O
salário do Filósofo
Canuto
Abreu/
Manuel
Quintão/
Guillon Ribeiro
Reformador
(FEB) Novembro 1923
Por
excesso gratíssima, publicamos o artigo abaixo, da lavra de um companheiro
íntimo, escrito, sob forma desusada nessas colunas, ao influxo de leal
devotamento. Fazemo-lo, sentindo justíssima e devida a homenagem que encerra e
a qual, por isso, de pleno coração nos associamos. Que o homenageado, assim
ferido no que tem de mais refulgido em seu espírito – a sua modéstia, nos
perdoe a exceção simpática que abrimos e consinta que, em sinal de
solidariedade com o autor na sua intenção elevada, subscrevamos o artigo que se
vai ler. A Redação
No alto de íngreme ladeira, num
planalto irregular, existe uma casinha isolada e modesta onde mora um filósofo.
Este filósofo, como em geral os filósofos, é velho e solteiro, simples e generoso.
Tem, no entanto, sobre os outros a vantagem da boa saúde, indicada no corpo
cheio e ereto, nas faces rosadas, na fronte desanuviada e Inteligente. Seu
coração amorável, apesar dos setenta anos de pulsações incessantes, lhe permite
habitar aquele ermo agreste e andar quase diariamente, ladeira abaixo, morro
acima, para o trabalho, para o estudo, para a caridade.
Habita só, naquela vivenda solitária.
Só com os patinhos que cria... Como apóstolo, é naturalmente pobre, no sentido
de não ter fundos terrenos de reserva. Mas possui a verdadeira riqueza, aquele
formidável e invulgar tesouro, que consiste em não achar falta em coisa alguma,
em achar supérfluo o pouco que Deus lhe dá.
Na mudez serena do retiro onde o
homem é só, vive aquele filósofo cercado de espectros. Longe do mundo e perto
do céu, enquanto Já em baixo a humanidade freme desesperada na vertigem
ambiciosa do irrealizável, ele realiza o sonho de escutar em vigília os sussurros
carinhosos dos espíritos dos que partiram e deixaram no oceano da existência a
esteira da virtude e da saudade.
Mas os homens não deixam o velhinho
integrar-se no recolhimento. Correm à ermida, sempre que necessitam de conselho
urgente e decisivo, de assistência perspicaz e libertadora. Porque ele é o
advogado dos oprimidos e, especialmente, dos oprimidos espíritas.
Despreocupado das coisas deste
mundo, não se recordará talvez ele quando entrou para a Federação, tão longe vai
a data. A Federação, porém, sabe que ele é afiliado antigo e se recorda de que
nas dificuldades sempre teve o seu concurso inestimável. Sim, inestimável, pela
sinceridade, presteza e valor, mas principalmente pelo modo de concorrer. Nunca
perguntou que cargo lhe iam dar, sempre aceitou aquele que lhe indicaram. Tão
grande é o seu desprendimento neste assunto que, se uma conveniência administrativa
viesse tira-lo da presidência para a portaria, o filósofo, aureolado de
humildade real, que não apenas aparente como a de tantos, sem a mais leve
objeção, passaria sorridente a ser porteiro.
A este mérito raro, junta-se uma sólida
erudição espírita, teológica e jurídica que o tornará um dia, como outros que
já deixaram a terra, superior padrão de espírita. Hoje, chamam-no alguns de excêntrico.
Quando há bonança e calmaria, quando a
doutrina singra sem perigos, o filósofo excêntrico se recolhe à sua ladeira. Só
não se esquecem dele os numes (divindades) e penates (deuses do lar para os romanos e
etruscos).
Quando os vagalhões encapelados partem o
seio úmido na quina da barca, ameaçando a tripulação; quando a propaganda
tangencia os códigos humanos e atira ao banquinho dos réus um companheiro,
então para logo ele é lembrado. E a casinha da ladeira permanece de vela acesa
até a madrugada. Os gênios protetores ali descem em maior número, e o monge espírita
começa a produzir a defesa que, a um tempo, salvará o companheiro e a Causa.
Estilo sóbrio, correção linguística, argumentação
irretorquível tecem a obra modelar, graças a qual a Doutrina tem vencido os
obstáculos das leis restritivas de sua divulgação.
Uma, duas, três... quantas vitórias já
logrou a Federação na esfera jurídica? Não vale recordar. Mas todas, humanamente
falando, são do velhinho bom, desse, filósofo sadio, do fidelíssimo e venerável
servo do Senhor, que habita, só, a casinha do Ascurra. A liberdade de trabalho
que logramos devemo-la em magna parte ao instrumento que soube defender os nossos
problemáticos direitos, arrancando da consciência dos juízes o amparo que não
poderia tirar das leis mal feitas e transitórias.
E os que o procuramos nas situações críticas
lhe teremos sido sempre suficientemente gratos? Teremos dado à sua obra o
apreço que merece? A humanidade é geralmente ingrata.
Ainda há poucos dias, conseguida, para todos
nós espíritas, no Supremo Tribunal, a
bela vitória que nos impeliu a escrever comovidos estes períodos, o velhinho
subiu, só, como sempre, a ladeira onde reside. Ninguém o acompanhou ao
descampado pouso. Galgou-o ele sozinho, esquecido a seu turno da ingratidão dos
homens por levar a alma transportada de reconhecimento ao seu Senhor.
Na verdade, que importam ao solitário filósofo
as manifestações dos homens,
se
sempre por Jesus é que trabalha? Que importa ao bom varão não seja o seu trabalho
em voz alta abençoado pelos que dele beneficiam, se o salário que espera não é
deste mundo? Uma
única recompensa ele aguarda, antegozando-a nas alegrias de uma consciência límpida!
Essa te-la-á certamente no dia em que o céu, engalanado para o receber, disser
pela boca dos nossos maiores: “Amado companheiro, cumpriste bem o teu dever;
foste um exemplo!”
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