Carlos Imbassahy
Carta
aberta ao Dr. Carlos Imbassahy
por Souza Prado
Reformador
(FEB) Outubro 1942
Meu
caro Imbassahy:
Fiquei pasmado ao ler o seu
excelente livro "Religião"; e o que me boquiabriu não foi aquela
irônica dedicatória, em que Você, com a maldade que o caracteriza, e que todos
fazem a justiça de lhe reconhecer, me chama "jovem Sousa, risonho e esperançoso como um Prado florido", sem
se lembrar, ou talvez mesmo porque se lembrou de que é ... infinitamente mais
velho que eu. O que me embasbacou foi o pretexto de que Você se serviu para
escrever uma obra, que é das melhores que já li sobre Espiritismo. Com efeito,
nela se nota muita erudição, muita sinceridade, muita fé, um raciocínio claro e
lúcido, lógica irretorquível, além do belo estilo, que todos nós lhe
conhecemos. Isto, é claro, a não falarmos das entrelinhas, que são muito mais
importantes ainda ...
Mas, de tudo isso, nada me
surpreendeu; desde que o conheço, o que me poderia surpreender seria a ausência
de tais predicados em uma obra sua.
Aquele pretexto é que foi o Diabo...
com maiúscula! Pois Você escreve um livro de tal porte,
para responder ao despacho do digno e sincero Diretor do Ensino, de S. Paulo?!
Que queria,
então, Você que ele tivesse feito?!
Pois, se ele sabe, tanto lá do íntimo,
que “...todas as Igrejas sempre protestaram contra a subordinação da fé ao
raciocínio”; e se está sinceramente convencido disso; por outras palavras:
se, em seu conceito, religião é sinônimo de estupidez e ignorância, queria Você
que ele considerasse o Espiritismo uma religião?! . .. É claro que não podia
ser. O honrado Diretor do Ensino sabe perfeitamente - está-se vendo - que religião
é o Catolicismo; e, portanto, segundo o seu modo de ver, somente este poderá e
deverá ser ensinado, como religião, nas escolas. Essa é a opinião sincera e
franca do ilustrado e culto Diretor do Ensino, de S. Paulo. E ele procedeu,
pois, de perfeito acordo com o que lhe indicava o seu esclarecido critério.
Agora, nós, que sabemos que tal
conceito, a respeito do que seja religião, está errado, temos que admitir que
ele esqueceu o que deve ter aprendido na escola primaria - naturalmente
enquanto fez o curso superior; - e, assim, é claro que Você não deveria ter
perdido o seu tempo a escrever uma obra de tanto valor, mas antes se deveria
ter limitado a fazer o que eu faria, se ainda existisse o meu Heraldo, de saudosa memória, e que se
resumiria em aconselha-lo a que fosse de novo para a escola primária relembrar
o que esqueceu, ou, quando menos, recomendar-lhe a consulta de dicionários,
desde os melhores aos mais "vagabundos"...
Então, ele veria que religião e
estupidez são coisas que nem sempre andam a par, e que,
muito ao contrário, a verdadeira fé é precisamente aquela em que entra o raciocínio, como
sucede no Espiritismo. E ficaria sabendo que fé ou religião sem raciocínio são
simples fanatismo religioso, e nada
mais...
Aliás, seja dito de passagem, a lei
não deveria permitir que pessoas absolutamente ignorantes
de um assunto pudessem opinar sobre ele, e julgar, sob tal aspecto, os
requerimentos de cidadãos que têm absoluto direito de verem respeitadas as suas
prerrogativas, que não podem nem devem estar sujeitas ao arbítrio, prepotência
e faccíosísmo de quem quer que seja.
*
Mas, afora o pretexto de que Você se
serviu para escrever o livro, não há dúvida de que
ele veio prestar assinalados serviços à doutrina; porque não é somente o Sr.
Diretor do Ensino
que ignora que o Espiritismo seja religião - o que se compreende perfeitamente por
nada entender ele do assunto, apesar a presunção que o levou a escrever: “Por
não ser
uma religião (o Espiritismo), como se
acaba de demonstrar...” , isso depois de não ter demonstrado
coisa nenhuma; - entre os que se dizem espiritistas também há quem afirme a
mesma enormidade, fazendo-o mesmo alguns de boa fé. E é para estes que o livro
era uma necessidade, a não falarmos em que, com ele, Você divulgou inumeráveis
conhecimentos, que, para noventa e nove por cento dos que o lerem, serão
verdadeiras novidades. A maioria, porém, dos pseudo espiritistas, que negam ao
Espiritismo a característica de religião,
fazem-no de má fé, por despeito e por oposição sistemática à Federação Espirita
Brasileira. Esses procuram hostilizar, por todos os meios, a Federação,
servindo-se, para isso, de todos os pretextos, mesmo os mais tolos. Ainda há
pouco, um deles, em artigo que me mostraram, e a que eu não respondi por uma
questão de higiene moral, afirmava que: “recentemente, muito se disse e se vem
dizendo insistentemente de outrem (este outrem, sublinhado pelo autor do
artigo, sou eu) quanto a uma presusida
dissensão com alguns membros da Federação...”
Ora, Você sabe perfeitamente que tal
asserto (não confundir com acerto)
rima, mas não
verdade, é tudo quanto há de mais bobo, e só serve para demonstrar o que acima
afirmei; isto é: que há, aí, um grupo de despeitados, que se servem dos
pretextos mais tolos para
hostilizar sistematicamente a Federação.
E, seria o caso de se saber, antes
do mais, em que poderia afetar à Federação, ou aos seus dirigentes, qualquer
dissensão entre eles e a minha importantíssima pessoa, apesar da diferença
moral que existe entre mim e os do tal grupo... E, depois, a verdade é que,
entre mim e os Diretores da Federação nunca houve dissensão nenhuma, no
sentido, caviloso em que o referido cavalheiro empregou o termo. Se algum dia
houve discordância no nosso modo de ver sobre alguns pontos de doutrina, e se
ainda continua a havê-la, isso só prova que, sendo o Espiritismo uma doutrina
em que se raciocina livremente, nenhum de nós aceita isto ou aquilo somente
porque outrem o diga; e, aí, estamos todos dentro da doutrina.
Aliás, Você lembra-se da sinceridade
e lealdade com que então discutimos, e que fazia que Você lesse os meus
artigos, e eu os seus, antes de serem publicados. Mais ainda: o que os do tal
grupo ignoram, e não poderão mesmo compreender, é que quem levava, para o
jornal em que foram publicados, os artigos com que Você respondia aos meus, era
eu mesmo; e, no fim de tudo, ria-mo-nos ambos, como amigos bons e leais, que
sempre fomos, como ainda hoje continuamos a rir-nos de tudo isso, não obstante
estarmos em desacordo sobre alguns pontos de doutrina... E o que também
ignoram, e é bom que saibam os do tal grupo, é que - embora divergindo, neste
ou naquele ponto, do modo de ver de alguns dos Diretores da Federação, e
admitindo, como não poderia deixar de admitir, que eles, como eu e todos nós,
estão sujeitos a errar - sempre considerei, os que compõem a diretoria da
Federação, pessoas honradas, sinceras e dignas, que é o que, infelizmente, não
posso dizer de muitos dos que os atacam sistematicamente... a eles e a mim.
*
De forma que a tal dissensão entre
mim e a Federação Espírita Brasileira é do mesmo gênero
da ignorância e má fé que os levam a defender o ponto de vista do Sr. Diretor
do Ensino,
de S. Paulo; e todos eles têm muito que aprender no seu livro, embora ele seja,
sob tal
aspecto, muito mal empregado.
Acho mesmo que Você se desviou muito
do preceito escriturístico , que nos aconselha a "não deitar pérolas aos
porcos"... em sentido figurado, já se vê...
E faça favor de me não tornar a
chamar "jovem Sousa", nem "Prado florido" ...
Quanto ao mais, um afetuoso abraço
do seu de sempre
SOUSA do PRADO.
Rio, 3 de Outubro de
1942
Nenhum comentário:
Postar um comentário