Folha seca de Outono
José Brígido (Indalício
Mendes)
Reformador (FEB) Fevereiro 1947
Indicando um jequitibá enorme, que
ameigava a terra com a sua sombra confortadora, o ancião, enxugando uma
lágrima, que bem podia ser de saudade como de amargura, comentou: - “Aquela árvore
que domina a chácara do solar em que nasci, majestosa
e serena em sua grandeza, poderia contar muita coisa bela, muita coisa triste,
muitos romances encantadores e tragédias inúmeras... Poderia, sim. Mas a
sabedoria de Deus não permite que as árvores falem... Talvez para que elas não
percam sua beleza, não maculem sua inocência e não a envileçam com a narrativa
de atos que fogem à harmonia da Natureza ...” E o velhinho calou-se. E tirou da
face, com a mão encarquilhada e trêmula outra
lágrima fugidia...
*
Tudo está certo na vida, até mesmo
os erros humanos. Parecerá estranho que assim seja, mas, considerada a
diferença de grau evolutivo de cada indivíduo, compreende-se que os erros e
agravos de uns, amalgamados aos acertos e ao bom ânimo de outros, formam fases,
estádios de progresso, que cada qual vai vencendo na medida de suas possibilidades.
Quando a superioridade moral dum homem é exercida no sentido de corrigir a
inferioridade de outros, pode-se dizer que o progresso se encontra em marcha.
Os mais fortes terão que dar a mão aos mais fracos, sem o que retardarão o
próprio desenvolvimento. Quem mais tiver, mais será obrigado a dar; quem der
mais, muito mais receberá. Este simples axioma evidencia a necessidade de o homem
ser progressivamente menos egoísta, Lá está no Evangelho de Lucas: "...Perdoai
e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado".
*
- E os homens ainda se queixam da
vida, meu filho; ainda a maldizem, esquecidos de que tudo devem, trânsfugas que
são do espírito fraterno que deveria unir fortemente as criaturas. São ricos de
bênçãos e dádivas, porém pobres, paupérrimos de coração. Mais depressa enxergam
o argueiro no olho de seu semelhante, do que a trave no próprio... Ah!
se eles fossem como as árvores, que tudo recebem de Deus, nada dos homens, mas a
estes dão tudo - sombra, flores, frutos, seiva e lenho - como seriam mais
felizes! É o egoísmo que os desgraça, que os atira às guerras, gerando a dor, o
ódio, a fome, o luto e o desespero. Todavia, apesar de tantas contradições,
tudo está certo no concerto universal, porque Deus escreve direito por linhas tortas.
Algum dia o homem vencerá a si mesmo e,
então, será mais belo, mais puro, ainda melhor que as árvores!
*
A Verdade anda solta por aí: no céu,
nas estrelas, na terra, no mar, nas montanhas, na poeira das estradas, no canto
dos pássaros, na glória e na decadência dos povos, no riso e no gemido do homem...
Cada qual a admite a seu jeito, a maioria, que é imediatista por vício de
educação, quer pôr o dedo em cima dela, como Tomé, para se certificar da
realidade sensorial... E quanta coisa, filho meu, escapa ao nosso tato, mesmo a
todos os nossos sentidos! É que a Verdade é tão simples que muitos nela não creem...
O famoso sonho de Públio Cornélio Cipião, contado por Cícero, nada mais foi que
uma revelação estupenda. Vejamos alguns trechos: “A Vida é caminho para o céu e
para esta assembleia, dos que já viveram, e que, libertos do corpo, habitam
este lugar que estás vendo”, E também: “Esforça-te, sim, e sabe que tu não és
mortal, mas apenas teu corpo; nem és o que por tua imagem se parece, mas cada
qual é o seu espírito e não essa figura que se pode mostrar a dedo”. E ainda: “Exerce,
pois, as forças de tua alma em funções úteis”. E mais: Decerto, vivem -
respondeu - todos aqueles que escaparam dos vínculos corpóreos como de
cárceres; pois em verdade, aquilo a que chamas vida, é que é a morte”. Nem foi
por outra razão que o Cristo disse, de uma feita: “Eu sou a ressurreição e a
vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá...”
*
E Pitágoras fala pela palavra de Ovídio
em “Metamorfoses”: “Homens assombrados pelo medo da gélida morte, porque temeis
o Estige (na
mitologia grega, é uma ninfa e também um rio infernal no Hades dedicado a ela), as trevas e as
penas de um mundo imaginário, nomes vãos, fábulas dos poetas? Ou consuma a
chama os vossos corpos, ou em podridão se desfaçam, não julgueis por isso
sofrer mal algum: as almas são imortais! e sempre, deixando um domicílio, vão
habitar e viver em outro. Eu mesmo, bem me lembra que era Euforbo Pantoides no
tempo da troiana guerra e que me atravessou o peito a pesada lança do Atrida
mais moço”. Reconheci há pouco, no templo de Juno, em Argos, o escudo que meu
braço trazia.” E aduz: "Nascer não
é mais que começar a ser sob nova figura. E morrer é deixar de existir sob a
forma antiga”. Diante de todas essas verdades, é mister que esta outra jamais
seja esquecida: “Não se poderá viver sem a pureza da alma”, salientou Lucrécio,
ao fazer o elogio de Epicuro.
*
O ancião silenciou. Meditou um
instante, fechou os olhos cansados e acrescentou: “Meu filho: aquela velhinha
que passa, todas as manhãs, vacilante, mas corajosa, diante da tua janela, é um
símbolo. A face macilenta, marcada pelos anos que já viveu, parece uma pobre
folha seca de outono... Está na idade em que a alma pode recordar fugazes momentos
de uma primavera de luz, mas o corpo já se divide entre um outono triste e um
inverno mais triste ainda... Entretanto, ela já esplendeu nos salões iluminados
da sociedade; perturbou corações juvenis; fez a alegria e a amargura de muitos
admiradores. Porém, de tanto se lembrar de si, esqueceu do próximo... Entrementes,
a Lei continuava exercendo
seus inexoráveis efeitos, e, um dia, a primavera lhe foi fugindo, fugindo... E
quando aquela mulher formosa se apercebeu da situação, o Sol já se escondia
atrás do monte e o crepúsculo tingia o céu de tons rubro-violáceos, precedendo
a noite. E o tempo passou ... E ela nada fez de útil... Escrava de futilidades,
viveu a vida artificiosa da fantasia, desprezando a realidade que a cercava...
E assim permitiu que a terra, em seu derredor, permanecesse estéril ...
*
- Meu filho: aquela velhinha é um símbolo.
Melancolicamente, um símbolo...
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