2a O dogma
espírita
por Luciano dos Anjos
in Reformador (FEB) Jan-Fev 1964
Passemos
afinal ao ponto capital deste trabalho e que gira em redor do último termo em
questão: dogma. Diga-se antes de tudo
que ele se origina do verbo grego "dokein"
(pensar), significando, na verdadeira acepção etimológica: pensamento,
doutrina, convicção. Os antigos queriam significar com essa palavra uma firme
resolução e uma decisão de autoridade, quer no campo da Ciência, quer no da
vida do Estado. Neste último sentido encontramo-la no bojo da própria Bíblia,
como podemos verificar dos seguintes exemplos:
"Se bem parecer ao rei, decrete-se que sejam
mortos, e nas próprias mãos dos que executarem a obra eu pesarei deles dez mil
talentos de prata que entrem para os tesouros do rei" (Et.3-9); "Saiu o decreto, segundo o qual deviam ser
mortos os sábios; e buscaram a Daniel e aos seus companheiros, para que fossem
mortos." "Agora, pois, ó
rei, sanciona o interdito, e assina a escritura, para que não seja mudada,
segundo a lei dos medos e dos persas, que se não pode revogar" (Dn.
2-13 e 6-8); "Naquele dia foi
publicado um decreto de César Augusto, convocando toda a população do império
para recensear-se" (Lc. 2-1); "Ao passar pelas cidades, entregavam aos irmãos, para que observassem,
as decisões tomadas pelos apóstolos e presbíteros de Jerusalém."
"Aos quais Jasom hospedou. Todos
estes procedem contra os decretos de César, afirmando ser Jesus outro rei"
(At. 16-4 e 17-7); "Aboliu na sua
carne a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que dos dois criasse
em si mesmo novo homem, fazendo a paz" (Ef. 2-15); "Tendo cancelado o escrito de dívida, que era
contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu-o
inteiramente, encravando-o na cruz" (Cl. 2-14); "Pela fé, Moisés, apenas nascido, foi
ocultado por seus pais, durante três meses, porque viram que a criança era famosa; também não ficaram
amedrontados pelo decreto do rei" (Hb.
11-23),
Ora,
com o tempo a palavra foi ganhando sentido mais radical e acabou por traduzir o
ponto fundamental e indiscutível duma doutrina religiosa e, por extensão, de
qualquer doutrina ou sistema. Acabaria por significar, ainda, o conjunto das
doutrinas fundamentais do Cristianismo, segundo proposta dos alexandrinos.
Desde o quarto século, paulatinamente tem início a restrição do termo às
doutrinas de fé. O dogma, assim, não
há de ser palavra tão feia, tal como muita gente pensa, Até que é bastante
inocente, Começa entretanto a assustar quando é adjetivada. Por exemplo: o
dogma católico ("dogma catholicum"). Ganha então um significado inteiramente novo e muito diferente
daquele comum, não tanto pelo que exprima, mas pelas premissas que lhe
antecedem a decretação. No caso específico desse dogma temos então "uma
verdade religiosa revelada sobrenaturalmente por Deus e, como tal, proposta a
crer pela Igreja" ("Teologia Dogmática", de Bernardo Bartmann,
pág. 15 da 1ª edição brasileira). E enquanto o clero cuidasse apenas de propor
realmente dogmas cristãos, extraídos do Evangelho, não seria tanto de se
condenar sua atitude, senão apenasmente na parte em que margeia a Razão e
interpreta a Boa-Nova a portas fechadas, a pretexto dum carismo que se arrogou
arbitrariamente ou da pretensa assistência privilegiada do Espírito Santo, Por
isso, com esse nome, a Igreja passou a propor (antes, impor) uma série de
tolices e absurdos, subproduto de concílios solenes e abusivos decretos papais.
Vejamos um pouco mais o que o erudito Bernardo Bartmann ensina na
sua "Teologia Dogmática", à página 16 da edição citada:
"Visto
que o dogma, tomado em sentido estrito, exige a Revelação sobrenatural,
segue-se daí que as verdades que a Igreja ensina, não hauridas porém naquela
fonte, são dogmas impropriamente ditos. " Note-se que é um respeitável
membro do clero que, honestamente, faz a afirmativa, contrariando, de certa
forma, o normal comportamento da cúpula eclesiástica. Difícil se torna,
contudo, convencê-la, a ela, à Igreja, de quanto se afasta, deliberada ou
inocentemente, das fontes da Revelação, na maioria, na grande maioria dos seus
dogmas.
Confirmemos,
de nossa parte, a imprescindibilidade de que o dogma, para ser autêntico, tenha
de estar contido na Revelação. Nada há de repugnante, por exemplo, no dogma da
existência de Deus. Os espíritas não podem rejeitar essa afirmativa e têm
todos, igualmente, convicção dessa Verdade: Os que a não têm deixam automaticamente
de ser espíritas, embora sua posição de forma alguma lhe
obste a entrada no reino dos céus.
Há
dois aspectos, entretanto, que já nesta altura não podem deixar de ser
devidamente esclarecidos. O primeiro diz respeito à extensão da Revelação, em
face da qual espíritas e católicos discordam. Enquanto estes consideram-na,
estranhamente, encerrada com a morte de João Evangelista, o último dos
apóstolos, aqueles, considerando as promessas do próprio Cristo, aceitam a sua
complementação progressiva. Por isso, às vezes, nós, os espíritas, vamos buscar
outros pontos de convicção naquela que é a Terceira Revelação e que, de resto,
não contrariou sequer a primeira ou a segunda, mas apenas esclareceu-as melhor.
Lembramos
aqui que foi a falsa convicção do farisaísmo nos seus dogmas que encegueceu os
seus adeptos e impediu-os de raciocinar sobre as novas e progressivas verdades
que Jesus trouxe ao mundo. No mais, essa história de afirmar (aliás,
gratuitamente) que a Revelação se encerrou com o Novo Testamento deixa muito
mal o Criador que, nessa hipótese, teria esquecido completamente todos os povos
anteriores ao Cristo, permitindo que somente os que nasceram de sua época em
diante (desde que se neguem as existências passadas e que o Espírito nasce uma
só vez na Terra) viessem a ser premiados com o conhecimento de verdades maiores
ou, antes, das verdades definitivas sobre tudo e sobre todos, A progressividade
espírita da Revelação não conspurca assim o Criador, apresentando-O como um Ser
realmente Sábio e Perfeito que vai permitindo às Suas criaturas aprender e evoluir, em todas as épocas, à medida que as
Verdades Eternas lhes vão sendo reveladas.
Mas,
mesmo que se quisesse - apenas para argumentar - raciocinar em torno tão-somente
da Revelação Cristã, como a última trazida ao mundo, ainda assim os pontos de
vista espíritas afloram muito mais natural e fluentemente do que aqueles que
precisam de concílios para ser compreendidos e proclamados. É o caso da
reencarnação.
O
segundo aspecto que prometemos referir, além da extensão da Revelação, é o da
aplicação da Razão à própria Revelação. É assim que, conforme já frisamos
seguidamente, somos racionalistas, enquanto a Igreja faz aditar à Revelação a
chamada Tradição (símbolos da fé, concílios, escritos dos padres, etc.), a fim
de proclamar os seus dogmas. Daí a cautela da Santa Madre: "Há limites que
a especulação não pode transpor sem perigo para o dogma" ("Teologia
Dogmática", página 113). A Igreja, como já vimos, não admite a aplicação
da Razão aos dogmas que ela propõe, esquecida de que, nos concílios, é o puro
racionalismo que em última análise orienta os debates e faz gerar as soluções
decretadas. E se assim não fora teríamos o caos das ideias no seu mais amplo
sentido.
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