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sábado, 17 de novembro de 2012

Humildade





Humildade

            "Bem-aventurados os humildes - afirmou o Divino Mestre - porque deles é o reino dos céus'. E ainda: "Aquele que se humilha, será exaltado, e o que se exalta será humilhado". A exaltação do humilde é a glória de Deus; e a que maior nível poderia o homem aspirar, e que maior prêmio lhe poderia ser concedido? A humildade do Espírito conduz-lo às elevadas regiões do Incognoscível (que não se pode conhecer); a exaltação do seu próprio "eu", por suas forças mesmas, em arremesso de soberbia (soberba exagerada), lança-o, pelo contrário, às "trevas exteriores"; aos abismos negregosos (muito negro) da degradação.  Por mais estranho que pareça, é assim que se dá, e deste modo, à força de querer exaltar-se, por sobrelevar-se aos demais, desprezando-os, o homem cada vez mais se atasca (enlamear-se moralmente) no lodo que produzem os pés a castigar a terra; e, em breve, essa argamassa o afoga, quando esperava ele alçar-se e construir um castelo em tão frouxa e inconsistente base.

            Não há de ser assim, portanto. Não será a matéria pesada que se eleve, mas essa outra que, sublimada, se alcandore (guindar-se) nos espaços; e por ser verdade que a matéria atrai a matéria, tais sejam suas naturezas haverá atração para o inferno das sombras ou para o céu da luz. O que parecia, pois, incompreensível absurdo, é a consequência lógica da lei da atração universal, em toda a sua pujança e amplitude. "Quem se humilhar será exaltado" é conceito profundo que importa compreender, por isso mesmo, com simplicidade e que não entendem os soberbos, os que impam de orgulho, os que não enxergam senão o seu mundo - que é, afinal, sua mísera pessoa; é natural corolário, ou melhor, inalienável parte do princípio único e eterno que rege a tudo quanto existe.

            É lídima consequência dessa norma inabalável que os convictos de sua sabedoria nada possam entender do muito que ignorem; estando consigo mesmo satisfeitos, nada mais perscrutam; tudo pretendendo saber, nada mais lhes interessa, e a razão de tudo a encontram no angusto (estreito, apertado) círculo que se criaram, fugindo ao contato do mundo exterior, onde existe realmente a razão de todas as coisas. Nem há o mundo de se amoldar a tão ridícula forma, senão que há o homem de fazer para si o molde que se ajuste à forma geral.


            As forças, que imagina esse homem cheio de vaidade ter criado, não só incapazes são de levá-lo à compreensão dá ordem universal, mas também mais e mais o agrilhoam num cárcere voluntário. Procurando exaltar-se, encontrará quem lhe diga: "Muda-te para o último lugar, pois outro conviva existe mais digno do que tu, e a esse quero conceder o lugar de honra". E muito admirado fica de que haja alguém que lhe seja superior; e inflama-se de cólera, julgando-se ofendido, por não só não lhe apreciarem os méritos, senão também por o olharem de cima para baixo.

            De que teria sido isto resultado? Apenas dum falso juízo a seu próprio respeito; e a consequência fatal será sofrer o exaltado a admoestação humilhante, que bem devera ter evitado. Por que, então - perguntará - aquele obscuro conviva, de cuja presença ele nem se dera conta, há de ocupar o lugar de honra? Pois ele se olha cheio de merecimentos, crê-se de todos conhecido, pretende as homenagens de toda a gente; e aquele, que veio sem estardalhaço, que todo o tempo, antes do banquete, se sentou a um canto da sala; de quem ele jamais ouvira falar - aquele é que mereça as honras da noite, enquanto, ele é degradado,  como um verme desprezível, digno de escárnio? De que lhe valeram - continua - todos os esforços por sobressair da massa ignara, lutando por enriquecer-se de saber, buscando um nível donde pudesse rir da estulta (tola) populaça, enchendo-se de vento por escapar às emanações deletérias do charco, onde coleiam (serpenteiam) répteis imundos? Atiram-lhe à face essa mesma lama, cujo afrontoso contato ele tanto evitara! Fazem-no descer ao mesmo degrau, de onde pensara que viera, vituperando-lhe (injuriar, afrontar) os brios! Mas, ai, é que nunca deixara a lama, nem jamais se movera do primeiro degrau! Nada mais fizera senão acomodar-se à vasa (degradação moral; torpeza), a qual, já por fim, transformara, por auto sugestão, num jardim florido; e, ainda, numa verdadeira ilusão de sentidos deformados, pensara realizado o sonho de voltejar (voltear) acima de si mesmo...

            Não! Decerto não serão tais forças, oriundas do orgulho e da vaidade, que exalcem o indivíduo às regiões que sonha. Da mesma forma que a pesada névoa da manhã desce do céu aos montes e se imiscui nos vales que ainda modorram, subindo e, por fim, desfazendo-se ao toque mágico do raio do Sol, assim também tem o homem de receber o toque duma luz que o sublime, carreando-o muito acima dos vapores duma atmosfera adensada. Por sua própria natureza, as névoas não transpõem a altura das nuvens; mas, de essência diversa, o Espírito se elevará a regiões jamais cogitadas, tangido por força dessa energia superior que demora muito além do astro central de nosso sistema.

            Essa, a real exaltação de quem não dispõe de forças, mas espera-as duma Fonte capaz de sublimá-lo; e quanto mais humilde se faça, tanto mais alto se eleva, pois é do vale que sobe o nevoeiro, e é esse nevoeiro que se transforma em nuvens, e são essas nuvens a bênção dos Céus, nas chuvas que dessedentam.

            Correm, humildes, os ribeiros, e glorificam o Senhor, a cantar entre as pedras, tão humildes quanto as águas modestas; mas são essas águas uma potência, de que se utiliza o homem para seu sustento. Humildes e ocultas são as raízes, sem as quais, entretanto, não se erigem os troncos, não despontam as folhas, não se enfloram as ramagens - ainda feridas pelos meigos e vivificantes raios do nosso foco material de luz e de calor. Águas e raízes trabalham à sombra de sua santa humildade, enaltecendo-se por isso mesmo que enaltecem a Força da qual recoltam (colher, ceifar) forças. Não pretendem mais alto posto, justamente porque acreditam já lhes ser muito ser parte do grande Todo, essa realidade que, só ela, é efetivamente grande. Realidade é essa, com efeito, e tudo o mais é jactância (hábito de se gabar, arrogância, altivez). Quanto maior a pedra, tanto mais se afunda no atoleiro; torne-se ela permeável ao ar, e flutuará no aguaçal (pântano, charco).   Quanto mais o homem se encharque da bazófia (impostura) mundana, tanto mais preso se achará à grosseira matéria desse mundo: permita que se lhe infiltrem os fluidos celestes, e com eles subirá, exaltando-se aos olhos do Senhor. Enquanto, porém, se esforçar por crescer aos olhos dos homens, continuará pequeno e cada vez menor; pois os homens buscarão, antes, esmagá-lo e carregá-lo de seus fluidos pesados.

            Por isto disse o Mestre: "Bem-aventurados os humildes, porque deles é o reino dos céus". Humilhou-se ele mesmo, sofrendo o que ninguém pudera sofrer, podendo, com um só golpe de sua enorme vontade, exterminar seus algozes; mas humilhou-se, para ascender, no termo de seu suplício, aos Céus, donde viera para esse exemplo vivo de humildade. Desceram os primeiros cristãos aos circos do sacrifício, padeceram como se nada pudessem, tendo, no entanto, ao lado o exército invisível do Senhor, o qual poderia ajudá-los desbaratando lhes todos os inimigos; tudo viveram, para uma vida maior, numa atitude excelsa de encantadora humilhação. Humilhou-se o publicano, que, orando, sem ousar levantar os olhos, exclamou: "Ó Deus, sê benevolente comigo, pecador", e do qual disse o Nazareno: "Digo-vos que este desceu justificado para sua casa"; ao passo que o fariseu, ao lado, dizendo: "Ó Deus, graças te dou por não ser como os demais - homens, que são ladrões, injustos, adúlteros, nem ainda como este publicano", recebeu a reprovação do Messias. Exaltamo-nos toda vez que nos recolhemos à nossa humildade; somos humilhados sempre que vivemos para nossa exaltação.

            A muitos repugna o humilhar-se - afirmou Kardec - à vista, mesmo, do juízo do mundo, que os impede de fazê-lo, ainda que o quisessem; basta-nos, porém, pensar em que a cada passo nos humilhamos, em mil ocorrências da vida diária. São esses nadas que nos vão polindo, como as águas correntes vão desbastando as arestas das pedras, transformando estas em seixos rolados, em areia fina, em pó impalpável, que rodopia no ar... Humilhamo-nos, sem querer e sem o sentir, sob o peso - não o peso estulto (tolo, néscio, inepto) da vanglória, mas da Lei Divina, que ampara os humildes para dar-lhes o lugar reservado aos eleitos dos Céus.

            É mister, contudo, ainda mais: o domínio do próprio íntimo naturalmente rebelde, sempre disposto a irrefletida reação aos golpes do que o homem julga da adversidade. Cumpre esgotar o cálice da amargura, sorvendo-o gota a gota, que abrasa e parece destruir, fibra a fibra, a alma atormentada; o cáustico é, porém, o remédio desse Médico de todos nós, e de sua penosa mas salutar ação resultará novo tecido, com que se eleve o Espírito aos páramos (firmamento, abóbada celeste,  ponto culminante) de seu real objetivo.

            Se do Mestre somos seguidores, imitemo-lo; se lhe somos discípulos, obedeçamos-lhe; humilhou-se, para exaltar-se: façamos nós o mesmo.

Porto Carreiro Neto
Reformador (FEB)  Novembro 1947


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