O Inferno
Rodolfo Calligaris
Reformador (FEB) Maio 1961
Segundo a teologia tradicional, o
inferno é um "lugar" de suplício, criado por Deus para a punição dos
pecadores e... dos "hereges", à semelhança de certas prisões e masmorras
que os governos humanos instituíram no passado, para castigo de malfeitores.
Com uma diferença: destas, ainda era possível um livramento, por fuga ou ato de
clemência da autoridade coativa, ao passo que no averno, quantos lá entrem, é
para não saírem jamais ... "Lasciate
ogni speranea, voi che entrate". tal o dístico de seu ígneo umbral,
conforme nos revela o famoso Dante em sua obra-prima.
É de se notar que, de alguns séculos
a esta parte, têm caído, um por um, todos os despotismos, e, com eles, todas as
bastIlhas e sistemas de tortura que encheram de horror a História da
Humanidade.
Começa-se a admitir que os
criminosos e delinquentes de toda espécie são mais doentes necessitados de
tratamento do que propriamente contraventores que devam ser punidos, e, ao influxo
dessas novas ideias, antigos presídios vão sendo substituídos por modernos
estabelecimentos correcionais, aparelhados para a aplicação adequada dos
regimes penitenciários, tendo em vista a regeneração dos detentos.
Até mesmo os prisioneiros de guerra
são tratados, hoje, com espírito de humanidade, provando, tudo isso, que o
mundo progride, lenta mas ininterruptamente, e que dias cada vez melhores hão de
vir para todos os povos.
Todavia, que blasfêmia! - enquanto
os homens corrigem, melhoram, aperfeiçoam suas instituições penais, diz-se que
Deus permanece insensível e indiferente ao sofrimento das almas condenadas ao
inferno, não Lhe fazendo mossa que continuem a arder nos tachos de breu fervente,
"per omnia soecula soeculorum"!
O mal que os propagadores dessa
doutrina monstruosa causam às massas humanas é incalculável, pois, não raro, os
que repelem, com justa revolta, os suplícios infernais, englobam no mesmo
repúdio Aquele a quem os atribuem, caindo na irreligiosidade e no ateísmo.
Mas, poder-se-ia perguntar: então o
inferno não existe?
Existe, sim. Se há tanta gente a
exclamar - "minha vida é um inferno!" - é porque ele existe,
de fato. Não, porém, como um "lugar", mas (tal qual o céu) como um
"estado" de consciência.
Em qualquer ponto do Universo, aqui,
ali ou alhures, quem sinta o inferno dentro de si, pode dizer que está no
inferno.
Muitos, baseados na teologia
pseudo-cristã que lhes foi inculcada, creem ser Deus quem deseje ou mesmo
propicie todas as dores físicas e morais que nos "infernizam" a
existência, como se Ele fosse um monstro que se compraza com o sofrimento de
Suas criaturas.
Em verdade, porém, quem faz o nosso
inferno (ou o nosso céu) somos nós próprios, segundo procedamos em
contraposição aos mandamentos divinos (ou em harmonia com eles).
Não é assim, poderão objetar-nos,
pois assistimos, diariamente, ao nascimento de muitas crianças marcadas por
taras, deformidades e lesões que as farão sofrer por toda a existência, sem que
lhes possa ser imputada qualquer culpa por essa situação.
Redarguimos: A quem, pois, atribuí-la?
Aos ancestrais, por serem ou terem sido alcoólatras, sifilíticos, etc.? Mas,
nesse caso, baseado em que razões escolheria Deus determinadas almas para animar
esses corpos condenando-as previamente a uma vida miserável, enquanto
reservaria a outras melhor sorte? Esse arbítrio na distribuição de graças e
desgraças não se coaduna com Sua equanimidade.
Quem entra neste mundo privado de
seus meios de percepção e de expressão, ou com outras deficiências psicossomáticas,
é porque, via de regra, em existência (s) anterior (es), abusou dos recursos e
faculdades de que dispôs, comprometendo-se seriamente perante a Lei.
Sim, porque ninguém sofre sem
merecer, eis que não há falhas nem enganos na Justiça Divina.
Sendo o inferno, portanto, criação
nossa e não de Deus, sua abolição também depende exclusivamente de nós, de
nosso desejo sincero e espontâneo de deixar o caminho do mal para trilhar o do
bem.
Releva frisar, entretanto, que essa
transição não se opera pura e simplesmente pelo arrependimento. Este é
indispensável, é o primeiro passo, mas não basta. Todo dano ou padecimento que
houvermos infligido ao próximo, e até os males que nos houvermos causado, pelos
excessos e intemperanças, têm que ser resgatados, através de expiações
adequadas, porque, como diz o Evangelho: "aquilo que o homem semear, isso mesmo
há de colher."
Não se confie, igualmente, no
privilégio de pertencer a esta ou àquela denominação religiosa, nem na eficácia
de certos expedientes oferecidos pelo poder eclesiástico, como meio seguro de
fugir ao inferno.
O único jeito é seguir as pegadas
daquele que, havendo alcançado a perfeição, pôde dizer: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida;
ninguém vai ao Pai senão por mim..."
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