Fazer
primeiro por ti...
Mussafir
era um rapaz que somente pensava em si. Não que ele fosse propriamente mau, mas
revelava profunda indiferença por seus semelhantes e seguia o preceito cínico
de Mirabi-el-Fanur, que costumava dizer a seus discípulos:
-
Faze primeiro por ti que Alá te ajudará ...
Por
isso, Mussafir ia-se tornando egoísta e frio, pois o egoísmo corrompe as boas
qualidades do espírito e faz repontar no caráter do homem vícios e defeitos
difíceis de erradicar.
Naquele
dia, topara o rapaz com o velho Hiraim, a quem chamavam "o faquir",
homem sem riquezas materiais, mas dotado de bondoso coração, como outro igual
talvez não se encontrasse na Arábia de seu tempo. Ao atravessar a rua
esburacada, Hiraim pisou em falso e caiu, torcendo o pé. Ao ver Mussafir,
chamou-o:
-
Bom rapaz, vem cá! Ajuda-me a chegar a casa.
Sem
se deter, Mussafir olhou-o com indiferença e respondeu:
-
Faze primeiro por ti que Alá te ajudará ...
E
seguiu seu caminho sem olhar para trás. Entretanto, Hiraim, sem revelar mágoa,
retrucou:
-
Alá há de te ouvir e eu lhe peço que retifiques os sentimentos senão terás uma
velhice amargurada por lágrimas e dores... E será triste,
se isso acontecer...
*
Mussafir
ignorava a verdadeira personalidade de Hiraim. O velho faquir possuía dons
especiais, que lhe davam certa ascendência sobre o comum dos mortais. Dotado de
vidência, pudera ver que Mussafir andava cercado por entidades sombrias, pois
sua alma ia lentamente perdendo o róseo tom da inocência e obscurecendo ao
contato de impuros companheiros invisíveis. Hiraim compadeceu-se de Mussafir e
com extrema dificuldade se dirigiu para a mesquita de Arbnachar, abriu a almocela e sobre esse tapete formulou
uma prece ao Criador de todas as coisas...
Mussafir
deitara-se cedo. A noite quente e abafada forçava ao repouso e ele, que sentia
o corpo quebrantado, como se lhe houvessem dado forte sova com varas dos
famosos marmeleiros de Benir-Adib, fora para o leito na esperança de adormecer
sem demora. De quando em quando passava a mão pela testa aljofrada de suor frio
e suspirava quando lhe acorria à mente o episódio do encontro com Hiraim. Era
curiosa a insistência com que ele se lembrava do velho desconhecido. Sentia o
coração opresso, como se o mundo estivesse para desabar por cima de sua cabeça.
Lá fora, a noite negra e profusamente estrelada parecia o tapete marchetado de
belos diamantes do califa Arbjura, vindo especialmente de Bagdá para lhe ornar
o palácio suntuoso.
Pensativo,
em seu leito, sentiu vontade de chorar. Mas, chorar por quê? Um homem de sua
têmpera não chora... O tempo foi correndo depressa, até que Mussafir pressentiu
a chegada do sono. Nessa ocasião, porém, desejou sair do quarto e espairecer um
pouco ao ar livre. Levantou-se, espreguiçando-se. Sentia-se mais leve e mais
tranquilo. Chegou à janela, olhou o céu e, inadvertidamente, voltou-se em
direção ao seu leito. Espantou-se com o que via: seu corpo se encontrava
deitado ali, em profundo sono! Após os primeiros instantes de estupefação,
começou a sentir curiosidade pelo fato. Aproximou-se e tocou com o dedo o
próprio corpo. Sorriu, achando graça da situação em que se via... Como podia
ser isso? Como é que ele poderia estar dormindo e acordado ao mesmo tempo?
Nesse instante, percebeu que alguém o chamava do outro lado da janela. Era o
velho Hiraim. Mussafir não revelou surpresa. Até parecia que haviam combinado o
encontro. Ia dirigir-se à porta; para sair, quando o faquir lhe fez sinal para
que viesse à janela. Sairia por ali.
-
Vem comigo, rapaz. Não há perigo algum. Deixa teu corpo em descanso e vem tu,
em espírito, acompanhar-me. Podes volitar e passar através da parede. Não há
perigo algum. Segue-me sem receio, porquanto precisas ver alguma coisa que será
útil a ti mesmo...
Intrigado
a princípio, Mussafir acabou por obedecer cegamente a Hiraim. E ambos partiram
pelo espaço afora:
-
Vou levar-te ao éden. Depois verás os campos de aprendizado, a fim de que vejas
como a vida que os homens levam na Terra nem sempre está conforme com as
necessidades que eles têm. Daí a instantes penetravam o paraíso anunciado a
Maomé, na gruta, pelas vozes do Alto. Mussafir tremia de emoção, extasiado pelo
que de felicidade ali se vislumbrava. Hiraim, todavia, quebrou-lhe o êxtase,
dizendo-lhe:
-
Como vês, aqui não se encontram as huris
anunciadas para aqueles que conquistam as graças de Alá. O Todo Poderoso
reserva-lhes recompensa muito mais elevada, mas é imprescindível que se
desliguem completamente de todos os sentimentos inferiores e aprendam a amá-lo
com a sinceridade com que O amou Rabia, aquela maravilhosa mulher maometana, verdadeiramente santa pela bondade de
seu coração e por suas virtudes peregrinas...
Para
ganhar o Aliun, o paraíso predito por
Maomé, meu rapaz, deve-se aprender a amar a Deus com pureza. Amá-Lo como O
amava Rabia. E ela cantava esta prece de ternura e fé:
"Oh
Alá, Alá! Se Te adoro com medo do Inferno, queima-me no Inferno! Se Te adoro na esperança do Paraíso,
exclui-me do Paraíso! Porém, se Te adoro pelo teu próprio amor, não me afastes da tua eterna beleza!"
*
Quando
Hiraim acabou de falar, Mussafir se achava caído de joelhos, enternecido. O
velho fê-lo erguer-se, doutrinando-o:
-
Ninguém ama o Pai, se não aprende primeiro a amar o próximo, Mussafir. Abandona
o preceito de Mirabi-al-Fanur e volta teu coração
para o mundo. Aquele que não se compadece de seu semelhante e não o ajuda, é
como que um aljube envenenado, cujas
águas não têm serventia...
Não
mostrarei o Inferno, porque, na realidade, ele somente existe na consciência do
homem afastado de Alá. Mostrar-te-ei, contudo, os campos de aprendizado onde os
Espíritos podem, em suas horas de lazer, dedicar-se a trabalhos de auto retificação
moral.
Era
intensíssimo o movimento das colônias visitadas. Espíritos de diversas cores
iam e vinham, empolgados por suas tarefas de renovação. Uns claros, bonitos,
atraentes; outros, negros, pavorosos, repulsivos. Para não ser prolixo, Hiraim
limitou-se a dizer que a beleza e a delicadeza das cores dependiam, em grande
parte, da elevação moral de cada um.
-
Nós mesmos, neste recinto, podemos ver nossa imagem refletida diante de nós e
avaliarmos da nossa situação em face da vida que levamos.
Mussafir,
automaticamente, procurou contemplar o seu Espírito. Diante dele pairava uma
névoa pardacenta, com largas manchas negras. Triste como a viúva Khadijah, ao ser desprezada por Kutam, o Maomé, o pobre rapaz ergueu os
olhos, súplice, para Hiraim, mas
cobriu-os, logo, com as mãos trêmulas, tal a claridade que envolvia o Espírito
do velho faquir. Mussafir sentiu-se
tonto e foi perdendo a noção das coisas...
*
Despertando
em sobressalto, sentou-se no leito e olhou ao redor, como que procurando Hiraim. Nada se alterara. O luar banhava
o quarto deserto e silencioso. Naturalmente sonhara, tivera um pesadelo. Todavia, o resto da madrugada ele a passou em
vigília. Parecia-lhe ver a imagem de Hiraim
e ouvir-lhe a voz lenta e suave.
*
Tão
cedo lhe foi possível, procurou pela cidade o faquir. Resolvera renunciar às lições
de Mirabi-al-Fanur, arrependido que
estava de seu procedimento da véspera. E ao encontrar Hiraim, caiu-lhe aos pés, murmurando, entre soluços:
-
Perdoa-me! Não quero ser como a planta alulab,
que vive rente ao chão, em lugares úmidos e sombrios... Ajuda-me, Hiraim, a merecer as graças de Alá!
Sorrindo compassivamente, o velho alisou lhe a
cabeça e disse com ternura:
-
Faze primeiro por ti que Alá te ajudará ...
por José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Novembro 1948
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