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Que definição se pode dar ao espírito?
O que a esse respeito se encontra na
primeira das obras fundamentais do Espiritismo (1), suficiente para os que se.
iniciam no estudo elementar das grandes verdades espiritualistas e, portanto,
necessitam receber uma impressão geral do seu conjunto, que só a meditação e a
pesquisa analítica mais tarde se encarregarão de aprofundar, é tudo quanto se
pode conceber de vago e indeterminado.
(1) Allan Kardec, O LIVRO DOS
ESPIRITOS, parte 2ª, cap. I ns. 76 e seguintes.
Nem de outro modo poderia ser,
atendendo-se a que, em nosso estado atual de evolução, como o assinalamos ao
começar este capítulo, a natureza íntima do espírito escapa às operações do
nosso entendimento. Daí não se segue, todavia, que devamos renunciar a sua
indagação.
Coisas há que ao homem não é
possível exatamente conceber, mas cuja realidade inelutavelmente se lhe impõe,
como por exemplo a ideia da eternidade e do infinito.
Se, com efeito, recuando pelo
pensamento o transcurso das idades, imaginarmos um começo, um ponto de partida
para as gestações do Cosmos, surgirá imediatamente uma interrogação: "mas
antes disso que haveria?" E poderemos ir assim remontando através os
tempos, de anterioridade em anterioridade, em risco de se nos extraviar a
mente, sem jamais encontrar o primitivo imaginaria elo dessa cadeia, para
diante ou para trás, interminável.
O mesmo se dá relativamente ao
infinito. Quiséssemos estabelecer, por pensamento ainda, um limite às insondáveis
extensões em que, acima de nós, em todos os sentidos, rolam os mundos e os sistemas
planetários, gravitando em suas órbitas inflexíveis, logo nos ocorreria
perguntar o que haveria além desse limite e assim indefinidamente.
Forçoso é, pois, curvar-nos, sem as
compreender, diante dessas duas formidáveis realidades que se nos impõem: a
eternidade no tempo e o infinito no espaço.
Algo de semelhante é o que se dá em
relação à essência espiritual que nos anima. A sua natureza intima é para nós
inconcebível, mas nem por isso menos imperiosa se nos revela a sua existência.
E, para o demonstrar, nenhum método
se nos afigura mais adequado nem melhor que o introspectivo, cuja fórmula
consagrada é o celebre aforismo sobre que Descartes erigiu todo o admirável
monumento de sua filosofia: cogito, ergo
sum - "penso, logo existo."
É certo que, entre as vitoriosas
afirmações, fundadas na observação, com que os espíritas acenamos à
incredulidade do século, demasiado exigente de comprovações, por assim dizer,
palpáveis, figura a de que os espíritos, em suas inumeráveis manifestações,
apresentam caracteres de substancialidade ou, por outros termos, se mostram
revestidos de um corpo que os define e atesta serem eles, não meras entidades
abstratas, incapazes por natureza de intervir em nosso meio físico, senão seres
objetivos, dotados de um puder de ação sobre a matéria, que vai desde os
simples movimentos e deslocamento de objetos, aparentemente
sem contato, até à completa materialização da sua própria forma.
Legitimamente formulada com o apoio
de múltiplos fenômenos, essa afirmação deve com tudo entender-se em relação aos
caracteres exteriores da entidade que tais fenômenos , não porém do espirito
propriamente dito, considerado em sua essência intima. Esta - repetiremos -
permanece não somente inacessível ao nosso entendimento, mas, por isso mesmo, indefinível.
E, todavia, a existência do
espirito, independente de toda forma que revista, de toda plasticidade a que
porventura se associe, ou seja ele denominado, como por certos espiritualistas,
"um centro de consciência," ou considerado uma força individualizada
e consciente, se assim o preferirem, não é de modo algum inconcebível nem escapa
às possibilidades da demonstração.
Que nos diz a ciência do mecanismo
do universo e das infinitas manifestações na vida em todas as ordens da criação?
- Que obedecem a forças, cósmicas ou vitais, conforme devam ser classificadas,
revelando a existência de leis, umas e outras incompreensíveis em sua essência,
mas reconhecidas como de incontrastável evidência em seus efeitos. Será menos
admissível a existência dessa outra força, que de si mesma em nós dá testemunho
e que, não só por isso, como por seus efeitos e manifestações igualmente
proclamamos, além de consciente e individualizada, inteligente e volitiva?
Sim. em nós há um espirito, ou -
como mais propriamente se deverá dizer - nós somos um espírito ,e tal nos
sentimos, graças à faculdade de pensar, de sentir e de querer. Como essa força
imponderável, que ele é, chegou, através de ciclos de milenária evolução, a se
individualizar e a tingir, no homem, a plenitude consciente, é o que teremos
ocasião de examinar mais adiante, quando abordarmos, em seu aspecto integral,
-esse 'problema. Por agora o que nos preocupa demonstrar, como base de ulteriores
e sucessivos desenvolvimentos, é a realidade do espirito que, antes de tudo e
sobretudo, somos.
E para isso o método a adotar,
equivalente senão superior à observação direta or exterior, tantas vezes ilusória,
é, como o indicamos mais acima; a observação direta ou interior, ou
introspecção.
"Pense, logo existo",
continua, na sucessão dos séculos, a ser o invulnerável axioma. E não somente
"penso," mas "sinto e quero", constituem a trilogia
demonstrativa da entidade espiritual em seu sentido próprio ; pensamento que se
não confunde com o órgão que o transmita, sentimento caracterizadamente
distinto do objeto a que se ,dirija, e vontade que precede o ato em que se
realize.
Pelo pensamento, ora mergulha o
espirito nos recessos de sua própria consciência e se examina e julga e
sente-se um ser distinto de toda a criação, posto que dela faça parte, dando
assim testemunho de sua identidade, confirmada pelos subsídios da memória, que
o habilita a reconhecer-se o mesmo, em suas faculdades e aquisições, através os
variadíssimos sucessos de sua vida inteira (1): ora se eleva, nas, abstrações
da metafísica, da matemática ou da filosofia, acima da limitada esfera que o retém
cativo e, pela capacidade de generalização que Ihe é peculiar, concebe, deduz
as leis do infinito e sente-se a elas vinculado, numa sorte de dilatação da sua própria
essência.
(1) E quando mesmo, em virtude de acidente
fisiológico, se produza a amnésia parcial ou total, como nos casos numerosos de
que se o ccupa Th. Ribot em Sua obra LES MALADIES DE LA MÉMOlRE, não subsiste
menos os o sentimento, embora restrito, da identidade pessoal. Por isso
consideramos a memória normal como subsidiária para esse resultado, no homem.
Nesses momentos de contemplação
interior, que o identifica, pelo único poder do pensamento, com as magníficas da
criação, na ordem moral como na ordem física, quem seria capaz de definir o lugar
que exatamente ocupa o espírito no espaço?
É esse poder de ampliar a órbita da
consciência individual a ilimitados descortinos que caracteriza os seres supremamente
evoluídos. Que diferença haverá entre a inteligência obscurecida de um campônio
e a iluminada mentalidade de um pensador de gênio? - Uma diferença de graus. Enquanto
um tudo refere às suas necessidades pessoais, o outro se debruça no cenário da
vida universal, para lhes auscultar os ritmos e enfeixa-los em sobre-humanas
expressões.
(1) E quando mesmo, em virtude
de acidente fisiológico, se produza a amnésia parcial ou total, como nos casos
numerosos de
que se ocupa Th. Ribot em Sua obra LES MALADIES DE LA MÉMOlRE, não subsiste menos
o sentimento, embora restrito, da identidade pessoal. Por isso consideramos a
memória normal como subsidiária para esse resultado, no homem.
O mesmo se dá com o sentimento,
considerado em todas as modalidades de sua dupla escala - negativa e positiva.
Consideramos negativos todos os
matizes do sentimento que, fundados em sua raiz comum, o ódio, filho, a seu
turno, do egoísmo, se desdobram em aversão, rancor, inveja, ciúme e alguns
outros, por isso que o seu efeito, como na polarização isonômica do imã magnético, é de repulsa, ao passo que o amor,
em todos os seus derivados, constitui a gama positiva, ou de atração .
Desprezadas, entre esses dois polos do
sentimento humano, as gradações intermedias, cuja apreciação,
desnecessariamente, para o fim demonstrativo que temos em vista, nos levaria
demasiado longe, ponderemo-los só em seus extremos.
Que é o ódio? - Uma aptidão
puramente moral, que se pode traduzir num ato, de vingança ou de desprezo, mas
que de todo modo permanece abstrata em sua trama íntima, relacionada sem dúvida com os motivos que a
geraram e com o objeto a que se dirige, sem que, todavia, com eles se confunda.
Exemplifiquemos, para tornar mais
claro o raciocínio. Quando um individuo
se toma de ódio contra outro, por haver dele recebido ofensas graves ou por se
sentir prejudicado no que considera a sua honra, a sua reputação ou os seus
haveres, os fatos concretos ou os motivos determinantes daquele impulso anímico
podem ser considerados o seu excitante, como o causador de tais males será o
alvo em que se objetive. Mas os motivos do ódio e o seu objeto não são mais que
o duplo termo, inicial e final, do sentimento que, provocado por uns, se exerce
sobre o outro, mediante uma série concorrente de operações mentais, em que a
extensão dos danos recebidos, a depreciação do conceito pessoal deles decorrente
e outros fatores semelhantes terão sido instintivamente ponderados.
Fenômeno idêntico, no que respeita a
sua gênese e objetivação, é o que se verifica em relação ao sentimento oposto,
com a diferença, porém, de que, por sua expansiva natureza, chega a adquirir
incalculável amplitude.
É assim que o amor, que tanto se
estabelece de uma a outra criatura, como abrange o círculo da família e da pátria,
pode estender-se, cada vez mais despersonalizado, à humanidade e desdobrar
mesmo as suas raias no infinito. Que é o amor a Deus, peculiar aos seres
eminentemente espiritualizados que tem, de longe em longe, visitado o nosso
mundo e de sua passagem deixado imperecíveis traços na história religiosa de
todos os tempos, senão a comovedora afirmação dessa capacidade expansiva do espírito,
que assim pode irradiar e ascender ao próprio Criador? Não o dizia S. Bernardo
num de seus místicos arroubos? - "Tua alma, ó homem, é de grande extensão e
nenhuma coisa pode enchê-la nem satisfazê-la senão Deus."
Mesmo, porém, sem remontarmos a tais
culminâncias do surto adorativo, basta considerar o sentimento humano em tudo o
que ele tantas vezes representa de nobre, espiritual e desinteressado, como o
heroísmo, a abnegação, o espírito de sacrifício, conduzido aos extremos da
imolação da própria vida por amor de uma ideia, ou no cumprimento austero de um
dever, para nos convencermos de que no homem, sobranceiro às contingências da
carne e dos sentidos, o espírito é a grande, a magnífica realidade soberana.
Percorrei as páginas da história,
não somente a dos feitos heroicos do passado, mas a destes dias, que se vão vertiginosamente
sucedendo, e contemplareis, umas vezes, as figuras épicas dos mártires da fé,
politica ou religiosa, afrontando as torturas, o cativeiro, a própria morte, com
uma serenidade e intrepidez, que são o mais eloquente desmentido ao consagrado
instintivo de conservação: outras vezes, entre os contemporâneos efêmeros sucessos,
ao lado dos mais baixos conflitos de egoísmos, que serão por muito tempo ainda,
para a nossa espécie, o evidente signo de sua transitória inferioridade,
vereis, numa iluminação de súbita epopeia, o desdobrar de cenas de incomparável magnitude.
Um único exemplo ilustrativo bastará
para objetivar a nossa tese.
Majestoso nas dimensões das suas
linhas como na precisão dos seus movimentos - última palavra da ciência e da
arte aplicadas à indústria da navegação - um transatlântico, levando a seu
bordo, como uma enorme cidade flutuante, centenares de descuidosos passageiros,
singra tranquilamente o oceano. Alta noite, burlando as cautelas e previsões da
náutica, e a experimentada vigilância do piloto, uma montanha de gelo
igualmente flutuante, um iceberg que o polo rejeitara, colide a proa do navio.
É o naufrágio que começa. A postos, o comandante e seus oficiais organizam,
dirigem, promovem o serviço de salvação dos passageiros. O pânico, que se
estabelece, não impede contudo que entre estes, disciplinarmente cingidos à
regra que para tais casos prevalece e que manda sejam em primeiro lugar salvas
as senhoras e as crianças, os mais comovedores testemunhos de submissão e até
de deferência se observem.
Largam os primeiros, insuficientes
escaleres e já não há tempo de providenciar sobre a massa de passageiros que a
bordo permanece. A catástrofe se
precipita; mas a orquestra de bordo executa calmamente um hino religioso, que
os náufragos entoam; o encarregado da telegrafia Marconi conserva-se em seu
posto, percutindo os sinais que transmitirão pelo espaço, em demanda de outros
barcos, a trágica notícia e o pedido de
socorros; o navio submerge rapidamente e com ele, na impavidez olímpica dos
heróis da lenda, rodeado de sua oficialidade, o comandante se deixa subverter
no abismo líquido, não tendo, com todos os seus companheiros de sinistro, mais
testemunhas que a imensidão do oceano sob os pés e, ao alto, a fulguração dos astros impassíveis.
É a catástrofe do TITANIC, ocorrida
em águas da América, há cerca de três anos (1), que aludimos, mais ou menos
idêntica, em suas impressionantes circunstâncias, a tantas outras de que tem
sido teatro a solidão dos mares – únicos, imotos espectadores de tais supremos e resignados heroísmos.
(1) Estas linhas eram escritas em 1915.
Pois bem, o que esses heróis tranquilos
do dever, como aqueles mártires da fé a que nos referimos, engolfados na
contemplação interior de um ideal, tem afirmado é a realidade viva e palpitante
desse espírito que, escravizado aos instintos da animalidade, nos graus
inferiores da evolução, a partir de um certo estádio, que a cultura moral
sobretudo favorece, os sobrepuja, podendo alcandorar-se a sobre-humanas
atitudes.
Não as alcançará, porém, o homem
senão quando em si mesmo houver desenvolvido e cultivado esse poderosíssimo
fator que, com o pensamento e o sentimento, constitui a trilogia demonstrativa
da existência do espírito: a vontade.
Onde
reside ela?
A ciência materialista pretende haver
determinado no cérebro um "centro volitivo", relacionado com a
complicadíssima trama do sistema nervoso. Para invalidar, porém, essa hipótese,
basta recordar as observações que a tal propósito judiciosamente formulou o
doutor Paul Gibier, em sua ANÁLISE DAS COISAS, que
já tivemos ocasião de anteriormente mencionar.
"O que parece indicar - diz ele (1) - que
os diferentes movimentos da energia nervosa devem seguir o trajeto, que descrevi,
no cérebro, partindo de um centro volitivo, é que um homem atacado de paralisia
da metade do corpo (hemiplegia), embora seja incapaz de fazer agirem os centros
motores cerebrais destruídos, possui ainda a faculdade de querer o movimento
dos membros, que embalde se esforça ele em produzir. Esse fato permite supor que
a vontade tem sua sede independente e que não se acha mais especialmente
localizada num hemisfério central do que no outro. O mesmo acontece à consciência."
(1) Cap. I, págs. 50
Não é, com efeito, no cérebro que se
encontra a sede da vontade, embora para a traduzir em movimentos, como em geral para
todas as operações mentais, tenha que incidir a ação do espirito, no homem,
sobre determinadas localizações naquele órgão, admitida a teoria corrente a tal
respeito, posto que modernamente impugnada por alguns fisiologistas. Faculdade
por natureza abstrata, é ao espírito que
propriamente importa referi-la, assim em seu estado virtual, anterior ao ato,
como ao traduzir-se neste.
Nos próprios casos a que nos
repostamos, de heróis e mártires da fé ou do dever, não é essa força interior e
espiritual que se evidencia, ao serviço daquelas outras determinações morais?
Porque não basta ao indivíduo ter
fé, nem sentir que as injunções do dever lhe indicam proceder de um modo que
não de outro; cumpre manifestar em atos as resoluções da fé e o sentimento do
dever. Pensar e sentir, portanto, é muito, mas não é tudo. Se o pensamento e o sentimento
se conservam no puro domínio da ideologia, não dão fruto, ou quando muito
representam meras potencialidades subjetivas; precisam conseguintemente se
exteriorizar como realidades, por assim dizer, tangíveis, do que resulta que a
intervenção da vontade é indispensável.
Sem ela - acrescentaremos - sem essa
alavanca moral, a respeito de cuja educação e disciplina teremos ocasião de nos
externar muito adiante, quando tratarmos da iniciação dos crentes, para a
jornada de renovação espiritualista a que somos convidados, nenhuma obra é exequível.
É essa força, ao mesmo tempo, de aplicação
e resistência que conduz o homem à realização dos mais tenazes empreendimentos.
Por isso a enfeixou a sabedoria popular numa fórmula expressiva: "querer é
poder."
Quem quer o sacrifício das comodidades,
a morte de preferência à covardia ou ao perjuro, a perda das afeições distantes,
como no exemplo do naufrágio que citamos, em troca do cumprimento austero de um
dever que manda salvar os outros e perecer depois de os haver salvo, será o corpo, com as exigências
sensuais que lhe são peculiares, ou o espírito, senhor das próprias solicitações
que entendem com a natureza inferior, isto é, o egoísmo com todo o seu cortejo
de instintos subalternos?
Pensar, sentir e querer - eis,
conseguintemente, a trilogia afirmativa da entidade espiritual, que todos somos.
Agora - terminaremos, parodiando o iluminado
apóstolo dos gentios, no discurso incomparável sobre a caridade, em sua
primeira epístola aos Coríntios - permanecem estes três princípios: o corpo, o
perispírito e o espirito; o mais importante, porém, é o espirito.
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