Ilusões da
Propriedade
Cristiano
Agarido (Ismael Gomes Braga)
Reformador
(FEB) Dezembro 1946
Esse conhecimento ajuda-nos a
libertar-nos da avareza que tantos males tem causado à Humanidade.
Se na realidade da vida eterna é
assim, o rico de hoje pode tornar-se o miserável de amanhã pela morte ou pela
desapropriação imprevisível. Outro aspecto ainda existe, no domínio dessa
ilusão, que merece nossa reflexão e vamos tentar esboçá-lo num rápido artigo.
A vida moderna complicou a primitiva ideia de
propriedade, positiva questão de força entre os antigos, tornando-a de tal
complexidade que desafia a inteligência dos mais argutos e a força dos mais
violentos. Em vez do saco de ouro foram criados os papéis simbólicos do ouro,
confiados à guarda dos governos e sujeitos a desvalorizações parciais ou
totais. Vemos um país inteiro arruinado,
com a moeda reduzida em seu poder aquisitivo a tão ínfimo valor que todas as
rendas se tornam insuficientes à subsistência.
O preço de um prédio, poucos meses
depois de vendido, não basta para pagar o aluguel de outro por um mês; os juros
dos títulos, com os quais vivia confortavelmente uma família, tornam-se
insuficientes e tem-se que vender tais papéis e seu produto desaparece
rapidamente. É essa a situação hoje de muitos países europeus, mesmo de um dos
vencedores da guerra.
Além dessas calamidades de ordem nacional,
independentes da vontade de um povo inteiro, outra existem de natureza privada
que merecem exame filosófico. As ações de sociedade anônima apresentam uma
dessas modalidades. Há neste momento no Brasil muitas sociedades anônimas,
cujas ações dentro de 24 horas perderam todo o seu valor positivo e passaram a
representar valor negativo, isto é, são símbolo de dívidas a pagar e ninguém as
quer em suas mãos, quando 24 horas antes mesmas ações tinham 300% de ágio. São
empresas falidas por força de Decretos que determinaram sua proibição, em
oposição a Decretos anteriores que as estabeleceram. Não interessam pormenores
nem crítica a nenhum dos dois Poderes, um que criou, outro que exterminou tais
empresas; só interessam os fatos positivos que produziram prosperidade
passageira e ruína completa de alguns milhares de pessoas.
Há em nosso tempo pessoas que passam
pela vida inteira em grandes negócios, em plena ilusão de riqueza, mas que na
verdade nunca possuíram um ceitil. Todas as suas operações são financiadas por
bancos e particulares, sob caução de papéis que realmente nada de duradouro
representam, e tais e tantas são as operações de crédito que o autor do
movimento chega à ilusão completa de que é rico e como tal vive muitos anos ou
a vida toda e não raro constrói prédios, monta fábricas, torna-se um fator do
progresso, elemento útil da sociedade em que vive. Em qualquer momento de sua vida, porém, que a
sua situação real fosse analisada, ele estaria insolvável. Viveu, trabalhou,
fez muito bem ou muito mal, baseado em ilusões e cultivando esperanças de
lucros que lhe permitissem tornar-se proprietário real e não somente
depositário de bens alheios.
Toda essa confusão moderna contribui para nos
esclarecer sobre a ilusão da vida material. Só os bens espirituais realmente
nos pertencem e dentro dessa babel temos que ouvir a ressonância daquela
advertência descida do céu: “Ajuntai
tesouros no céu, onde nem a traça, nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões
não minam nem roubam.” (Mat. 6:20)
E, no entanto, não podemos fugir da sociedade em que
vivemos e de submeter-nos às suas ilusões e complicações, sem nos tornarmos
inteiramente inúteis a nós mesmos e aos outros! Existem grandes serviços a
prestar, obras necessárias ao progresso do mundo e dos homens e só as podemos
realizar dentro da situação existente. Por mais contraditória que seja a
sociedade moderna, é ela o laboratório de grandes realizações. É ela o nosso
campo de trabalho e não podemos fugir a todas as suas complicações e perigos
sem cairmos na situação de servo infiel que enterrou os talentos com receio de
perdê-los.
A propriedade é uma ilusão, não podemos apegar-nos a
ela, porque nos será retirada quando menos esperarmos; no entanto, sem ela não
podemos realizar as obras que nos foram confiadas. Como sair do dilema?
Parece-nos que o mal tem sido apenas de considerarmos
efetivo o que é passageiro e de nos escravizarmos à propriedade em vez de
empregá-la como serva, como instrumento de prestar serviços. Se a nossa
finalidade clara for a de servir, todas as coisas em nossas mãos oferecerão
meios de prestar serviços; não mais nos julgaremos proprietários de coisa
alguma – o que seria funesta ilusão – mas somente administradores provisórios
dos bens da Providência. Quando chegarmos à compreensão clara dessa função da
propriedade, tornar-nos-emos administradores fiéis do tesouro do Pai,
sentindo-nos responsáveis no emprego de toda e qualquer parcela dos bens que
passam pelas nossas mãos. Seremos, então, instrumentos da Providência, e o
mundo se transformará em paraíso. Longa será ainda a nossa luta para
realizarmos essa mudança de mentalidade. Muitos serão os Missionários que terão
que descer à Terra para nos ensinar e serem incompreendidos por nós em nossa
timidez diante da pobreza. Essa timidez, essa falta de fé nos homens, sulcou
fundamente o nosso Espírito durante muitas encarnações penosas e só com longos
abalos, muita dor, conseguiremos libertar-nos de nós mesmos e vivermos para a
obra divina.
De qualquer sorte não nos insulemos
num claustro, vivamos e lutemos na sociedade humana com todos os seus riscos e
perigos.
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