segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

13 'Doutrina e Prática do Espiritismo'



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            Que definição se pode dar ao espírito?

            O que a esse respeito se encontra na primeira das obras fundamentais do Espiritismo (1), suficiente para os que se. iniciam no estudo elementar das grandes verdades espiritualistas e, portanto, necessitam receber uma impressão geral do seu conjunto, que só a meditação e a pesquisa analítica mais tarde se encarregarão de aprofundar, é tudo quanto se pode conceber de vago e indeterminado.

                (1) Allan Kardec, O LIVRO DOS ESPIRITOS, parte 2ª, cap. I ns. 76 e seguintes.

            Nem de outro modo poderia ser, atendendo-se a que, em nosso estado atual de evolução, como o assinalamos ao começar este capítulo, a natureza íntima do espírito escapa às operações do nosso entendimento. Daí não se segue, todavia, que devamos renunciar a sua indagação.

            Coisas há que ao homem não é possível exatamente conceber, mas cuja realidade inelutavelmente se lhe impõe, como por exemplo a ideia da eternidade e do infinito.

            Se, com efeito, recuando pelo pensamento o transcurso das idades, imaginarmos um começo, um ponto de partida para as gestações do Cosmos, surgirá imediatamente uma interrogação: "mas antes disso que haveria?" E poderemos ir assim remontando através os tempos, de anterioridade em anterioridade, em risco de se nos extraviar a mente, sem jamais encontrar o primitivo imaginaria elo dessa cadeia, para diante ou para trás, interminável.

            O mesmo se dá relativamente ao infinito. Quiséssemos estabelecer, por pensamento ainda, um limite às insondáveis extensões em que, acima de nós, em todos os sentidos, rolam os mundos e os sistemas planetários, gravitando em suas órbitas inflexíveis, logo nos ocorreria perguntar o que haveria além desse limite e assim indefinidamente.

            Forçoso é, pois, curvar-nos, sem as compreender, diante dessas duas formidáveis realidades que se nos impõem: a eternidade no tempo e o infinito no espaço.

            Algo de semelhante é o que se dá em relação à essência espiritual que nos anima. A sua natureza intima é para nós inconcebível, mas nem por isso menos imperiosa se nos revela a sua existência.

            E, para o demonstrar, nenhum método se nos afigura mais adequado nem melhor que o introspectivo, cuja fórmula consagrada é o celebre aforismo sobre que Descartes erigiu todo o admirável monumento de sua filosofia: cogito, ergo sum - "penso, logo existo."

            É certo que, entre as vitoriosas afirmações, fundadas na observação, com que os espíritas acenamos à incredulidade do século, demasiado exigente de comprovações, por assim dizer, palpáveis, figura a de que os espíritos, em suas inumeráveis manifestações, apresentam caracteres de substancialidade ou, por outros termos, se mostram revestidos de um corpo que os define e atesta serem eles, não meras entidades abstratas, incapazes por natureza de intervir em nosso meio físico, senão seres objetivos, dotados de um puder de ação sobre a matéria, que vai desde os simples movimentos e deslocamento de objetos, aparentemente sem contato, até à completa materialização da sua própria forma.

            Legitimamente formulada com o apoio de múltiplos fenômenos, essa afirmação deve com tudo entender-se em relação aos caracteres exteriores da entidade que tais fenômenos , não porém do espirito propriamente dito, considerado em sua essência intima. Esta - repetiremos - permanece não somente inacessível ao nosso entendimento, mas, por isso mesmo, indefinível.  

            E, todavia, a existência do espirito, independente de toda forma que revista, de toda plasticidade a que porventura se associe, ou seja ele denominado, como por certos espiritualistas, "um centro de consciência," ou considerado uma força individualizada e consciente, se assim o preferirem, não é de modo algum inconcebível nem escapa às possibilidades da demonstração.

            Que nos diz a ciência do mecanismo do universo e das infinitas manifestações na vida em todas as ordens da criação? - Que obedecem a forças, cósmicas ou vitais, conforme devam ser classificadas, revelando a existência de leis, umas e outras incompreensíveis em sua essência, mas reconhecidas como de incontrastável evidência em seus efeitos. Será menos admissível a existência dessa outra força, que de si mesma em nós dá testemunho e que, não só por isso, como por seus efeitos e manifestações igualmente proclamamos, além de consciente e individualizada, inteligente e volitiva?

            Sim. em nós há um espirito, ou - como mais propriamente se deverá dizer - nós somos um espírito ,e tal nos sentimos, graças à faculdade de pensar, de sentir e de querer. Como essa força imponderável, que ele é, chegou, através de ciclos de milenária evolução, a se individualizar e a tingir, no homem, a plenitude consciente, é o que teremos ocasião de examinar mais adiante, quando abordarmos, em seu aspecto integral, -esse 'problema. Por agora o que nos preocupa demonstrar, como base de ulteriores e sucessivos desenvolvimentos, é a realidade do espirito que, antes de tudo e sobretudo, somos.

            E para isso o método a adotar, equivalente senão superior à observação direta or exterior, tantas vezes ilusória, é, como o indicamos mais acima; a observação direta ou interior, ou introspecção.

            "Pense, logo existo", continua, na sucessão dos séculos, a ser o invulnerável axioma. E não somente "penso," mas "sinto e quero", constituem a trilogia demonstrativa da entidade espiritual em seu sentido próprio ; pensamento que se não confunde com o órgão que o transmita, sentimento caracterizadamente distinto do objeto a que se ,dirija, e vontade que precede o ato em que se realize.  

            Pelo pensamento, ora mergulha o espirito nos recessos de sua própria consciência e se examina e julga e sente-se um ser distinto de toda a criação, posto que dela faça parte, dando assim testemunho de sua identidade, confirmada pelos subsídios da memória, que o habilita a reconhecer-se o mesmo, em suas faculdades e aquisições, através os variadíssimos sucessos de sua vida inteira (1): ora se eleva, nas, abstrações da metafísica, da matemática ou da filosofia, acima da limitada esfera que o retém cativo e, pela capacidade de generalização que Ihe é peculiar, concebe, deduz as leis do infinito e sente-se a elas  vinculado, numa sorte de dilatação da sua própria essência.

                (1)  E quando mesmo, em virtude de acidente fisiológico, se produza a amnésia parcial ou total, como nos casos numerosos de que se o ccupa Th. Ribot em Sua obra LES MALADIES DE LA MÉMOlRE, não subsiste menos os o sentimento, embora restrito, da identidade pessoal. Por isso consideramos a memória normal como subsidiária para esse resultado, no homem.

            Nesses momentos de contemplação interior, que o identifica, pelo único poder do pensamento, com as magníficas da criação, na ordem moral como na ordem física, quem seria capaz de definir o lugar que exatamente ocupa o espírito no espaço?

            É esse poder de ampliar a órbita da consciência individual a ilimitados descortinos que caracteriza os seres supremamente evoluídos. Que diferença haverá entre a inteligência obscurecida de um campônio e a iluminada mentalidade de um pensador de gênio? - Uma diferença de graus. Enquanto um tudo refere às suas necessidades pessoais, o outro se debruça no cenário da vida universal, para lhes auscultar os ritmos e enfeixa-los em sobre-humanas expressões.

                (1) E quando mesmo, em virtude de acidente fisiológico, se produza a amnésia parcial ou total, como nos casos numerosos de que se ocupa Th. Ribot em Sua obra LES MALADIES DE LA MÉMOlRE, não subsiste menos o sentimento, embora restrito, da identidade pessoal. Por isso consideramos a memória normal como subsidiária para esse resultado, no homem.

             Num e noutro caso, porém, ha sempre uma alma que se afirma pelo pensamento, ou incida este sobre coisas triviais, ou se alcandore as concepções da verdade suprema e da beleza eterna.

            O mesmo se dá com o sentimento, considerado em todas as modalidades de sua dupla escala - negativa e positiva.

            Consideramos negativos todos os matizes do sentimento que, fundados em sua raiz comum, o ódio, filho, a seu turno, do egoísmo, se desdobram em aversão, rancor, inveja, ciúme e alguns outros, por isso que o seu efeito, como na polarização isonômica do imã  magnético, é de repulsa, ao passo que o amor, em todos os seus derivados, constitui a gama positiva, ou de atração .

            Desprezadas, entre esses dois polos do sentimento humano, as gradações intermedias, cuja apreciação, desnecessariamente, para o fim demonstrativo que temos em vista, nos levaria demasiado longe, ponderemo-los só em seus extremos.

            Que é o ódio? - Uma aptidão puramente moral, que se pode traduzir num ato, de vingança ou de desprezo, mas que de todo modo permanece abstrata em sua trama íntima,  relacionada sem dúvida com os motivos que a geraram e com o objeto a que se dirige, sem que, todavia, com eles se confunda.

            Exemplifiquemos, para tornar mais claro o raciocínio.  Quando um individuo se toma de ódio contra outro, por haver dele recebido ofensas graves ou por se sentir prejudicado no que considera a sua honra, a sua reputação ou os seus haveres, os fatos concretos ou os motivos determinantes daquele impulso anímico podem ser considerados o seu excitante, como o causador de tais males será o alvo em que se objetive. Mas os motivos do ódio e o seu objeto não são mais que o duplo termo, inicial e final, do sentimento que, provocado por uns, se exerce sobre o outro, mediante uma série concorrente de operações mentais, em que a extensão dos danos recebidos, a depreciação do conceito pessoal deles decorrente e outros fatores semelhantes terão sido instintivamente ponderados.

            Fenômeno idêntico, no que respeita a sua gênese e objetivação, é o que se verifica em relação ao sentimento oposto, com a diferença, porém, de que, por sua expansiva natureza, chega a adquirir incalculável amplitude.

            É assim que o amor, que tanto se estabelece de uma a outra criatura, como abrange o círculo da família e da pátria, pode estender-se, cada vez mais despersonalizado, à humanidade e desdobrar mesmo as suas raias no infinito. Que é o amor a Deus, peculiar aos seres eminentemente espiritualizados que tem, de longe em longe, visitado o nosso mundo e de sua passagem deixado imperecíveis traços na história religiosa de todos os tempos, senão a comovedora afirmação dessa capacidade expansiva do espírito, que assim pode irradiar e ascender ao próprio Criador? Não o dizia S. Bernardo num de seus místicos arroubos? - "Tua alma, ó homem, é de grande extensão e nenhuma coisa pode enchê-la nem satisfazê-la senão Deus."

            Mesmo, porém, sem remontarmos a tais culminâncias do surto adorativo, basta considerar o sentimento humano em tudo o que ele tantas vezes representa de nobre, espiritual e desinteressado, como o heroísmo, a abnegação, o espírito de sacrifício, conduzido aos extremos da imolação da própria vida por amor de uma ideia, ou no cumprimento austero de um dever, para nos convencermos de que no homem, sobranceiro às contingências da carne e dos sentidos, o espírito é a grande, a magnífica realidade soberana.

            Percorrei as páginas da história, não somente a dos feitos heroicos do passado, mas a destes dias, que se vão vertiginosamente sucedendo, e contemplareis, umas vezes, as figuras épicas dos mártires da fé, politica ou religiosa, afrontando as torturas, o cativeiro, a própria morte, com uma serenidade e intrepidez, que são o mais eloquente desmentido ao consagrado instintivo de conservação: outras vezes, entre os contemporâneos efêmeros sucessos, ao lado dos mais baixos conflitos de egoísmos, que serão por muito tempo ainda, para a nossa espécie, o evidente signo de sua transitória inferioridade, vereis, numa iluminação de súbita epopeia, o   desdobrar de cenas de incomparável magnitude.

            Um único exemplo ilustrativo bastará para objetivar a nossa tese.          

            Majestoso nas dimensões das suas linhas como na precisão dos seus movimentos - última palavra da ciência e da arte aplicadas à indústria da navegação - um transatlântico, levando a seu bordo, como uma enorme cidade flutuante, centenares de descuidosos passageiros, singra tranquilamente o oceano. Alta noite, burlando as cautelas e previsões da náutica, e a experimentada vigilância do piloto, uma montanha de gelo igualmente flutuante, um iceberg que o polo rejeitara, colide a proa do navio. É o naufrágio que começa. A postos, o comandante e seus oficiais organizam, dirigem, promovem o serviço de salvação dos passageiros. O pânico, que se estabelece, não impede contudo que entre estes, disciplinarmente cingidos à regra que para tais casos prevalece e que manda sejam em primeiro lugar salvas as senhoras e as crianças, os mais comovedores testemunhos de submissão e até de deferência se observem.

            Largam os primeiros, insuficientes escaleres e já não há tempo de providenciar sobre a massa de passageiros que a bordo permanece.  A catástrofe se precipita; mas a orquestra de bordo executa calmamente um hino religioso, que os náufragos entoam; o encarregado da telegrafia Marconi conserva-se em seu posto, percutindo os sinais que transmitirão pelo espaço, em demanda de outros barcos, a trágica notícia  e o pedido de socorros; o navio submerge rapidamente e com ele, na impavidez olímpica dos heróis da lenda, rodeado de sua oficialidade, o comandante se deixa subverter no abismo líquido, não tendo, com todos os seus companheiros de sinistro, mais testemunhas que a imensidão do oceano sob os pés e, ao alto,  a fulguração dos astros impassíveis.

            É a catástrofe do TITANIC, ocorrida em águas da América, há cerca de três anos (1), que aludimos, mais ou menos idêntica, em suas impressionantes circunstâncias, a tantas outras de que tem sido teatro a solidão dos mares – únicos, imotos espectadores de tais  supremos e resignados heroísmos.

            (1) Estas linhas eram escritas em 1915.

            Pois bem, o que esses heróis tranquilos do dever, como aqueles mártires da fé a que nos referimos, engolfados na contemplação interior de um ideal, tem afirmado é a realidade viva e palpitante desse espírito que, escravizado aos instintos da animalidade, nos graus inferiores da evolução, a partir de um certo estádio, que a cultura moral sobretudo favorece, os sobrepuja, podendo alcandorar-se a sobre-humanas atitudes.

            Não as alcançará, porém, o homem senão quando em si mesmo houver desenvolvido e cultivado esse poderosíssimo fator que, com o pensamento e o sentimento, constitui a trilogia demonstrativa da existência do espírito: a vontade.
           
            Onde reside ela?

             A ciência materialista pretende haver determinado no cérebro um "centro volitivo", relacionado com a complicadíssima trama do sistema nervoso. Para invalidar, porém, essa hipótese, basta recordar as observações que a tal propósito judiciosamente formulou o doutor Paul Gibier, em sua ANÁLISE DAS COISAS, que já tivemos ocasião de anteriormente mencionar.

            "O que parece indicar - diz ele (1) - que os diferentes movimentos da energia nervosa devem seguir o trajeto, que descrevi, no cérebro, partindo de um centro volitivo, é que um homem atacado de paralisia da metade do corpo (hemiplegia), embora seja incapaz de fazer agirem os centros motores cerebrais destruídos, possui ainda a faculdade de querer o movimento dos membros, que embalde se esforça ele em produzir. Esse fato permite supor que a vontade tem sua sede independente e que não se acha mais especialmente localizada num hemisfério central do que no outro. O mesmo acontece à consciência."

                (1) Cap. I, págs. 50

            Não é, com efeito, no cérebro que se encontra a sede da vontade, embora para a  traduzir em movimentos, como em geral para todas as operações mentais, tenha que incidir a ação do espirito, no homem, sobre determinadas localizações naquele órgão, admitida a teoria corrente a tal respeito, posto que modernamente impugnada por alguns fisiologistas. Faculdade por natureza abstrata, é ao  espírito que propriamente importa referi-la, assim em seu estado virtual, anterior ao ato, como ao traduzir-se neste.

            Nos próprios casos a que nos repostamos, de heróis e mártires da fé ou do dever, não é essa força interior e espiritual que se evidencia, ao serviço daquelas outras determinações morais?

            Porque não basta ao indivíduo ter fé, nem sentir que as injunções do dever lhe indicam proceder de um modo que não de outro; cumpre manifestar em atos as resoluções da fé e o sentimento do dever. Pensar e sentir, portanto, é muito, mas não é tudo. Se o pensamento e o sentimento se conservam no puro domínio da ideologia, não dão fruto, ou quando muito representam meras potencialidades subjetivas; precisam conseguintemente se exteriorizar como realidades, por assim dizer, tangíveis, do que resulta que a intervenção da vontade é indispensável.

            Sem ela - acrescentaremos - sem essa alavanca moral, a respeito de cuja educação e disciplina teremos ocasião de nos externar muito adiante, quando tratarmos da iniciação dos crentes, para a jornada de renovação espiritualista a que somos convidados, nenhuma obra é exequível.  

            É essa força, ao mesmo tempo, de aplicação e resistência que conduz o homem à realização dos mais tenazes empreendimentos. Por isso a enfeixou a sabedoria popular numa fórmula expressiva: "querer é poder."

            Quem quer o sacrifício das comodidades, a morte de preferência à covardia ou ao perjuro, a perda das afeições distantes, como no exemplo do naufrágio que citamos, em troca do cumprimento austero de um dever que manda salvar os outros e perecer depois de os  haver salvo, será o corpo, com as exigências sensuais que lhe são peculiares, ou o espírito, senhor das próprias solicitações que entendem com a natureza inferior, isto é, o egoísmo com todo o seu cortejo de instintos subalternos?

            Pensar, sentir e querer - eis, conseguintemente, a trilogia afirmativa da entidade espiritual, que todos somos.

            Agora - terminaremos, parodiando o iluminado apóstolo dos gentios, no discurso incomparável sobre a caridade, em sua primeira epístola aos Coríntios - permanecem estes três princípios: o corpo, o perispírito e o espirito; o mais importante, porém, é o espirito.



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