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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Melquisedec



Melquisedec
por Mínimus (Antonio Wantuil)
Reformador (FEB) Abril 1947

            Diz-nos Gênesis (XIV-18:20) que Melquisedec, rei de Jerusalém e sacerdote do Deus Altíssimo, abençoou a Abraão, deu-lhe pão e vinho e dele recebeu o dizimo.

            Em seu Salmo CX-4, David profetizou a vinda do Messias, apresentando-o como sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec.

            S. Paulo, em sua Epístola aos Hebreus (V a IX), repetidamente nos fala sobre Melquisedec, comparando-o ao Cristo e dizendo que muitas outras coisas não poderiam ser explicadas a respeito, porque os homens ainda não as poderiam ouvir, afirmando, porém, que Melquissedec não teve genealogia, sendo sem pai, sem mãe, e que não teve princípio de dias nem fim de vida, porque foi feito semelhantemente ao Cristo.

            Mais tarde, surgiu a seita dos Melquisedecianos, cujos teólogos o tinham como um ser extraterreno, um anjo, opinião esta posteriormente apoiada por vários autores católicos.

            Ora, diante da resposta do Espírito de São Luís a Allan Kardec (*), de que existiam na Bíblia exemplos de agêneres, lembramo-nos de que, além do fato relatado no "Livro de Tobias", também Melquisedec tivesse sido um agênere, e, pelo que dele consta, um agênere de altíssima categoria espiritual,

            Os fatos aí estão. Diz-nos Paulo - que só os compreenderemos quando nos tornarmos menos negligentes. Esforcemo-nos, pois.

(*) V. Revue Spirite, Fevereiro de 1859, páginas 36 a 41, ou Reformador, Janeiro de 1947. páginas 1 a 4.



terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Ascenção



Ascensão

 16,19  Depois que o Senhor Jesus lhes falou, foi levado ao céu e está sentado à direita de Deus. 
16,20  Os discípulos partiram e pregaram por toda a parte. O Senhor cooperava com eles e confirmava a Sua palavra com as curas que os acompanhavam.

                     
                Em “A Gênese”, de A. Kardec, lemos, em seu Cap. XV, para Mc (16,19-20):
                  
         “O maior milagre que Jesus operou, o que verdadeiramente atesta sua superioridade, foi a revolução que seus ensinos produziram no mundo, mau grado à exiguidade de seus meios de ação.

            Com efeito, Jesus, obscuro, pobre, nascido na mais humilde condição, no seio de um povo pequenino, quase ignorado e sem preponderância política, artística ou literária, apenas durante três anos prega sua doutrina; em todo esse curto espaço de tempo é desatendido e perseguido pelos seus concidadãos; vê-se obrigado a fugir para não ser lapidado; é traído por um de seus apóstolos, renegado por outro, abandonado por todos no momento em que cai nas mãos de seus inimigos.

            Só fazia o bem e isso não o punha ao abrigo da malevolência, que dos próprios serviços que ele prestava tirava motivos para o acusar.

            Condenado ao suplício que só aos criminosos era infligido, morre ignorado do mundo, visto que a História daquela época nada diz a seu respeito.

            Nada escreveu; entretanto, ajudado por alguns homens tão obscuros quanto ele, sua palavra bastou para regenerar o mundo; sua doutrina matou o paganismo onipotente e se tornou o facho da civilização.

             Tinha contra si tudo o que causa o malogro das obras dos homens, razão por que dizemos que o triunfo alcançado pela sua doutrina foi o maior de seus milagres, ao mesmo tempo que prova ser divina a sua missão.

            Se, em vez de princípios sociais e regeneradores, fundados sobre o futuro espiritual do homem, ele houvesse legado à posteridade alguns fatos maravilhosos, talvez hoje mal o conhecessem o nome.”

           

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Verdades velhas e revelhas



Verdades velhas e revelhas – Parte 1
por Roberto Coimbra
Reformador (FEB) Fevereiro 1947

            As multiformes solicitações da vida cotidiana embriagam e desorientam às vezes os espíritos mais fortes. A confusão gera a confusão. O abismo atrai o abismo: "Abyssus abyssum Invocat," Quem o ignora? O que poucos, porém, conseguem é manter a serenidade no meio da balbúrdia, do tropel, do mare-magnum. É que esses tais ou ainda o desconhecem ou se afastam do caminho palmilhado pelo Mestre, e os que dele se transviam desesperam.

            O remédio é, pois, simples: buscar ou retornar ao Cristo. Quem persiste nos seus métodos, quem permanece nas suas palavras, quem lhe copia - tanto quanto podem fazê-la as criaturas do nosso plano - a humildade, a tolerância, a fé e, sobretudo, a caridade, não se descontrola nem se aflige ante os mais negros e tremendos reveses.

            Primeiro a cruz, depois a ressurreição,

            O homem sofre por si mesmo. Rasga as carnes do corpo com as próprias mãos. Martiriza-se de moto próprio, O Pai não é que lhe impõe a dor. Esta é fruto, reflexo ou consequência dos seus atos de ontem ou de hoje. É' efeito e não causa: efeito do mal praticado nesta ou noutras vidas mas sempre efeito, Haja vista às desigualdades humanas: cegos de nascença, aleijados natos, idiotas desde o berço; uns na abundância, inúmeros na miséria, E sobre ser efeito, a dor é também meio, Meio que Deus nos concede para resgatarmos a falta cometida, meio que o Pai nos faculta para repararmos o erro, a petulância, o ousio de transgredir as suas leis eternas, justas e sábias, não da "sabedoria" dos homens, que é vã, mas da sua sabedoria, que é imanente.

Verdades velhas e revelhas – Parte 2
por Roberto Coimbra
Reformador (FEB) Abril 1947

            Fala-se em reformas sociais em meio ao caos que nos circunda. Pelo visto não compreenderam ainda os homens, perdidos em filosofias balofas, que antes de reformar a massa, a sociedade, é mister se reforme o indivíduo, o cidadão. A reforma primária e urgente é interior, é sempre íntima. Reformem-se os espíritos, abram-se as portas do coração, façam-no penetrar do sopro revivificador do Cristianismo Redivivo, e o mundo verá o que é a criatura sob o império do amor, de que o Nazareno é o padrão.

            Enquanto não praticarmos conscientes o "nosce te ipsum" (conhece a ti mesmo); enquanto não corrigirmos as nossas próprias maldades; enquanto não opormos in-petto [GK1] (no peito) um dique dos nossos impulsos animalizados – há de, por força, ser-nos vazia a vida.

            Falta-nos fraternidade. Sobeja-nos interesse.

            Buscamos os gozos fáceis, as gloríolas terrenas, as posições cômodas e fartas. Fugimos ao sacrifício, porque esquecemos o Mestre, cujos ensinos nos hão de salvar o espírito do estacionamento.

            Deus não precipita os acontecimentos. Deixa, paciente, que façamos uso da razão, da inteligência e do livre arbítrio. Quando damos contra as pedras, é que com as mãos ambas já, nós mesmos, as lançáramos no caminho... Os pés podem sangrar nas escarpas, cá em baixo, mas e para que o espírito fulja depois, lá em cima.

            Dá-nos, em suma, o Pai, ensanchas de evolver, de aprender, de aperfeiçoar, quando nos empenhamos, rebeldes, cegos e surdos, em diminuir-nos, em perder-nos, em aniquilar-nos...

            Olvidamos a Caridade: Pois que a Dor nos reavive a memória e nos ajude a distribuir com os outros os bens materiais e espirituais que possuímos.

            Esquecemos o próximo? Pois que o sofrimento nos reate a ele: “A desgraça une os homens, a felicidade os separa”...

Verdades velhas e revelhas – Parte 3
por Roberto Coimbra
Reformador (FEB) Maio 1947

            Provas sem conto, árduas provas de fogo temos de experimentar. Os fáceis meios de vida estorvam os nossos passos evolutivos. Há-de mister a agitação e a luta construtiva. O marasmo contravém às leis que regem os surtos espirituais do ser.

            A vida mundana reflete o coração das gentes: ela é vã, porque ele está vazio. A felicidade, que todos buscamos, só buscamos para nós. Caímos, pois, em débito, e razão é que quem deva pague, e pague até o último ceitil.

            A justiça de Deus se exerce, não lançando a alma do homem para arder eternamente no inferno, mas dando-lhe outras oportunidades de reabilitação, porquanto Deus é Caridade.

            Dizia o Pe., Manuel Bernardes: "Assim como a madeira cria o bicho, mas o bicho destrói a madeira, assim do pecado nascem as lágrimas, mas as lágrimas destroem o pecado."

            Ninguém, pois, se perde para sempre. Não o permitem as lágrimas, que acompanham o homem desde o nascimento até a morte, e até depois da morte... Um dia, por via delas, cada ovelha transviada se achará a si mesma, tocada no imo pela luz do Bom Pastor, que a todas desfecha os olhos para a vida eterna e a todas adverte com doçura, reencaminhando as para o aprisco.

            Disse Jesus que somos deuses. Empenhemo-nos em ser deuses, mas deuses capazes de compreender que a felicidade se atinge com "sangue, suor e lágrimas". Que a nossa guerra indefessa seja contra os vícios e os defeitos, que nos assoberbam, para, afinal deles despojados, ganharmos a eterna paz de espírito - bem-aventurança esta, sobre todas, sublime.

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Agora



Agora
Meimei por Chico Xavier
Reformador (FEB) Fevereiro 1952

Se a consolação do Evangelho nos visitou a alma...

Se a bênção da fé nos ilumina...

Se a nossa confiança permanece restaurada...

Se a fraternidade é o ideal que buscamos...

Agora, realmente, a nossa vida aparece modificada...

Agora conhecemos, agora temos e agora somos.

Porque, em Cristo, nossa alma sabe o que deve fazer, recebe do céu o suprimento de recursos e valores, de acordo com as nossas próprias necessidades, e é detentora de bênçãos e dons que nem todos, de momento, conseguem desfrutar.

            Antes, seria difícil a tarefa do auxílio.

            Nosso horizonte jazia velado pelas trevas.

            Crisálidas da inteligência, descansávamos no casulo da ignorância.

            Agora, porém...

            O Senhor, utilizando mil pequeninos recursos, acendeu a luz do conhecimento divino em nosso espírito, e, com a visão mais alta da vida e do mundo, cresceram a nossa importância de pensar e a nossa responsabilidade de viver.

            Se já encontraste com Jesus, não te queixes.

            Ontem, poderias alegar fraqueza e desconhecimento como pretextos para ferir ou repousar, fortalecendo o poder da inércia ou da sombra.

            Hoje, porém, é o teu dia de servir e de caminhar.

sábado, 22 de fevereiro de 2020

Intriga



Intriga
Antônio Castanheira de Moura
Reformador (FEB) Fevereiro 1952

            "0 fogo e a espada são fracos engenhos de destruição comparados com o intriguista."   Stella.

            A intriga revela a deformação moral dos indivíduos; é a arma dos covardes. Deturpa. malevolamente as intenções mais puras, inutiliza vontades, destrói reputações, e contribui poderosamente para o atraso evolutivo dos indivíduos e das sociedades.     

            A intriga, a par da calúnia, tem originado o aniquilamento da dignidade e a desonra dos homens.

            O intriguista vive cautelosamente na sombra, onde forja as inimizades e as desavenças através das quais procura desagregar e destruir a fraternidade e os princípios cristãos, pregados e exemplificados pelo mártir do Gólgota.

            O intriguista macula as relações entre os agregados humanos que, inadvertidamente, se deixem guiar por tais mentores.

            O intriguista é egoísta e, como tal, não compreende que seja possível a existência de homens realmente desinteressados nos seus atos; lança mão da insinuação perversa, deixando, deste modo, a porta aberta à vil calúnia.

            O vírus da intriga é poderosamente demolidor, pois chega a corroer a parte mais sã do homem, que é a sua espiritualidade.

            Para enfrentar tal epidemia, pondo-nos portanto ao abrigo da sua virulência carece o homem de chamar em sua defesa o bom senso, a energia e a coragem moral, a fim de fazer face à onda avassaladora, dominando-a com o sentido superior da Verdade, da Razão e da Justiça, distinguindo-se, assim, do homem inferiorizado pela própria deformação mental.

            O intriguista será vencido na sua caverna, quando deixe de encontrar ambiente favorável à sua ação. Para tanto, necessário é que as multidões saibam prevenir-se com o seu bom senso contra a invasão do morbo, para o que bastará neutralizá-la com a sua indiferença e com a sua inteligente observação dos fatos e das causas.  

            E, assim, o intriguista verá malogrados os seus malévolos objetivos.

            (Ext. da "Revista de Metapsicologia, Novembro de 1951.)



sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Ibrahim Dib-Dab



lbrahim Dib-Dab
José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) 1952

            Ibrahim Dlb-Dab curvou-se sobre o regato e bebeu, satisfeito, bons goles d’água. Depois, ergueu-se para retomar viagem, acompanhado do pequeno Himaliel Dib-Dab. O garoto olhou-o, contente, começando a cantarolar. Mais adiante passaram pela casa de Maroun Mattar, que se regalava com um vinho velho que lhe haviam trazido do ocidente. Mattar saudou Ibrahim e lhe ofereceu o copo cheio, mas Ibrahim, numa reverência amável, lhe respondeu:

            - Alá te salve, bom amigo! Agradeço-te o vinho. Fica para outra vez.

            E continuou seu caminho. O pequeno Himaliel, curioso, indagou:

            - Tio: porque não quiseste o vinho?

            Ibrahim sorriu e retrucou:

            - Mais vale um gole d’água fresca, quando se tem sede, do que um tonel de vinho fino, quando se está farto.

            O guri guardou na memória a resposta.

            Duzentos metros adiante, um mendigo se achava caído à margem da estrada. A bela carruagem do mercador Sanir Taib passou, célere, levando o potentado, cuja fisionomia denotava graves preocupações. Himaliel deixou de comentar:

            - Tio: esse homem tão rico bem poderia levar aquele infeliz no carro até à aldeia próxima, a fim de dar-lhe rápido socorro, não acha?

            - Assim é... - respondeu lbrahim, que se aproximou do mendigo, verificando que havia morrido naquele Instante. Então, voltando-se para o menino, sentenciou:

            - Ao morrer, o pobre se liberta sem saudade da sua fortuna: a miséria. O rico, entretanto, nem sempre consegue viver em paz com os bens acumulados. A preocupação muitas vezes o acompanha na outra vida...

            Como Himaliel lhe perguntasse algo sobre a vida faustosa e confortável de Sanir Taib, Ibrahim tornou:

            - Meu filho: tal como o ópio, que quebranta o corpo, o conforto excessivo amolece a moral do homem.

            - Tem razão, tio. Já ouvi Salim Radib dizer coisa parecida diante da Taverna do Crescente.

            - Muito bem. Mas não te esqueças de que, em cem pregadores de virtudes, pelo menos noventa e nove têm pecados ocultos.

            O guri abriu mais os olhos e deu uma risadinha irônica. Logo, fechou o semblante e saltou para o lado, gritando:

            - Vê, tio! Um sapo! Como é feio!..

            - Que tem isso? A fealdade do sapo assusta e repugna, mas ele é útil ao homem no combate aos insetos. Há criaturas de cara angelical, mas de alma torpe, do mesmo modo que há monstros de feiura, cuja alma é pura como um sorriso de criança...

            E continuaram andando. O menino saltava, ria, cantarolava, enquanto o velho parecia feliz com a felicidade dele. Assim, chegaram às proximidades do sítio de Salomão Diab. Himaliel mostrou-se satisfeito, ao ver um pavão magnífico, de asas abertas.

            - Que lindeza, tio! Tão diferente do sapo!..

            - Muito diferente, na verdade, Himaliel, A beleza do pavão encanta e atrai. Ele, no entanto, apenas representa a vaidade estéril... Há homens que não são nada mais do que pavões enfatuados, orgulhosos da própria beleza. Esquecem-se, porém, de que possuem pés repulsivos.

            Pararam para ligeiro descanso. Ibrahim Dib--Dab passou a mão pela cabeça do sobrinho, fê-lo sentar-se ao seu lado. Conversaram muito tempo. Então, Ibrahim pediu a Himaliel que o ouvisse com muita atenção:

            - Meu filho: somente se pode medir a grandeza moral do homem através do seu sentimento. Quanto mais alto se eleva o pensamento menos relevante parece o mundo de lutas em que vivemos. Lembras-te daquele oleiro- que perdia horas de trabalho a criticar a vida alheia? Lembras-te da facilidade com que suas palavras encontravam apoio? Por aí vês que a melhor maneira de se aferir a imperfeição do caráter humano está na observação de como se propaga a maledicência. Mas não te esqueças jamais de que a Desventura desertará da Terra quando os homens se amarem uns aos outros. A tolerância esclarecida é benéfica, porque pode salvar; a tolerância cega, entretanto, é um incentivo ao mal. O poder do homem está em jugular seus impulsos inferiores, educá-los, transforma-los em sentimentos bons. É difícil, porque as tentações são muitas, mas não é impossível. Sempre que tiveres de dizer mal de alguém, impõe-te a penitência do silêncio. Verás como os maus sentimentos são fortes. Terás, de lutar muito, durante muito tempo; desde, porém, que a tua vontade prevaleça, estarás forte, mais forte ainda, e a energia que retiveste em teu íntimo se decuplicará. A maior obra do homem está em educar os próprios sentimentos. És ainda uma criança, mas deves desde agora começar o trabalho auto-educativo. Não faças mal. Não penses mal. Se o teu desejo de ser bom malograr, procura recuperar o terreno perdido. Tua vitória será grande, tua recompensa será maior, porque nada vale tanto na vida quanto a paz de consciência. Todavia, só a obterás quando conseguires evitar o mal, pelo pensamento e pelos atos.

            Himaliel estava sério, compenetrado. Não se conteve e perguntou a Ibrahim:

            - Tio: se alguém me fizer mal, não deverei defender-me?

            - Como não? Deves reagir empregando o bem contra o mal. Aquele que é mordido duas vezes pela mesma cobra demonstra que não é inteligente. Em vez de matá-la, tentarás tirar-lhe o veneno. Depois, não te fará mal...

            - Mas se eu for prejudicado por um meu semelhante? Deverei adotar atitude passiva e agradecer a Alá o prejuízo?        

            - Em absoluto. Bem se vê que ainda és muito pequeno para compreender as coisas. Deves sempre lutar pelo teu direito, mas sempre que puderes ser generoso abre mão dele, porque Alá não falta jamais à bênção daqueles que possuem grandeza d'alma ...

            Como a noite caísse, lbrahim abriu a barraca, sob a qual ambos se abrigaram.

Extremismo científico



Extremismo científico
Ismael Gomes Braga
Reformador (FEB) Novembro 1942

            Durante longo tempo as ortodoxias estiveram em oposição aos conhecimentos positivos e cavaram um abismo entre ciência e religião. A pouco e pouco, porém, o saber se foi emancipando e libertando dos dogmas eclesiásticos. Chegou-se afinal a estabelecer dois mundos à parte e contraditórios, o da ciência e o da religião. O mesmo homem pode ter duas crenças opostas: uma de sua Igreja e outra da ciência positiva que tenha adquirido. É a luta da razão contra o sentimento religioso, por vezes em tréguas no mesmo indivíduo.

            Esse estado de coisas é transitório. Duas verdades que se destroem não podem coexistir: uma das duas - senão ambas - deve ser falsa. Se a Igreja ensina que o sol gira em torno da Terra e a ciência afirma que ao contrário disso, é a Terra que gira em torno do sol e de si mesma, uma das duas afirmações está errada e a outra certa. Verificado que, a Terra, realmente, é que se move para receber a luz do sol, estando isso claramente demonstrado, o dogma religioso teria que ser reformado; mas, os dogmas são eternos e continuam de pé, embora mortos.

            A intolerância religiosa não permitiu a reforma dos ensinos, limitando-se ao silêncio quando muito evidente se acha o erro. O homem entusiasmou-se então pelo saber e proclamou o extremismo oposto: só é verdade o que podemos verificar pelos nossos sentidos e só o saber deve governar a humanidade.  

            O Espiritismo veio providencialmente reestabelecer o equilíbrio. Muitíssimas coisas ainda não podemos verificar e demonstrar, porque escapam aos nossos sentidos atuais, assim como dos nossos conhecimentos de hoje não poderiam ser verificados pelos homens de alguns milênios passados, porque lhes faltavam instrumentos e descobertas que muito nos ampliam hoje o alcance dos sentidos. Muita coisa, que era indemonstrável há dois mil anos passados já podemos demonstrar. Continuaremos progredindo sempre e fazendo incessantemente novas descobertas. Alguns milênios mais tarde, teremos incorporado à nossa ciência positiva um infinito de coisas que hoje são indemonstráveis; mas teremos pela frente ainda e sempre um infinito a descobrir, a aprender.

            O fanatismo científico, do mesmo modo que o religioso, traça limites ao possível, torna-se intolerante e produz os mesmos males do seu antagonista.

            Infelizmente há quem pretenda envolver o Espiritismo no extremismo cientifico e combater a crença religiosa.

            Tratando com entusiasmo do futuro Congresso Panamericano de Espiritismo, a realizar-se em Buenos Aires, o nosso brilhante confrade Fermin Añez Lamus, de Barquisimeto, Venezuela, escreve em "La Idéa" brilhante artigo tentando traçar diretrizes ao referido Congresso e desde já declara que as decisões do certame devem abolir, como reacionárias, todas as ideias religiosas e só admitir o Espiritismo como um movimento científico, filosófico e social. Diz textualmente:

            "Que de él salgan Ias directrices restauradoras de nuestro credo cientifico filosófico;
es decir, que Ios acuerdos que tome referentes a Ios temas cientificos, filosoficos y sociologicos brillen por Ia ansencia de todo contenido de religiosidad oriental o cristiana, ateniéndose tan sólo a seguir Ias huellas preconizadas por los Geley, Ios Gonzalez Soriano, Ios Bozzano, etc, etc."

            Tal atitude seria limitar o Espiritismo eternamente ao estudo dos fenômenos que provam a sobrevivência, sem passar jamais à formação de um corpo doutrinário destinado a orientar a conduta dos homens. - Seria aceitar os Espíritos como simples cobaias de experimentação, desprezando suas opiniões, suas convicções, seus exemplos, por vezes eloquentíssimos. Os Espíritos nos falam e demonstram que as suas atitudes mentais, a orientação de seus pensamentos e sentimentos representaram papel essencial na formação de sua personalidade feliz ou desgraçada. Em seus ensinos, demonstram que uma infinidade de conhecimentos ainda não podemos obter pela observação direta, pelos sentidos, e que só pela intuição religiosa e pela palavra de Espíritos mais evolucionados do que nós, podemos ser orientados para acertar em nossa conduta, nessa região imensa que desconhecemos. A revelação religiosa fica solidamente confirmada e explicada pelos Espíritos, se bem por vezes revogados os ensinos que correspondiam a necessidades já passadas.

            Um Espiritismo que abolisse todos os tesouros das Revelações religiosas, para limitar-se exclusivamente ao estudo científico, filosófico, social, desprezaria a essência mesma do
Espiritismo, isto é, os ensinos que recebemos dos Espíritos adiantados. Seria qualquer coisa, menos Espiritismo.

            A palavra Espiritismo foi cunhada por Allan Kardec, com o sentido bem definido em
que vem sendo empregada e não pode tomar novo sentido sem grande confusão. Longe de eliminar o sentimento religioso, o Espiritismo o estabelece sobre bases inabaláveis.

            Estamos certo, pois, que o ilustre autor do artigo se enganou levado pelo seu entusiasmo científico e caiu num extremismo não menos pernicioso do que o fanatismo religioso. Felizmente, o Congresso não terá poderes para transformar o Espiritismo em Metapsíquica, isto é, para fazer o todo caber em uma de suas partes. A obra dos metapsiquistas é preciosíssima, estabelece sobre bases positivas, como verdade cientificamente provada, a sobrevivência humana, que no passado era simples crença religiosa. Neste pormenor, já poderemos substituir a crença pela ciência e ficar bem com o nosso autor; mas, ainda resta um infinito à nossa frente para o qual precisamos do auxílio da crença na palavra dos Mestres, dos Profetas, dos Guias, e tudo isso - é domínio da religião, da crença.

            Esperemos, no entanto, que o Congresso não cometa erros graves, excedendo sua competência, como seria o caso, se aprovasse uma tese contra o espírito religioso do Espiritismo ou mesmo qualquer tese negativa. A finalidade precípua do Congresso deve ser construir e não destruir, afirmar e não negar.


Vamos apanhar sol



Vamos apanhar sol
(Conto de educação doutrinária, dedicado aos professores de moral evangélica.)
por Leopoldo Machado
Reformador (FEB) Novembro 1942

            Era um casal de hiperbóreos. (termo usado para indicar qualquer um que viva em clima frio.)

            Nascidos e criados nas regiões polares, quase aos noventa graus, só conheciam do sol os mortiços raios oblíquos, que, três meses ao ano, lhe chegavam palidamente como claridade quase ao lusco-fusco das zonas tropicais. Acostumados a noites de seis meses e a crepúsculos de mais de mês não encontravam alegria e vida senão na penumbra, na sombra, nas trevas. Até sua visualidade se adaptara de tal modo à treva, que só viam bem às escuras: que uma claridade mais forte lhes fazia grande mal.

*

            Necessidade de outros meios de subsistência os arrasta a outra região mais bem aquinhoada de sol. Subiram a habitar a zona temperada. Mas, continuaram como inimigos do sol, foragidos da claridade. Como seus meios de vida eram em casa mesmo, nunca saiam à rua, quando havia sol. Só ao crepúsculo e à noite, supriam suas necessidades de fora do lar...

*

            Nasce-lhes um filho.

            A criança se cria de acordo com a vida no seu clima, na sua região. Gostava do ar livre, da vida ao sol. Tinha, por isso mesmo, saúde e fortaleza. Boa cor e muita disposição. Foi cedo para a escola. Inteligência precoce, assimilava com facilidade o que ouvia e lia.

*

            Um dia, o inspetor escolar fez uma prédica muito oportuna e clara aos alunos de sua escola, ao ar livre, todos apanhando sol, sobre a necessidade de viver sob mais luz solar, ao ar livre. Era uma necessidade apanhar mais sol, viver mais ao sol, que é a maior fonte de vida, de alegria, de saúde, de energia...

*

            - Papai, vamos apanhar sol, que dá muita energia e saúde à gente, muita alegria e vida.  É preciso apanhar sol, que o homem ensinou, na escola, a gente. E pediu a gente que dissesse isto a nossos pais. Assim, a mamãe e o papai devem tirar um tempinho atoa para apanhar sol, que faz bem. Só depois que eu ouvi o homem falar na escola, é que compreendi porque o papai e a mamãe não têm sangue, são tristes, vivem doentes, sem cor...  

            Os pais se justificaram, alegando apego aos velhos costumes, à vida na terra onde nasceram e viveram muitos anos, e aos hábitos da infância.

            - Qual o que! - retorquia a criança. - Tudo isto é erro. O papai vivia assim, a mamãe e o papai ainda vivem assim, porque nem conhecem o sol direito; porque nunca apanharam um bocado bom de sol! Vamos apanhar sol, uma vezinha só, comigo, que o papai e a mamãe vão gostar. E nunca mais deixarão de querer ver o sol, de apanhar sol garanto. 

            À insistência do filho, certa manhã, fresca e luminosa, saíram. Meio receosos, mas saíram, o sol, bem no alto, era uma linda rosa de luz, iluminando, suavemente, a Terra. Era na primavera. As árvores se arreavam de flores. O ambiente, perfumado, convidava à alegria e estimulava para a vida. A criança, na frente, pulava e cantava de alegria. Os pais, diante da felicidade do filho - e do espetáculo que lhes era, até aquele momento, desconhecido e estranho, modificaram seus conceitos sobre a vida que, até ali viveram. E contemplaram o sol. E apanharam sol. E passaram a apanhar e a querer ver, a miúde, o sol, a maior fonte de energia, de saúde, de alegria. E confessaram sua gratidão ao filho, dizendo-lhe que, se não fosse ele, ainda continuariam amigos das trevas, da sombra, da penumbra.

Realidade e aplicação do Conto

            O professor de aulas de Evangelho nos centros espíritas lerá o conto aos alunos, concluindo-o, a dizer-lhes:

            - Eu e vossos pais somos bem, comparados convosco, como os hiperbóreos do conto. Quando nascemos, e na nossa infância, só existia o gelo polar de uma religião fria, sem claridades racionais, e sem o sol da verdade pura. E vivemos assim, embaraçados nas sombras espessas de seus dogmas, dentro da noite escura de seus ensinamentos irracionais. Os raios cio Cristianismo puro até nós chegaram lusco-fuscamente, porque deturpados por aparatosas encenações e formalidades, porque através de ritualismos e práticas de impressionar, somente, os sentidos materiais.

            Chegamos até ao tempo da 3ª Revelação, que é o Espiritismo, como aquele casal de hiperbóreos chegou à zona temperada. E continuamos indiferentes ao sol da verdade do Espiritismo, tocados da mesma penumbra, e sombra, e trevas da religião polar, que prega a adoração a um Cristo morto, crucificado. Continuamos sem compreender que devemos servir ao Cristo vivo, descrucificado, que deseja ser amado e compreendido sem mistérios e sem milagres, sem dogmas e sem encenações.

            Quanto a mim, fui chamado a ver e contemplar o sol do Espiritismo. Atendi ao convite e aqui estou a falar-vos dos raios deste sol, da alegria, saúde espiritual e energias que este sol transfunde com tanta claridade, que até as crianças e os jovens como vós compreendem-no admiravelmente, perfeitamente.

            E vossos pais? Todos vêm a esta casa, apanhar sol aqui? Porque estudar, compreender, sentir e praticar o Espiritismo de verdade é apanhar o melhor sol espiritual! Não? Nem todos vêm? Pois bem: que cada um de vós imite o filhinho daquele casal de hiperbóreos, contando a seu papai, a sua mamãe a história que ouviu aqui, a insistir com ambos que venham até cá, nos dias de sessões de estudo, ouvir o que aqui se ensina, meditando o que ouvir e comparando-o com o que lhes foi ensinado, quando eram, como vós, crianças. Que cada um de vós convide, nos dias de sessões de doutrina, seus pais para virem apanhar um pouco deste sol que vós já estais sentindo bem. Fazei isto, e ficai certos que vossos papais, acabarão, como os papais do menino do conto, agradecidos a vós e bendizendo o sol, que passarão a apanhar aqui, nos dias de sessões. Fazei isto, que dareis a melhor prova de amor filial, que será concorrer para a felicidade de vossos pais, por conhecerem a verdade, que é prova de gratidão para com vossos papais, aos quais tudo deveis, para com a Doutrina que os está, já de pequeninos, orientando na vida.

            Convidai, pois, vossos papais a ver o sol, a apanhar sol convosco, nesta casa onde se aprende a servir o Cristo vivo, descrucificado.


quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Amor Sublime



Amor sublime
H. Magalhães
Reformador (FEB) Novembro 1942

            Viviam os três numa pequena cidade do interior fluminense: o jovem casal e um filhinho. Entretanto, não eram felizes. O esposo era farrista e amante das bebidas. Daí as constantes brigas entre os dois.

            O terceiro personagem - Milton, de três anos de idade – assistia, impassível às cenas dolorosas entre os pais, observando tudo com os seus grandes olhos indagadores.
- Você se arruína - dizia D. Tereza, a esposa mártir, para o marido estroina, quando ele chegava trocando as pernas.     

            - Não se incomode comigo, ouviu? - respondia ele. Isso só a mim interessa. Meta-se com sua vida e deixe-me em paz ...

            A inditosa senhora chorava lágrimas amargas, enquanto o truculento companheiro curava a embriaguez, num sono reparador. Certo dia, o lar foi enriquecido com o nascimento de uma linda menina, em quem puseram o nome de Julieta. O pai vota-lhe verdadeira amizade. Andava com ela ao colo; juntos, brincavam os dois, parecendo mais duas criancinhas. D. Tereza aproveitava os colóquios entre pai e filha para chamar o marido à razão.

            "- Mauricio dizia, meiga, -- fico tão alegre quando você brinca com a Julieta!.. Porque não fica no lar, todo o tempo de folga, ao lado dos nossos filhos, auxiliando-me a educá-los?

            - Lá vem você com lamúrias - respondia o marido. Não ficarei em caso como você quer, não. Deus fez a mulher para o lar e o homem para a rua. Não quero ser maricas, como o vizinho. Aliás, creio que foi o Espiritismo que o transformou. Não sei que diabo tem essa religião. Ele é o segundo dos companheiros a abandonar o nosso grupo.

            - Você o chama de maricas, porque ele cumpre com os deveres de pai e de esposo - atalhou a companheira. Quando chega do trabalho, ajuda a esposa no que pode e dá lições aos filhos. Em compensação, vivem em paz, felizes e alegres. Você, ao contrário, junta-se a esse grupo de viciados e vai para as tabernas e lugares escusos, a gastar o ordenado nas orgias, deixando-nos ao desamparo e, mesmo, sem o necessário para nos alimentarmos.

            - Não admito observações -- gritou o marido, colérico. Vou onde quero e não serão as suas lamúrias que me hão de transformar. E, naquela noite, saiu, como sempre, para se unir aos companheiros de farra.

            Passaram-se os tempos e, quando a encantadora Julieta tinha dois anos, foi acometida de uma moléstia misteriosa, falecendo. Os dois esposos caíram em desespero, chorando a ausência da idolatrada filhinha.

            Daí em diante, Mauricio mais se engolfou no vício de beber. Parece que pretendia afogar as saudades da morta nas emanações alcoólicas... Foi quando um fato curioso começou a dar-se inesperadamente.

            Um belo dia, em que ele, sentado à mesa, ia levar o cálice aos lábios, eis que lhe aparece o Espírito da filhinha morta, dirigindo-lhe um olhar triste e acenando-lhe para que não bebesse. Aterrorizado com a visão, jogou o parati fora e saiu do botequim. Nesse dia não mais bebeu. Desde então, todas as vezes que Mauricio intentava sorver o maldito liquido, aparecia-lhe a morta querida, impedindo-o de fazê-lo. Veio-lhe então uma ideia. Como gostava de ostras, disse à esposa que derramasse parati no casco vazio desses moluscos. Com isso -- monologava - enganarei o fantasma da minha filhinha, que pensará que vou comer ostras. Só assim poderei satisfazer ao meu desejo. Quando, porém, ia levar o casco da ostra aos lábios, apareceu-lhe, inopinadamente, o vulto da criança com os seus cabelos louros e ar tristonho... Desesperado, jogou com força no chão a ostra com o líquido. Aquilo não podia continuar - pensava. Como acabar com semelhante situação?!. ..

            - Lembrou-se, então, de pedir os préstimos do vizinho, o trânsfuga do grupo farrista, seu antigo companheiro. Pode ser - dizia de ele para si - que ele me livre dessa visão, na sessão espírita que frequenta. Tenho escutado falar em tantos casos extraordinários desses malucos!... Quem sabe! Talvez seja verdade.

            Dias depois ei-lo, ao lado do vizinho, numa sessão espirita. Depois de sentida prece, é aberta a sessão. Após breve silencio, eis que Mauricio fica arrepiado. Começa a ver, nitidamente, vários Espíritos, alguns até luminosos. Entre estes, achava-se o de sua filha. Muito timidamente comunicou o fato ao diretor dos trabalhos e este, verificando que Mauricio era vidente, o convidou a sentar-se à mesa.

            Depois de lida uma comunicação psicográfica, fez-se novo silêncio, manifestando-se alguns irmãos do outro plano, que trocaram impressões com o diretor. Por fim, manifestou-se o Espírito guia dos trabalhos, saudando os presentes, em nome de Deus, e exortando-os ao cumprimento do dever. Nesse momento, o diretor lhe pediu um conselho para Mauricio. O Guia, dirigindo-se a este, disse: - “Meu amigo, é necessário mudares o rumo de tua vida... O Espírito de tua filha, que se acha presente, te vem protegendo desde remotos tempos, através de inúmeras reencarnações. Há muitos séculos, no tempo em que Jesus palmilhou as estradas da Judéia, na sua divina missão, eras um patrício romano, exercendo elevado cargo na administração de Jerusalém. Quando o Cristo foi preso, a tua velha e bondosa mãe pediu que intercedesses junto a Pilatos para libertar o Messias. Não atendeste, porém, ao seu justo pedido, alegando frívolos motivos. Esse procedimento muito desgostou a tua genitora.

            "Anos depois partia ela para o espaço. Após várias reencarnações, conseguiu esse valoroso Espírito libertar-se das suas imperfeições, alçando o voo definitivo aos espaços siderais. Aqui, do outro lado da vida, continuou a proteger-te. Como na atual encarnação trilhasses o caminho do vício, tara que te persegue desde pristinas eras, procurou ele desviar-te desse roteiro. Para se fazer ouvir, aproveitava todas as oportunidades, aconselhando-te, através da intuição. Contudo, não seguias os seus conselhos, embrenhando-te, cada vez mais, nos prazeres condenáveis do mundo.

            "Vendo frustrados os seus intentos, pediu a Deus permissão para reencarnar no teu lar o que lhe foi concedido, tomando então o nome que lhe puseste de Julieta. Dois anos passados, desencarnava. Esses curtos instantes, no entanto, foram bastantes para fazer reviver a antiga amizade que vos unia. Novamente no espaço, procurou influenciar-te, aparecendo-te com o frágil corpo da criança Julieta, tua filha querida, tentando arrancar-te ao vício da embriaguez e do jogo. Podes aquilatar, por este relato, o amor que te consagra esse Espírito dedicado, que foi tua mãe e que te vem seguindo pelos séculos em fora, fazendo todos os sacrifícios para te colocar no caminho que o Verbo ensinou aos homens".

            A seguir manifestou-se o Espírito da criança loura, a Julieta, exortando o pai a frequentar aquele Grupo, onde - dizia-lhe - se transformaria, com a ajuda dos companheiros e dos Espíritos guias, terminando por agradecer a Deus aqueles momentos venturosos. Mauricio chorava de emoção. Escaldava-lhe a cabeça, procurando coordenar ideias novas. Sua vida se transformou radicalmente. Hoje é um exemplar chefe de família. Suas faculdades mediúnicas se desenvolveram e desde aquele dia, tornou-se assíduo frequentador do "Grupo dos Malucos". A esposa exultou de contentamento e fez sentidas preces ao Criador, agradecendo as messes recebidas.


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Carta aberta ao Dr. Carlos Imbassahy

                                                                                                     Carlos Imbassahy

Carta aberta ao Dr. Carlos Imbassahy
por Souza Prado
Reformador (FEB) Outubro 1942

Meu caro Imbassahy:

            Fiquei pasmado ao ler o seu excelente livro "Religião"; e o que me boquiabriu não foi aquela irônica dedicatória, em que Você, com a maldade que o caracteriza, e que todos fazem a justiça de lhe reconhecer, me chama "jovem Sousa, risonho e esperançoso como um Prado florido", sem se lembrar, ou talvez mesmo porque se lembrou de que é ... infinitamente mais velho que eu. O que me embasbacou foi o pretexto de que Você se serviu para escrever uma obra, que é das melhores que já li sobre Espiritismo. Com efeito, nela se nota muita erudição, muita sinceridade, muita fé, um raciocínio claro e lúcido, lógica irretorquível, além do belo estilo, que todos nós lhe conhecemos. Isto, é claro, a não falarmos das entrelinhas, que são muito mais importantes ainda ...


            Mas, de tudo isso, nada me surpreendeu; desde que o conheço, o que me poderia surpreender seria a ausência de tais predicados em uma obra sua.

            Aquele pretexto é que foi o Diabo... com maiúscula! Pois Você escreve um livro de tal porte, para responder ao despacho do digno e sincero Diretor do Ensino, de S. Paulo?! Que queria, então, Você que ele tivesse feito?!

            Pois, se ele sabe, tanto lá do íntimo, que “...todas as Igrejas sempre protestaram contra a subordinação da fé ao raciocínio”; e se está sinceramente convencido disso; por outras palavras: se, em seu conceito, religião é sinônimo de estupidez e ignorância, queria Você que ele considerasse o Espiritismo uma religião?! . .. É claro que não podia ser. O honrado Diretor do Ensino sabe perfeitamente - está-se vendo - que religião é o Catolicismo; e, portanto, segundo o seu modo de ver, somente este poderá e deverá ser ensinado, como religião, nas escolas. Essa é a opinião sincera e franca do ilustrado e culto Diretor do Ensino, de S. Paulo. E ele procedeu, pois, de perfeito acordo com o que lhe indicava o seu esclarecido critério.

            Agora, nós, que sabemos que tal conceito, a respeito do que seja religião, está errado, temos que admitir que ele esqueceu o que deve ter aprendido na escola primaria - naturalmente enquanto fez o curso superior; - e, assim, é claro que Você não deveria ter perdido o seu tempo a escrever uma obra de tanto valor, mas antes se deveria ter limitado a fazer o que eu faria, se ainda existisse o meu Heraldo, de saudosa memória, e que se resumiria em aconselha-lo a que fosse de novo para a escola primária relembrar o que esqueceu, ou, quando menos, recomendar-lhe a consulta de dicionários, desde os melhores aos mais "vagabundos"...

            Então, ele veria que religião e estupidez são coisas que nem sempre andam a par, e que, muito ao contrário, a verdadeira fé é precisamente aquela em que entra o raciocínio, como sucede no Espiritismo. E ficaria sabendo que fé ou religião sem raciocínio são simples fanatismo religioso, e nada mais...

            Aliás, seja dito de passagem, a lei não deveria permitir que pessoas absolutamente ignorantes de um assunto pudessem opinar sobre ele, e julgar, sob tal aspecto, os requerimentos de cidadãos que têm absoluto direito de verem respeitadas as suas prerrogativas, que não podem nem devem estar sujeitas ao arbítrio, prepotência e faccíosísmo de quem quer que seja.

*

            Mas, afora o pretexto de que Você se serviu para escrever o livro, não há dúvida de que ele veio prestar assinalados serviços à doutrina; porque não é somente o Sr. Diretor do Ensino que ignora que o Espiritismo seja religião - o que se compreende perfeitamente por nada entender ele do assunto, apesar a presunção que o levou a escrever: “Por não ser uma religião (o Espiritismo), como se acaba de demonstrar...” , isso depois de não ter demonstrado coisa nenhuma; - entre os que se dizem espiritistas também há quem afirme a mesma enormidade, fazendo-o mesmo alguns de boa fé. E é para estes que o livro era uma necessidade, a não falarmos em que, com ele, Você divulgou inumeráveis conhecimentos, que, para noventa e nove por cento dos que o lerem, serão verdadeiras novidades. A maioria, porém, dos pseudo espiritistas, que negam ao Espiritismo a característica de religião, fazem-no de má fé, por despeito e por oposição sistemática à Federação Espirita Brasileira. Esses procuram hostilizar, por todos os meios, a Federação, servindo-se, para isso, de todos os pretextos, mesmo os mais tolos. Ainda há pouco, um deles, em artigo que me mostraram, e a que eu não respondi por uma questão de higiene moral, afirmava que: “recentemente, muito se disse e se vem dizendo insistentemente de outrem (este outrem, sublinhado pelo autor do artigo, sou eu) quanto a uma presusida dissensão com alguns membros da Federação...”

            Ora, Você sabe perfeitamente que tal asserto (não confundir com acerto) rima, mas não verdade, é tudo quanto há de mais bobo, e só serve para demonstrar o que acima afirmei; isto é: que há, aí, um grupo de despeitados, que se servem dos pretextos mais tolos para hostilizar sistematicamente a Federação.

            E, seria o caso de se saber, antes do mais, em que poderia afetar à Federação, ou aos seus dirigentes, qualquer dissensão entre eles e a minha importantíssima pessoa, apesar da diferença moral que existe entre mim e os do tal grupo... E, depois, a verdade é que, entre mim e os Diretores da Federação nunca houve dissensão nenhuma, no sentido, caviloso em que o referido cavalheiro empregou o termo. Se algum dia houve discordância no nosso modo de ver sobre alguns pontos de doutrina, e se ainda continua a havê-la, isso só prova que, sendo o Espiritismo uma doutrina em que se raciocina livremente, nenhum de nós aceita isto ou aquilo somente porque outrem o diga; e, aí, estamos todos dentro da doutrina.

            Aliás, Você lembra-se da sinceridade e lealdade com que então discutimos, e que fazia que Você lesse os meus artigos, e eu os seus, antes de serem publicados. Mais ainda: o que os do tal grupo ignoram, e não poderão mesmo compreender, é que quem levava, para o jornal em que foram publicados, os artigos com que Você respondia aos meus, era eu mesmo; e, no fim de tudo, ria-mo-nos ambos, como amigos bons e leais, que sempre fomos, como ainda hoje continuamos a rir-nos de tudo isso, não obstante estarmos em desacordo sobre alguns pontos de doutrina... E o que também ignoram, e é bom que saibam os do tal grupo, é que - embora divergindo, neste ou naquele ponto, do modo de ver de alguns dos Diretores da Federação, e admitindo, como não poderia deixar de admitir, que eles, como eu e todos nós, estão sujeitos a errar - sempre considerei, os que compõem a diretoria da Federação, pessoas honradas, sinceras e dignas, que é o que, infelizmente, não posso dizer de muitos dos que os atacam sistematicamente... a eles e a mim.

*

            De forma que a tal dissensão entre mim e a Federação Espírita Brasileira é do mesmo gênero da ignorância e má fé que os levam a defender o ponto de vista do Sr. Diretor do Ensino, de S. Paulo; e todos eles têm muito que aprender no seu livro, embora ele seja, sob tal aspecto, muito mal empregado.

            Acho mesmo que Você se desviou muito do preceito escriturístico , que nos aconselha a "não deitar pérolas aos porcos"... em sentido figurado, já se vê...

            E faça favor de me não tornar a chamar "jovem Sousa", nem "Prado florido" ...

            Quanto ao mais, um afetuoso abraço do seu de sempre

SOUSA do PRADO.
Rio, 3 de Outubro de 1942