, raciocinemos: Se Jesus, de fato, teve a intenção de demonstrar que aquele pão era realmente o seu corpo segue-se que, quando disse:  “- Fazei isso em memória de mim” não se dirigia tão somente aos doze apóstolos, ao contrário, o padre teria sido intruso em fazer o mesmo uma vez que não era dos comensais. É claro, pois, que Jesus falava para a humanidade de então e para as gerações vindouras.

            Por consequência, qualquer pessoa tem o direito de distribuir pães uns aos outros dizendo: Eis aqui o corpo de Jesus; porque o Nazareno foi bem explícito: “- Fazei isso em memória de mim.”

            Donde, pois, o privilégio da igreja? Com que autoridade tomou a si, exclusivamente, essa incumbência?

            Teria Cristo se esquecido de avisar aos Apóstolos que só os sacerdotes romanos o poderiam fazer?

            Convençamo-nos de que a igreja, apesar de infalível, errou, tomando a “letra que mata” e o resultado foi o disparate de querer convencer de que um biscoito de farinha de trigo e um cálice de vinho zurrapa hão de ser, à força, o corpo e o sangue do Divino Mestre.

            Mas a igreja tem a sorte de ser amparada pelos que ainda não se dispuseram a estuda-la e, apesar de contar em seu seio, homens de reconhecido valor intelectual. Isto deu causa a que o ilustre sábio Lamartine, escrevesse:

            “Causa lastima ver o talento arcando com o impossível.”

            Não obstante, lembramos ainda que essas Ceias foram sempre efetuadas pelos discípulos, em comemoração à última realizada na companhia do Mestre; devido, porém, às cenas escandalosas que se deram durante o período das perseguições aos Cristãos em Roma, os sacerdotes tomaram a si essa comunhão do pão e do vinho, e mais tarde substituíram o pão pela hóstia.

            Os concílios, aproveitando a confusão, instituíram a transformação da hóstia em corpo real de Cristo e a apresentaram como uma receita, cuja fórmula pretenderam ser um dos melhores veículos da salvação, descrevendo assim o seu modo de usar:

            “Para recebê-la (a hóstia), aproxima-se a gente da santa mesa, abaixando os olhos. com o maior recolhimento e penetrado do mais profundo respeito; pede-se aos anjos que nos acompanhem. Pega-se na toalha, dizendo: Vinde, Deus meu. vinde a mim! Eu creio em vós, em vós espero e de todo o meu coração vos amo etc. Endireita-se a cabeça, abre-se a boca, apresenta-se a língua na qual o padre coloca o alimento celestial.” (1)

            (1) Goffiné. - Obra citada.

            A realização desse ato deve ser adrede preparada com o jejum, a fim de que a hóstia não seja precedida de outro alimento. Resta, apenas, sabermos qual a utilidade que possa ter tal precaução.

            Se é pelo fato da hóstia ter a primazia de ser engolida nesse dia, perguntamos: Não é verdade que ele será, apesar disso, precedida do alimento da véspera, que, portanto, a coloca em segundo lugar?

            Se, porém, é para que o ‘alimento’ celeste não se junte incontinente com o alimento material, não é também verdade que eles se juntarão, para logo, internamente, em piores condições?

            Demais, será o alimento comum menos imundo do que o próprio homem, assim criado, certamente, para que sejam abatidos o orgulho e a vaidade de si próprio?

            Todavia, responde a igreja:- a hóstia deixa de ser o real corpo de Cristo, logo que se desfaz sobre a língua, o que equivale a descer retornado em matéria aos lugares escusos.

            Assim sendo e apesar do capcioso lance de misteriosa prestidigitação, perguntamos:

            Qual o valor, qual o efeito desse ato, desde que Deus não passa da língua? Depois, é admissível que Deus se dissolva na saliva e se conserve nesse segregado nauseante e repugnante?

            Além disso, sendo essa hóstia mais tarde expelida em matéria, asquerosamente decomposta, é possível admitir que tal imundície (é horrível dize-lo) tivesse sido o corpo de..?

            Como é ingrata a humanidade! Perdoai-lhe Senhor!

            Devemos esclarecer os inexperientes que hóstia quer dizer ‘vítima do sacrifício’; e a igreja transformando Deus em hóstia, está, até certo ponto, coerente consigo mesma, pois outra coisa não tem feito ao Criador senão torna-lo a maior das suas vítimas, sacrificado em todos os sentidos: dividindo-o, multiplicando-o, reduzindo-o aos quatro estados da matéria, amoldando-o, enfim, às suas conveniências insaciáveis.

            E quando as consciências se levantam num justo impulso racional para pedir explicações de tais irregularidades, são imediatamente sufocadas pelo espectro do Mistério! E com essa repressão aos pensamentos tímidos, continua a ser rebaixado, torpemente o Deus infinito, tão infinito em todos os seus atributos, que somos indignos sequer de compreendê-lo!

            É esse Deus que vem conduzido nas mãos de um padre e transformado na mesquinha e ridícula forma de um disco de massa de farinha ao qual se diz: “Vinde Deus meu, vinde a mim.”

            Mas, Senhor, Vós, a Fonte infinita do Amor e da Bondade já os perdoastes! Porque, Senhor, bem o sabeis, isso que eles fazem, já não é mais ofensa. É inconsciência! 


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