Jardim sem flores
José Brígido (Indalício
Mendes)
Reformador (FEB) Julho
1952
Todos gabavam a incomparável beleza daquela
mulher, de cujos olhos meigos parecia irradiar imensa ternura. Fizera-se, muito
conhecida nas “festas de caridade”, por sua delicadeza de maneiras e sabia
cativar os que dela se aproximavam nas reuniões sociais, sempre sorridente, envaidecida
pela lisonja fácil dos homens frívolos que a cortejavam.
- Ela é um verdadeiro anjo! Está
sempre pronta a ajudar os infelizes! - exclamavam, extasiados.
E o tempo ia passando, aparentemente
devagar, mas, na realidade, bem mais depressa do que todos sentimos. Nunca se
vira aquela mulher elegante, bonita e atraente faltar a uma “festa de caridade”,
onde, muitas vezes, a miséria sugere movimentos, mais de mero exibicionismo
individual, do que de sincera solidariedade humana.
Sua caridade consistia em parecer
boa. Não havia reunião elegante de certo vulto a que ela não estivesse presente,
sem fazer nada mais do que "flertar", ouvir galanteios, sorrir e
propagar a colaboração que emprestara ao trabalho de assistência aos pobres,
ainda que jamais houvesse sentido de perto a emoção do sofrimento daqueles que
amargam as consequências da provação terrena. Seu porte impressionava bem e a
sua fisionomia agradável concorria para fortalecer o pressuposto da sua
bondade. No fundo da
alma, porém, não vibrava: era fria e estéril. Cuidava de si mesma e por simples
impulso ególatra se sentia em paz com a consciência, retirando da carteira
duzentos ou quinhentos cruzeiros para adquirir um “convite” para “festas de
caridade”. Pessoalmente, não atendia a nenhum infortunado, a menos que pudesse
ter alguém capaz de lhe testemunhar o gesto magnânimo.
*
Na intimidade, entretanto, esse anjo
de candura passava a maior parte do tempo diante do espelho, requintando-se na “maquillage”.
Buscava todas as minúcias para o embelezamento de seus vestidos. Embora rica,
pagava mal à paupérrima costureira que a servia, maltratando-a com frequência,
quando as costuras não lhe saíam a contento. Nem sabia também avaliar a riqueza
de contar com a companhia de uma veneranda mãezinha, cujos cabelos brancos
desrespeitava, sempre que sensatos conselhos lhe eram dirigidos. De desgosto em
desgosto, a anciã acabou tendo os seus dias abreviados. Mesmo assim, a filha
ingrata não lhe dispensou os cuidados de que carecia. A morte da velhinha foi a
princípio recebida com indiferença, e até mesmo com irritação. Para cumprir as
exigências da etiqueta social, teria que se privar durante algum tempo das
reuniões elegantes, das “festas de caridade”, onde a esperavam infalivelmente os
louvaminheiros da sua mocidade e de sua beleza. Tinha, porém, que simular sentimento. Por isto, adotou a
atitude que melhor lhe convinha em semelhante conjuntura. Expediu comunicações às
suas finas amizades, participou aos jornais e às rádios emissoras, preocupada
em conhecer-lhes as referências ao seu nome, a propósito da morte da mãe
sofredora. O enterramento foi feito com o maior aparato possível, após a
cerimônia de encomendação do corpo. Houve missa de réquiem. Para ela, tudo
corria admiravelmente, pois o templo se enchera de gente importante. Quem
atentasse para a tristeza do seu semblante se surpreenderia com o contentamento
que lhe inundava o coração. A morte da genitora havia sido para ela um grande
acontecimento social, uma prova robusta do seu do seu prestígio.
*
Mas as leis de Deus são sábias e
inflexíveis. O fastígio dessa dama fútil ainda perdurou alguns anos - Depois,
começou a declinar. Ela compreendeu com desespero que sua época estava no fim -
Apegou-se a tudo quanto podia para conservar o antigo prestígio social. É que
os tempos mudam com a multiplicação dos anos. Foi quando o seu verdadeiro
caráter se revelou diante das amizades fictícias que a sua calculada generosidade
havia criado. Foram diluindo lentamente e ela chegou à maturidade completamente
só. Nem sequer possuía vontade para fazer, por si mesma, a caridade que
auxiliara apenas para se projetar no mundo social. Dentro em pouco, os humildes
ficaram conhecendo de perto sua legítima natureza moral. Não suportava
ambientes de pobreza e de dor e se apavorava ante a aproximação de pessoas
enfermas. Quando lhe chegou a hora de partir foi que compreendeu o grave erro
da vida artificial que levava: não tendo caridade sincera com ninguém, nem com
a própria mãe, faltou com a caridade para si mesma, porque não pode colher
flores quem semeia espinhos. Contudo, como é infinita a misericórdia divina,
surgiu uma empregada velha, que a conhecera na infância, a qual lhe fechou os
olhos no momento derradeiro.
*
Esta é a história simples e
dramática de uma mulher bela, mas egoísta. Tão bela que lembrava aos seus
cortejadores um jardim florido. Sua alma, entretanto, era apenas um jardim sem
flores.
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