Pesquisar este blog

segunda-feira, 27 de maio de 2019

O Salário do Filósofo



O salário do Filósofo
Canuto Abreu/ Manuel Quintão/ Guillon Ribeiro
Reformador (FEB) Novembro 1923

Por excesso gratíssima, publicamos o artigo abaixo, da lavra de um companheiro íntimo, escrito, sob forma desusada nessas colunas, ao influxo de leal devotamento. Fazemo-lo, sentindo justíssima e devida a homenagem que encerra e a qual, por isso, de pleno coração nos associamos. Que o homenageado, assim ferido no que tem de mais refulgido em seu espírito – a sua modéstia, nos perdoe a exceção simpática que abrimos e consinta que, em sinal de solidariedade com o autor na sua intenção elevada, subscrevamos o artigo que se vai ler. A Redação   

            No alto de íngreme ladeira, num planalto irregular, existe uma casinha isolada e modesta onde mora um filósofo. Este filósofo, como em geral os filósofos, é velho e solteiro, simples e generoso. Tem, no entanto, sobre os outros a vantagem da boa saúde, indicada no corpo cheio e ereto, nas faces rosadas, na fronte desanuviada e Inteligente. Seu coração amorável, apesar dos setenta anos de pulsações incessantes, lhe permite habitar aquele ermo agreste e andar quase diariamente, ladeira abaixo, morro acima, para o trabalho, para o estudo, para a caridade.

            Habita só, naquela vivenda solitária. Só com os patinhos que cria... Como apóstolo, é naturalmente pobre, no sentido de não ter fundos terrenos de reserva. Mas possui a verdadeira riqueza, aquele formidável e invulgar tesouro, que consiste em não achar falta em coisa alguma, em achar supérfluo o pouco que Deus lhe dá.

            Na mudez serena do retiro onde o homem é só, vive aquele filósofo cercado de espectros. Longe do mundo e perto do céu, enquanto Já em baixo a humanidade freme desesperada na vertigem ambiciosa do irrealizável, ele realiza o sonho de escutar em vigília os sussurros carinhosos dos espíritos dos que partiram e deixaram no oceano da existência a esteira da virtude e da saudade.

            Mas os homens não deixam o velhinho integrar-se no recolhimento. Correm à ermida, sempre que necessitam de conselho urgente e decisivo, de assistência perspicaz e libertadora. Porque ele é o advogado dos oprimidos e, especialmente, dos oprimidos espíritas.

            Despreocupado das coisas deste mundo, não se recordará talvez ele quando entrou para a Federação, tão longe vai a data. A Federação, porém, sabe que ele é afiliado antigo e se recorda de que nas dificuldades sempre teve o seu concurso inestimável. Sim, inestimável, pela sinceridade, presteza e valor, mas principalmente pelo modo de concorrer. Nunca perguntou que cargo lhe iam dar, sempre aceitou aquele que lhe indicaram. Tão grande é o seu desprendimento neste assunto que, se uma conveniência administrativa viesse tira-lo da presidência para a portaria, o filósofo, aureolado de humildade real, que não apenas aparente como a de tantos, sem a mais leve objeção, passaria sorridente a ser porteiro.

A este mérito raro, junta-se uma sólida erudição espírita, teológica e jurídica que o tornará um dia, como outros que já deixaram a terra, superior padrão de espírita. Hoje, chamam-no alguns de excêntrico.
           
Quando há bonança e calmaria, quando a doutrina singra sem perigos, o filósofo excêntrico se recolhe à sua ladeira. Só não se esquecem dele os numes (divindades) e penates (deuses do lar para os romanos e etruscos).  Quando os vagalhões encapelados partem o seio úmido na quina da barca, ameaçando a tripulação; quando a propaganda tangencia os códigos humanos e atira ao banquinho dos réus um companheiro, então para logo ele é lembrado. E a casinha da ladeira permanece de vela acesa até a madrugada. Os gênios protetores ali descem em maior número, e o monge espírita começa a produzir a defesa que, a um tempo, salvará o companheiro e a Causa.

Estilo sóbrio, correção linguística, argumentação irretorquível tecem a obra modelar, graças a qual a Doutrina tem vencido os obstáculos das leis restritivas de sua divulgação.

Uma, duas, três... quantas vitórias já logrou a Federação na esfera jurídica? Não vale recordar. Mas todas, humanamente falando, são do velhinho bom, desse, filósofo sadio, do fidelíssimo e venerável servo do Senhor, que habita, só, a casinha do Ascurra. A liberdade de trabalho que logramos devemo-la em magna parte ao instrumento que soube defender os nossos problemáticos direitos, arrancando da consciência dos juízes o amparo que não poderia tirar das leis mal feitas e transitórias.

E os que o procuramos nas situações críticas lhe teremos sido sempre suficientemente gratos? Teremos dado à sua obra o apreço que merece? A humanidade é geralmente ingrata.

Ainda há poucos dias, conseguida, para todos nós espíritas, no Supremo Tribunal, a bela vitória que nos impeliu a escrever comovidos estes períodos, o velhinho subiu, só, como sempre, a ladeira onde reside. Ninguém o acompanhou ao descampado pouso. Galgou-o ele sozinho, esquecido a seu turno da ingratidão dos homens por levar a alma transportada de reconhecimento ao seu Senhor.

Na verdade, que importam ao solitário filósofo as manifestações dos homens,
se sempre por Jesus é que trabalha? Que importa ao bom varão não seja o seu trabalho em voz alta abençoado pelos que dele beneficiam, se o salário que espera não é deste mundo? Uma única recompensa ele aguarda, antegozando-a nas alegrias de uma consciência límpida! Essa te-la-á certamente no dia em que o céu, engalanado para o receber, disser pela boca dos nossos maiores: “Amado companheiro, cumpriste bem o teu dever; foste um exemplo!”


Nenhum comentário:

Postar um comentário