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quinta-feira, 27 de maio de 2021

Ilusões da Propriedade

 

Ilusões da Propriedade

Cristiano Agarido (Ismael Gomes Braga)

Reformador (FEB) Dezembro 1946

             O Espiritismo vem projetar nova luz sobre os problemas humanos e destruir velhas ilusões que infelicitavam os terrícolas. Um de seus ensinos nos demonstra que não temos propriedades materiais: somos apenas usufrutuários sem tempo determinado, em situação mais insegura do que o hóspede de um hotel, certo de poder permanecer no uso e gozo de seu apartamento durante a semana, paga adiantado. De todos os bens podemos ser despojados a qualquer momento pela morte ou, mesmo, antes dela, por imprevistos que desafiam toda a nossa perspicácia.

            Esse conhecimento ajuda-nos a libertar-nos da avareza que tantos males tem causado à Humanidade.

            Se na realidade da vida eterna é assim, o rico de hoje pode tornar-se o miserável de amanhã pela morte ou pela desapropriação imprevisível. Outro aspecto ainda existe, no domínio dessa ilusão, que merece nossa reflexão e vamos tentar esboçá-lo num rápido artigo.

            A vida moderna complicou a primitiva ideia de propriedade, positiva questão de força entre os antigos, tornando-a de tal complexidade que desafia a inteligência dos mais argutos e a força dos mais violentos. Em vez do saco de ouro foram criados os papéis simbólicos do ouro, confiados à guarda dos governos e sujeitos a desvalorizações parciais ou totais.  Vemos um país inteiro arruinado, com a moeda reduzida em seu poder aquisitivo a tão ínfimo valor que todas as rendas se tornam insuficientes à subsistência.   

            O preço de um prédio, poucos meses depois de vendido, não basta para pagar o aluguel de outro por um mês; os juros dos títulos, com os quais vivia confortavelmente uma família, tornam-se insuficientes e tem-se que vender tais papéis e seu produto desaparece rapidamente. É essa a situação hoje de muitos países europeus, mesmo de um dos vencedores da guerra. 

            Além dessas calamidades de ordem nacional, independentes da vontade de um povo inteiro, outra existem de natureza privada que merecem exame filosófico. As ações de sociedade anônima apresentam uma dessas modalidades. Há neste momento no Brasil muitas sociedades anônimas, cujas ações dentro de 24 horas perderam todo o seu valor positivo e passaram a representar valor negativo, isto é, são símbolo de dívidas a pagar e ninguém as quer em suas mãos, quando 24 horas antes mesmas ações tinham 300% de ágio. São empresas falidas por força de Decretos que determinaram sua proibição, em oposição a Decretos anteriores que as estabeleceram. Não interessam pormenores nem crítica a nenhum dos dois Poderes, um que criou, outro que exterminou tais empresas; só interessam os fatos positivos que produziram prosperidade passageira e ruína completa de alguns milhares de pessoas.   

            Há em nosso tempo pessoas que passam pela vida inteira em grandes negócios, em plena ilusão de riqueza, mas que na verdade nunca possuíram um ceitil. Todas as suas operações são financiadas por bancos e particulares, sob caução de papéis que realmente nada de duradouro representam, e tais e tantas são as operações de crédito que o autor do movimento chega à ilusão completa de que é rico e como tal vive muitos anos ou a vida toda e não raro constrói prédios, monta fábricas, torna-se um fator do progresso, elemento útil da sociedade em que vive.  Em qualquer momento de sua vida, porém, que a sua situação real fosse analisada, ele estaria insolvável. Viveu, trabalhou, fez muito bem ou muito mal, baseado em ilusões e cultivando esperanças de lucros que lhe permitissem tornar-se proprietário real e não somente depositário de bens alheios. 

            Toda essa confusão moderna contribui para nos esclarecer sobre a ilusão da vida material. Só os bens espirituais realmente nos pertencem e dentro dessa babel temos que ouvir a ressonância daquela advertência descida do céu: “Ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça, nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam.” (Mat. 6:20) 

            E, no entanto, não podemos fugir da sociedade em que vivemos e de submeter-nos às suas ilusões e complicações, sem nos tornarmos inteiramente inúteis a nós mesmos e aos outros! Existem grandes serviços a prestar, obras necessárias ao progresso do mundo e dos homens e só as podemos realizar dentro da situação existente. Por mais contraditória que seja a sociedade moderna, é ela o laboratório de grandes realizações. É ela o nosso campo de trabalho e não podemos fugir a todas as suas complicações e perigos sem cairmos na situação de servo infiel que enterrou os talentos com receio de perdê-los.

            A propriedade é uma ilusão, não podemos apegar-nos a ela, porque nos será retirada quando menos esperarmos; no entanto, sem ela não podemos realizar as obras que nos foram confiadas. Como sair do dilema?

            Parece-nos que o mal tem sido apenas de considerarmos efetivo o que é passageiro e de nos escravizarmos à propriedade em vez de empregá-la como serva, como instrumento de prestar serviços. Se a nossa finalidade clara for a de servir, todas as coisas em nossas mãos oferecerão meios de prestar serviços; não mais nos julgaremos proprietários de coisa alguma – o que seria funesta ilusão – mas somente administradores provisórios dos bens da Providência. Quando chegarmos à compreensão clara dessa função da propriedade, tornar-nos-emos administradores fiéis do tesouro do Pai, sentindo-nos responsáveis no emprego de toda e qualquer parcela dos bens que passam pelas nossas mãos. Seremos, então, instrumentos da Providência, e o mundo se transformará em paraíso. Longa será ainda a nossa luta para realizarmos essa mudança de mentalidade. Muitos serão os Missionários que terão que descer à Terra para nos ensinar e serem incompreendidos por nós em nossa timidez diante da pobreza. Essa timidez, essa falta de fé nos homens, sulcou fundamente o nosso Espírito durante muitas encarnações penosas e só com longos abalos, muita dor, conseguiremos libertar-nos de nós mesmos e vivermos para a obra divina.

            De qualquer sorte não nos insulemos num claustro, vivamos e lutemos na sociedade humana com todos os seus riscos e perigos. 


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