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quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Identifiquemo-nos



Identifiquemo-nos – 1
Rodolfo Calligaris
Reformador (FEB) Agosto 1941

A antropogeografia é, atualmente, uma das ciências que mais apaixonam e preocupam as mentes curiosas e perquiridoras.

Um difícil problema, entretanto, surge logo, desafiando a argúcia dos que a estudam: como surgiu a espécie humana?

Duas escolas ou sistemas se formaram e tentam elucidar essa magna questão: - o poligenismo (é uma teoria sobre as origens dos humanos que postula a existência de diferentes linhagens para as raças humanas. Alguns dos seus defensores derivam os seus postulados a partir de bases científicas e outros de bases pseudocientíficas ou religiosas. A teoria opõe-se à hipótese da origem única, ou monogenismo, hoje com forte aceitação face aos resultados genéticos obtidos da análise do genoma humano) e o monogenismo.

O poligenismo afirma que o homem teve a sua origem não em um, mas em vários troncos, independentes uns dos outros, estribando a sua argumentação nas diferenciações físicas que se observam entre as diversas raças que povoam o planeta, diferenciações essas que são: a cor da epiderme, a conformação do crâneo, os caracteres da face, a qualidade dos pelos, a estatura, etc. etc.

A diversidade desses característicos é extrema e profunda e constitui subsídio importantíssimo no estudo e classificação das raças.       

Os defensores da teoria contrária, tentam explicar essas diferenças pelas influências mesológicas; mas, essa explicação não convence suficientemente, porquanto é sabido que o clima, atuando sobre a epiderme pode queimá-la, torná-la trigueira, porém, nunca produzir colorações tão distintas como as que caracterizam os europeus, os abissínios, os asiáticos, etc. Não é exato, igualmente, que sejam as condições do meio a causa da transformação da caixa craniana, da deformação da estrutura facial, do achatamento do nariz, do encarapinhamento do cabelo, etc., pois a sua ação é relativa, delimitada e perfeitamente conhecível.

O monogenismo afirma que o homem só originou de um único tronco, devendo-se distinguir, entre os seus adeptos, os que se louvam nos ensinos da Igreja e os que fundamentam a sua opinião na teoria evolucionista de que é paladino o eminente naturalista Charles Darwin.

Segundo a Igreja, o primeiro homem a habitar a Terra teria sido o bíblico Adão. Esta doutrina está histórica e cientificamente refutada e é esposada por uma minoria de incultos e fanáticos.

A geologia está, hoje, apta a provar que o homem existe na Terra desde tempos imemoriais contrariando assim as ensinanças da Igreja que, baseada na Gênese bíblica, pretende fixar o seu aparecimento a 6.000 anos apenas.

A. Kardec (1), com a agudeza de espírito que lhe era peculiar, fez a propósito, as seguintes observações: - "Admitindo-se que o homem tenha aparecido pela primeira vez na terra 4.000 anos antes do Cristo e que, 1650 anos mais tarde (data do dilúvio universal, segundo Moisés), toda a raça humana foi destruída, com exceção de uma só família, resulta que o povoamento da Terra data apenas de Noé, ou seja de 2.850 anos antes de nossa era. Ora, quando os hebreus emigraram para o Egito, no décimo oitavo século, encontraram esse país muito povoado e já bastante adiantado em civilização. A história prova que, nessa época, as Índias e outros países também estavam florescentes, sem mesmo se ter em conta a cronologia de certos povos, que remonta a uma época muito mais afastada. Teria sido preciso, nesse caso, que do vigésimo quarto ao décimo oitavo séculos, isto é, que num espaço de 600 anos, não somente a posteridade de um único homem tivesse podido povoar todos os imensos países então conhecidos, suposto que os outros não o fossem, mas também que, nesse curto lapso de tempo, a espécie humana houvesse podido elevar-se da ignorância absoluta do estado primitivo ao mais alto grau de desenvolvimento intelectual, o que é contrário a todas as leis antropológicas."

 (1) O Livro dos Espíritos.

Aliás, é a própria Bíblia quem nos faz compreender claramente que o simbólico Adão não foi, como se pretende fazer crer, o primeiro habitante da terra. Senão vejamos. Caim, depois de ter assassinado Abel é recriminado pelo Senhor e, respondendo-lhe, diz: - "O meu pecado é muito grande para eu poder alcançar o perdão. Vós me expulsais da terra e eu Irei ocultar-me das vossas vistas. Serei fugitivo e errante na Terra e quem quer que me encontre me matará, - O Senhor lhe respondeu: Não, isso não acontecerá, porque quem quer que seja o que matar Caim será punido severamente. E o Senhor pôs um sinal em Caim, a fim de que aqueles que o encontrassem o não matassem. Retirando-se então Caim de diante do Senhor, vagueou pela Terra e foi habitar para os lados da região oriental do Éden. E, tendo-o conhecido, sua mulher concebeu e pariu Enoch. Ele estava edificando uma cidade que chamou Enoch, do nome de seu filho" (2).

(2) Genese, cap. IV, 13 a 17

Segundo este relato da Bíblia, Adão e Eva estavam sós no mundo depois de haverem sido expulsos do paraíso terrestre e só posteriormente tiveram por filhos Caim e Abel. Quando pois Caim se dirigiu para as regiões do oriente do Éden, após haver cometido o fratricídio já citado, existiam no mundo três pessoas apenas: seu pai, sua mãe e ele. Como se explica então o seu receio de ser morto por algum desconhecido? Quem poderia encontrá-lo e matá-lo, se não existia mais ninguém além de seus pais? E que mulher seria essa, com quem se casou? E para quem a cidade que ele estava edificando?

Cidade pressupõe habitantes e seria absurdo presumir que Caim estivesse edificando uma cidade só para si, sua mulher e seu filho.

Claríssimo, não acham?

Muitas outras considerações poderiam ser tecidas em abono de nossa tese; dispensamo-las, porém, por desnecessárias, pois as que aí ficam são mais que suficientes para destruir, de vez, a crença infantil de que a humanidade terrestre descende do legendário Adão.


Identifiquemo-nos – 2
Rodolfo Calligaris
Reformador (FEB) Setembro 1941


Estudemos, agora a teoria evolucionista...

Ela nos ensina que o homem não é um ente privilegiado e a parte no quadro da criação, mas, sim, a última espécie do ciclo evolutivo dos seres orgânicos, ciclo esse que é vencido lentamente, através de milhares e milhares de anos. Partindo dos organismos mais elementares do reino vegetal quiçá do mineral, transitando pelos inúmeros espécimens do reino animal, os seres se elevam, degrau a degrau, num encadeamento continuo, adquirindo formas cada vez mais complexas e completas, até chegar no ser consciente e pensante: o homem!

A. Kardec, (1) demonstrando perfeito conhecimento do assunto, assim descreve essa trajetória imensa:

(1) ‘A Gênese’

"Entre o reino vegetal e o reino animal não existe limite distintamente traçado. Nos extremos dos dois reinos estão os zoófitos ou animais-plantas, cujo nome indica que eles pertencem a ambos; é o seu traço de união.

"Como os animais, as plantas nascem, vivem, crescem, nutrem-se, respiram, reproduzem-se e morrem. Como eles, para viver, elas precisam de luz, calor e água: quando privadas destes elementos, estiolam-se e morrem; a absorção do ar viciado e de substâncias deletérias, envenena-as.

"Seu caráter distintivo mais frisante é estarem presas ao solo e dele tirarem a nutrição, sem se deslocarem.

"O zoófito tem a aparência exterior da planta; como planta, está preso ao solo; como animal a vida nele é mais acentuada; tira a nutrição do meio ambiente.

"Um grau acima, o animal é livre e vai buscar a nutrição de que precisa: são desta ordem as inumeráveis variedades de pólipos, de corpos gelatinosos, sem órgãos bem distintos, e que só diferem das plantas pela locomoção; depois, vêm, na ordem do desenvolvimento dos órgãos, da atividade vital e do instinto: os helmintos, ou vermes intestinais; os moluscos, animais carnudos sem ossos, dos quais uns são nus como as lesmas, as polpas, os polvos; e outros guarnecidos de conchas, como os caracóis, as ostras; os crustáceos, cuja pele é revestida de crosta dura como os camarões, as lagostas; os insetos, nos quais a vida tem uma atividade prodigiosa e o instinto industrioso se manifesta, como a formiga, a abelha, a aranha. Alguns passam por metamorfoses, como a lagarta, que se transforma em elegante borboleta. Vem depois a ordem dos vertebrados, animais de esqueleto ósseo, compreendendo os peixes, os répteis, os pássaros e, enfim, os mamíferos, cuja organização é a mais completa. Considerados somente os dois pontos extremos da cadeia, por certo não se lhes achará analogia alguma aparente; mas, se se passar de um lado ao outro, sem solução de continuidade, chega-se, sem transição brusca, da planta aos animais vertebrados. Compreender-se-á então que os animais de organização complexa podem não ser mais que uma transformação, ou, por outra, um desenvolvimento gradual, a princípio insensível, da espécie imediatamente inferior, e, assim, de grau em grau, até ao ser primitivo elementar.'

"Do ponto de vista corporal e puramente anatômico, o homem pertence à classe dos mamíferos da qual apenas difere pela forma exterior; no mais, tem a mesma composição química que todos os animais, os mesmos órgãos, as mesmas funções e modos de nutrição; nasce, vive e morre nas mesmas condições, e pela morte o corpo se decompõe, como o de tudo quanto vive.

"Não há na sua carne, no seu sangue, nos seus ossos, um átomo diferente daqueles que se acham nos corpos dos animais: como estes, ao morrer, restitui a Terra o oxigênio, o hidrogênio, o carbono, o azoto que se achavam combinados para o formar e que vão, por novas combinações, constituir novos corpos minerais, vegetais e animais.

"A analogia é tão grande, que as suas funções orgânicas são estudadas em certos animais, quando as experiências não podem ser feitas nele próprio.

"Por pouco que se- observe a escala dos seres sob o ponto de vista orgânico, reconhece-se que, desde o líquen até a árvore e desde o zoófito até ao homem; existe uma cadeia que se eleva gradualmente, sem solução de continuidade, e da qual todos os elos se ligam entre si. Seguindo-se passo a passo a série dos seres, poder-se-á dizer que cada espécie é um aperfeiçoamento, uma transformação da espécie imediatamente inferior.”

Chegados ao ponto em que nos achamos, uma pergunta se impõe ao nosso raciocínio: - qual é, afinal, o sistema que mais se aproxima da verdade: o poligenismo, cuja base sólida não pode ser abalada; ou o monogenismo, que tem a seu favor a palavra dos evolucionistas, cujo número, dia a dia, mais se avoluma?

A ciência não conseguiu, até hoje, acumular elementos concretos com que possa explicar as causas dos caracteres distintivos das raças humanas, problema que continua em aberto; conseguiu, porém, determinar que o homem descende de formas inferiores, apresentando, como provas, elementos seguros e irrecusáveis, alguns dos quais serão aqui expostos em artigos subsequentes.  


 Identifiquemo-nos – 3
Rodolfo Calligaris
Reformador (FEB) Outubro 1941

Uma das provas científicas mais interessantes sobre a teoria evolucionista da-no-lá Denoy (1) quando descreve, com sabedoria e espírito, as sucessivas metamorfoses por que passa o embrião humano, Ouçamo-lo:

                   (1) Qual a origem do homem.

“Desde o instante em que o óvulo da mulher é fecundado pela conjunção do núcleo –pronúcleo - da célula macho com a célula fêmea, o novo ser fica sujeito, até ao seu completo desenvolvimento, a transformações que o fazem passar, a seu turno, segundo o plano seguido pela natureza na construção dos organismos, pelos tipos dos animais colocados abaixo dele.

“Permite-me, leitor, que chame a tua atenção para este fenômeno, traçando, de modo geral, as principais fases por que passaste, antes de te apresentares neste mundo.

“A substância amarela contida no óvulo que te havia de dar nascimento, a princípio dividiu-se e subdividiu-se - segmentação - numa quantidade de pequenas granulações nucleanas - blastomadres.

“Depois, essas granulações, separando-se do seu centro, se reúnem uniformemente sobre as paredes internas, cujo hemisfério inferior se tem enrugado, introduzindo-se de modo concêntrico no hemisfério superior, de tal jeito que forma uma camada membranosa - blastodermo - de duas paredes - folhas - afetando a forma de um copo voltado para baixo. Recomendo-te não esqueças que este grupo de granulações, por meio da depressão interior, se realiza de igual maneira na produção do mais mísero molusco.

“Sobre um ponto da tua membrana original, apareceu uma mancha, redonda a princípio, como se estivesse destinada a ser o berço de uma estrela do mar ou de algum outro animal radiado. Essa mancha és tu! Depressa a mancha aumentou e um pequeno conduto longitudinal não tardou a assinalar o eixo segundo o qual vais ser construído. Esse conduto está dobrado sobre si mesmo, numa das extremidades, formando uma espécie de intumescência, sinal da tua futura cabeça, enquanto o outro extremo adelgaça. Esta forma, bastante semelhante a de uma pistola-punhal, corresponde a todos os vertebrados, pelo que não me atreveria a assegurar, depois de te ter observado, se te converterás num salmão ou num homem.

“O ligeiro filamento, estendido por baixo e ao longo do canal, não pode dissipar as minhas dúvidas, pois que essa pequena varinha-cordão dorsal - existe em todos os peixes, incluindo os adultos. 

‘A justaposição de uma série de pequeninos corpos, descendo ao longo do teu cordão dorsal, à semelhança das contas de um rosário e multiplicando-se acima da tua futura pélvis, adornando-te com uma formosa e verdadeira cauda teriam dito nada de novo acerca do teu destino ulterior. Também nenhuma conclusão deduziria da estrutura do teu coração. Teria notado uma cavidade tubular que tanto poderia pertencer a um ser inferior como a um homem.

“Inutilmente observaria a conformação do teu pescoço, notando, sob a forma de fendas arqueadas, as braquias por meio das quais respiram os animais aquáticos e, vendo as tuas artérias curvarem-se para essas fendas, a fim de se combinarem com elas, como se estivesses destinado a respirar na água, não teria podido afirmar que deixaras de ser um rodovalho.

“Finalmente, trinta mas depois da tua aparição, a presença nos teus rins de certas glândulas –corpos de Wolf - característicos dos peixes, mais me teriam feito pensar na criação de um salmonete do que na de um homem.

“Neste período da tua existência, verificaram-se notáveis transformações a teu favor. Duas bolsas se formaram no teu peito, à maneira de pulmões. É certo que ainda tens grandes motivos para estar orgulhoso, porque muitos animais inferiores possuem pulmões Gênero. Mas, enfim, davas a conhecer que não serias nunca um verdadeiro peixe. Dotado, ao mesmo tempo, de pulmões e de braquias, parecias destinado a viver por igual na água e fora dela. Quer dizer: auguravas um anfíbio.

“Foi necessário, para indicar que serias um animal exclusivamente terrestre, que as tuas braquias se transformassem e se convertessem nas diversas regiões da tua cara e do teu pescoço. Desde então, já não havia direito a classificar-te como sendo um anfíbio. Tinhas, pelo menos, o aspecto de um réptil. É preciso não esquecer que a forma do teu coração vinha em apoio deste novo ponto de vista. Este órgão engendrava, pela dilatação de uma das partes, um entumescimento – bolbo da aorta – que se encontra precisamente nos répteis.

“Inútil fora, por outra parte, por outra parte, consultar a forma das tuas quatro extremidades: estavam representadas por proeminências informes, espécie de cotos brotando de ambos os lados do teu corpo. Coisa alguma indicava que essas excrescências não se reabsorvessem no teu tronco, a exemplo do que acontece nos embriões dos répteis, que apresentam, nos graus mais elevados; na boa, por exemplo, um rudimento de bacinete e vestígios de membros posteriores.

Felizmente, para o teu amor próprio, a dilatação notada na nascença da tua aorta, depressa desapareceu. Sintoma de um destino superior ao dos répteis, para os quais nunca desaparece esse modesto bolbo. Além disso, no extremo dos teus membros, notavelmente desenvolvidos, aparecem esboços de articulações. Mas, se desse modo te afastas dos répteis. é só para te aproximares das aves. Teus dedos estavam, efetivamente, unidos entre, si por uma membrana, igual às que vês nas patas dos gansos e dos patos. Ao demais, circunstância agravante, tens vivido a expensas de uma bolsa - vesícula umbilical - cheia de substâncias amarelentas. É precisamente esta a maneira de alimentação das aves. U pinto, dentro da casca, não se alimenta de outro medo, e as tuas comidas, tal qual as que então tomavas, se compõem invariavelmente da parte amarela do ovo que há na sua bolsa. "Dize-me o que comes e dir-te-ei quem és" – observa Brilat-Savarin. Se assim é, confessa que te teriam podido tomar, sem má intenção, por um futuro volátil.

“Ainda este prognóstico teria sido confirmado pelo aspecto do teu canal vertebral, que apresentava no lugar da sua dilatação inferior -  selo romboidal - uma fenda que a anatomia só encontra nas aves. Contudo" esses sintomas não deviam confirmar-se.   A vesícula umbilical que te alimentava cedeu lugar a outra despensa mais confortável - placenta - que a natureza só outorga aos seus eleitos. A fenda do teu canal vertebral tende a cerrar-se. Este fato basta para que, de futuro, já não seja possível confundir-te com um embrião de ave. Certamente serás um mamífero.

“É certo que se observa que o teu orifício anal e os teus órgãos sexuais têm uma saída – cloaca - e isso nos inclina a que te classifiquemos entre os mamíferos – monotremos, etc. -  os, únicos que oferecem essa desagradável conformação.

Se, por outro lado, examinamos a superfície dos teus hemisférios cerebrais, encontramo-la tão lisa que não hesitaremos em te colocar na plebe da tua classe. A vegetação de pelos que te cobrem, dos pés à cabeça certamente não te eleva acima dos teus colegas. Mas, outros sinais advogam a tua causa. A forma circular da tua placenta indica que não serás um carnívoro. Os teus dedos tornar-se-ão livres pela desaparição da membrana que os unia, o que te assegura um lugar muito distinto na tua classe”

“Os teus polegares, pouco desenvolvidos, formam com os lados dos teus pés um ângulo igual ao que existe nos pés do macaco. Determinadas modificações nos teus órgãos sexuais dão-te o direito de ser incluído entre aqueles animais.

“A forma saliente do teu nariz distinguisse, agradavelmente, dos macacos da América. O desenvolvimento crescente do teu cérebro impede que sejas confundido até com o mais forte macaco do antigo continente. Mas, agora me lembro: as diversas aberturas, pelas quais os teus troncos arteriais superiores se comunicam com os inferiores, cerraram-se há muito tempo e a tua cauda, que eu já tinha esquecido, atrofiou-se na sétima semana e reabsorveu-se nas últimas vértebras da tua coluna vertebral -  coccix. Alegra-te! Sé não és um homem, és, pelo menos, um antropomorfo, isto é, um gorila, um chimpanzé ou um orangotango. Melhor ainda que tudo isto! Os pelos, que te cobriam a superfície do teu corpo, desapareceram na água do amnios (membrana que contém o líquido amniótico) que te banhava. Fazes parte da Humanidade!

“lmagina, leitor, as dúvidas estranhas que teriam amargurado os primeiros períodos da tua existência uterina, se a natureza se houvesse lembrado do pesado gracejo de te dar consciência para observares tais transformações! Sairei homem ou macaco? Periquito ou rã. Felizmente, a tua falta de consciência durante o período embrionário te evitou essas incertezas.

Mas, se o conhecimento de ti mesmo, manancial de crescentes inquietações, te tivesse sido outorgado prematuramente, poderias tê-lo desfrutado desde a hora do teu nascimento. Não porque pudesses valer-te de nenhuma superioridade pois vindo ao mundo por processos de parto semelhante aos dos outros animais, ofereces, além disso, analogias pouco lisonjeiras em comparação com o parto de um macaco sem cauda. Um pouco mais tarde, os teus dentes, esses órgãos tão apropriados para averiguar as verdadeiras afinidades dos animais, apresentavam-se com a forma idêntica aos dos macacos superiores.

“O lugar ulteriormente destinado aos teus falsos molares, na dentadura de leite, estava ocupado por verdadeiros molares, segundo se observa nos antropomorfos: e a configuração das raízes e das coroas daqueles molares era idêntica dos indicados animais.         .
“O teu cérebro - órgão humano por excelência - era em tudo semelhante ao do símio.  As caprichosas e originais sinuosidades, cujo número, profundidade e irregularidade estão, desde o imbecil de lóbulos quase lisos até aos lóbulos complicados de um Beethoven, na proporção da inteligência; essas circunvoluções se achavam tão fracamente esboçadas no teu cérebro como no do orangotango.

“O teu crânio, ainda que estivesse destinado a conter, um dia., duas mil duzentas e "vinte nove gramas de matéria cerebral, como continha o de Cromwel, não tinha, então, muito mais que de um antropomorfo. As tuas faculdades intelectuais eram idênticas às dos macacos.

“De todas as maneiras, estas analogias caracterizavam o período álgido da tua semelhança com o animal. Essa aproximação - a maior de todas as que te impuseram - vai ser a última. Enquanto, até agora, não tinhas podido deixar de pertencer a uma espécie animal, senão para te veres ameaçado de entrar noutra, para o futuro vais separar-te -dessas vizinhanças pouco lisonjeiras, possuindo, finalmente, uma inteligência suficiente para conheceres teus avós e um orgulho bastante para tentares renega-los.  

Huxley, um dos mais ilustres anatomistas contemporâneos, autor do célebre livro “Lugar do homem na Natureza”, confirma esta descrição, dizendo tratar-se de fato inegável.

Estes depoimentos, feitos por homens abalizados no assunto, além de honestos e conscienciosos, projetam tanta luz sobre a questão, que bastariam para dissipar quaisquer dúvidas.

Não obstante, continuaremos.

Identifiquemo-nos – 4
Rodolfo Calligaris
Reformador (FEB) Novembro 1941

Emile Ferriére (1), comparando o esqueleto do homem com o do gorila, a começar pelos membros inferiores e superiores, assim como a coluna vertebral, bacia, sistema dentário, crânio, etc, achou entre ambos perfeita similitude, salvo algumas diferenças e desproporções que - diz ele - não autorizam absolutamente separá-los em ordens diversas, mormente quando se sabe que essas mesmas diferenças e desproporções não são maiores do que as observadas entre as várias espécies de macacos.

Bischoff diz a mesma coisa. Baer e Vulpian, idem.

Darwin (2), apresenta, como prova evidente da nossa passagem pelas espécies inferiores da escala zoológica, o fato de todos os animais, inclusive o homem, terem algumas partes orgânicas em estado rudimentar; isto é, inúteis e desnecessárias às suas atuais condições de vida, o que seria inexplicável se essas espécies fossem criadas isolada e independentemente umas das outras. O cóccix homem, em que pese a sua suscetibilidade, recorda claramente o apêndice caudal dos demais vertebrados.

Diz ele ainda que considera ocioso enumerar os detalhes sobre a semelhança de constituição entre o homem e os mamíferos superiores e passa a demonstrar; com fatos observados, que são iguais nos homens e nos macacos os nervos do sentido do gosto e que o sistema nervoso de ambos podem ser afetados de modo idêntico.

Julgou-se, durante algum tempo, haver na conformação do cérebro humano, segundo Owen, três particularidades características inexistentes no encéfalo dos macacos.

Está hoje, porém, provado, pelo “estudo anatômico de quinze gêneros de primatas, compreendendo todos os tipos dos símios do antigo e do novo mundo, que esses caracteres correspondem, igualmente, ao macaco e ao homem" (3).

As complicações das sinuosidades, estrias e circunvoluções do cérebro do homem não constituem nenhum privilégio, pois, sob este aspecto, os nossos irmãos bárbaros estão tão distanciados do orangotango, em superioridade, quanto o estão dos europeus, em inferioridade.

Assim, diz Denoy (4) “entre ti, leitor inteligente, e os macacos superiores, só há matizes insensíveis, análogos aos que te separam dos teus congêneres do Dahomey e de outras regiões selvagens; enquanto que, entre os antropomorfos e os imbecis, há uma diferença de disposição típica.”

Objetam aqueles a quem o orgulho impede de aceitar verdades tão, cristalinas, que a delicadeza e a graça das formas exteriores de sua cabeça os distinguem extraordinariamente do mais aristocrático gorila, motivo por que não podem ser confundidos com eles, De acordo.

Se compararmos, porém, um hotentote com um primata, não se poderá dizer quais diferem mais: se um mariano de um hotentote, ou se um gorila de um salmiri (pequeno macaco). Ver-nos-emos então em face de um dilema: ou classificar o salmiri entre os homens, ou o hotentote entre os macacos.

Alguns naturalistas hão querido separar o homem da ordem dos macacos pela suposta razão de serem estes animais quadrúmanos e o homem bimano.

Izidoro Geoffloy e Huxley (5) romperam, porém, com os preconceitos correntes e afirmaram sem rebuços que o macaco não é, quadrúmano, porque tem duas mãos e dois pés, não havendo, portanto nenhum fundamento, em zoologia, que justifique a formação de um reino a parte para o homem. Ferrière apoia esta assertiva com as seguintes palavras: - "Não há uma só razão anatômica para que o homem seja colocado em uma ordem distinta. O homem pertence, pois, à ordem dos primatas.”

Pretende-se, ainda, distingui-lo dos seus irmãos mamíferos pelo privilegio que Deus lhe teria outorgado de andar com os pés, tendo a viseira erguida para o céu. Sabe-se, porém, que a posição vertical não é em nós natural, mas sim adquirida. A prova disto é que tivemos que aprender a manter o equilíbrio e a andar, o que só conseguimos à custa de persistentes esforços, ou, seja, contrafazendo as inclinações naturais do nosso organismo.

“A arte de se manter em pé e andar exige, até nos adultos, uma atenção fixa: um ligeiro excesso de bebida basta para destruir esse equilíbrio fictício; e o velho, esgotadas as suas forças, vê-se na necessidade de utilizar a resistência de um bastão para se opor à atração do peso que o solicita para a frente.

Em conclusão: - “o homem não é direito; endireita-se” (6).

Aliás, cumpre acrescentar que a posição reta não é a natural entre alguns homens, como os habitantes da Nova Caledônia, os indígenas das Filipinas e os malaios de Java; em contraposição, algumas famílias de macacos, como o chimpanzé, o gibão e outras andam verticalmente quando o querem, embora sem a elegância dos grã-finos que fazem o "footing" nas artérias nababescas das metrópoles.

É, pois, mais um pretendido privilégio humano que se esvai como a neblina batida pelos raios vivificantes do sol”.

(1) Qual a origem do homem.
(2) Idem.
(3) Lyell - Antiguidade do homem.
(4) Qual a origem do homem.
(5) O lugar do homem na natureza.  
(6) Qual a origem do homem.

Identifiquemo-nos – 5
Rodolfo Calligaris
Reformador (FEB)  Janeiro  1942

Rechaçados em toda linha pela bombarda inclemente da ciência, os campeões da té e os defensores da rotina, desarticulados e contusos, já batem em retirada, encastelando-se em seu último reduto, de onde resistem com os derradeiros cartuchos à fulminante avançada do evolucionismo triunfante.

Consiste essa resistência em acentuarem as diferenças de ordem intelectual e espiritual que separam os homens dos animais, dizendo existir entre eles um abismo incomensurável e intransponível. E aí que se lhes desforra o orgulho.

Esta argumentação, conquanto pareça muito séria, indica que os seus expositores já perderam a partida, porque, em matérias que tais só se apela para a Moral quando não resta uma só razão científica para contrapor à teoria contraria.

Mas... examinemos esse abismo.

Não há dúvida que, confrontando-se um Ruy Barbosa, um Vicente de Paulo ou um Marconi com os símios mais inferiores não se achará um ponto sequer de aproximação. A distância que os separa é, efetivamente, muito grande.  

Mas, os homens não são todos émulos de Ruy, de Vicente de Paulo ou de Marconi, assim como os macacos não pertencem a uma só família de salmiris.

Há homens tão bestializados que se confundem com os macacos e macacos tão evolvidos que se assemelham aos homens. Tanto isto é verdade que alguém já lembrou a dificuldade de se definir, com precisão, onde para a ordem dos macacos e se inicia a do “rei da criação”.

Agassiz, sábio naturalista católico, confessa, mau grado as suas ideias religiosas, que “a gradação das faculdades morais, nos tipos superiores e no homem, é tão imperceptível que, para negar aos animais uma certa dose de responsabilidade e consciência, é preciso exagerar, em demasia, a diferença entre uns e outro" (1).

Passemos aos fatos.

O gorila, o chimpanzé e outros antropomorfos são dotados de memória. Quando desgostados por alguém, guardam-lhe profundo rancor e dificilmente lhe perdoam. São observadores, desconfiados e nunca se magoam duas vezes com o mesmo objeto.

“Os grandes macacos aprendem, mais rapidamente que muitos homens, a varrer, a limpar os móveis, a coser, a acender o lume e até a cozinhar um pouco. Sabem servir-se do garfo sem se picarem, da faca sem se cortarem, do vinho sem partirem o copo nem a garrafa, comer corretamente à mesa, oferecer o braço e apertar a mão. São capazes de jogar a bola, de tocar tambor, de atirar ao alvo e de pescar à cana... Tudo isto é ou não inteligência?

“Os macacos defendem-se de seus inimigos, atirando pedras e ramos de árvores. Sabem organizar um plano de combate, colocam as fêmeas e os pequenos em lugar seguro, antes de empreender a luta, e comunicam-se, durante a peleja, entre si por meio de gritos.” (2).

Conta Geoffrey Saint-Hilaire que, certa vez, ao ver um macaco insistir em querer abrir uma porta, ofereceu-lhe um maço de 15 chaves e o animal, demonstrando reflexão, experimentou-as uma por uma até encontrar a que fez funcionar a fechadura.

Leuret cita o caso de uma bugia que recolhia macaquinhos de outra espécie, bem como cães e gatos pequenos, tratando-os carinhosamente como se fossem seus filhos. Certa feita, um gatinho arranhou-a no rosto e ela, usando de perfeito raciocínio, examinou-lhe as patas e com os dentes, aparou-lhe as garras.

Muito ainda poderíamos dizer sobre a inteligência dos macacos; precisamos, porém, cingir-nos a isto porque temos que falar agora de sua sensibilidade.

Os macacos superiores, como é notório, têm paixões tão veementes quanto as humanas; como os homens, são sensíveis à beleza feminina e têm especial predileção pelo fumo e pelas bebidas alcoólicas. Amam e protegem a sua prole, apiedam-se dos seus semelhantes, defendem os fracos e amparam os órfãos. Dão, muitas vezes, belíssimos exemplos de fraternidade, no que se elevam acima de muitos homens.

Darwin (3) conta a seguinte façanha, em que o procedimento nobre e heroico desses animais seria digno de qualquer "mocinho" de cinema: - "Behm encontrou na Abissínia uma grande manada de babuínos atravessando um vale; uma parte deles já tinha galgado a vertente oposta, enquanto que os outros estavam ainda em baixo. Estes últimos foram atacados por cães; os machos velhos, em vez de fugir, precipitaram-se logo pelas rochas abaixo, com a boca aberta, e o seu aspecto era tão feroz que os cães, amedrontados, se retiraram. Animaram-se e açularam-se os cães para um novo ataque; mas, durante esta trégua, todos os babuínos tinham ganho as alturas; apenas um babuíno novo, de uns seis meses de idade, refugiara em cima de uma rocha e, vendo-se cercado, pedia socorro em grandes gritos. Um dos machos mais vigorosos, verdadeiro herói, desceu a montanha, dirigiu-se para o sitio onde se encontrava o companheiro, tranquilizou-o e, por fim levou-o em triunfo, pois que os cães, surpreendidos e espantados, não se atreveram a ataca-lo.  

É verdade que estas provas de inteligência e de sensibilidade são insignificantes ao pé das explosões de gênio e dos arroubos de paixão que a humanidade oferece; comparam-se, porém, perfeitamente com as manifestações intelectuais e morais dos selvagens, tornando evidente que os homens e os macacos se diferenciam apenas pela proporção dessas potencialidades e não pela natureza delas.

(1) Agassiz.  L'Espéce.
(2) Denoy. Qual a origem do homem.
(3) Darwin. Os ascendentes do homem.

Identifiquemo-nos – 6
Rodolfo Calligaris
Reformador (FEB)  Fevereiro  1942


Identifiquemo-nos agora com o padrão de vida dos selvagens, sem excluir os contemporâneos, e vejamos se os macacos ficariam deslocados em semelhante companhia.

Os tarungares (Papuas da Costa Oriental) são de tal selvageria que excedem, de muito, a bestialidade dos macacos. Vivem completamente nus e não têm o mínimo senso moral. São antropófagos inveterados e, na falta de coisa melhor, exumam cadáveres para os devorar.      

Os vedas do Ceilão são de um tipo abjeto, repulsivo e portam-se como verdadeiros animais; são incapazes de construir cabanas para sua morada e quando faz mau tempo abrigam-se em cavernas. Têm por leito uma espécie de ninho feito de folhagens, o qual se parece muito com o em que se agasalham, nas noites de inverno, os orangotangos de Sumatra e de Bornéu.

La Gironnieri, percorrendo as montanhas de Luçon (uma das Filipinas) ficou espantado com a aparência bestial dos Aétas, cuja linguagem ininteligível e gestos imitativos os aproximam dos macacos.

Viana de Lima (1) diz que "a sordícia (imundície) dos Piggers ultrapassa tudo o que se pode imaginar. O mesmo sucede com os selvagens da baía de Motka (Ilhas Quadro e Vanconvert), que acumulam diante das suas tocas toda espécie de imundícies. Diz Kolben, referindo-se aos Hotentotes, que nenhum mamífero é mais porco. Algumas tribos são indomáveis e de extrema ferocidade. Dalloux conta, dos Abers, que eles não podem habitar a dois, na mesma lura (buraco feito na terra) , sem se destruírem e que a si mesmos se comparam com os tigres.”

(1) L’Homme suivant le Transformisme
           
Do interessante estudo de Büchner intitulado: “O homem segundo a ciência”, Denoy (2) extraiu o seguinte:

(2) Qual a origem do homem.

“Os botocudos e outras muitas tribos carecem de uma palavra para expressar a ideia de justiça. O apache mata os inválidos, o caledônio enterrava em vida os velhos, os indígenas da Terra do Fogo devoravam os velhos e o mesmo faziam os carabas com os próprios filhos.

A preguiça, a covardia, a perfídia, a dureza de coração, o roubo, a gulodice, a bestialidade, apareciam com toda a sua brutal franqueza nos povos selvagens. Os vícios mais ignóbeis, os crimes mais odiosos, praticavam-nos sem terem a consciência deles e, por conseguinte, sem remorsos.

            É inútil que procureis ali o menor rudimento de sociedade.

            A maioria vive ao acaso, nômades, sem chefes e até sem a direção que sabem manter os bandos de orangotangos. Não se encontra nem sequer um esboço de família; o casamento, para eles, é unicamente a união dos dois sexos. Os negros do Sudão unem-se, assim, de qualquer maneira: o adultério existe e é tão frequente entre eles como entre os macacos; as mães abandonam os filhos.

Ocioso recordar que o pudor é desconhecido naquelas tribos, que vivem sem outras vestes além dos compridos pelos que os cobrem, como sucede com os macacos. A polícia das colônias é o único pudor que o australiano conhece.

            Na maioria, as tribos selvagens do Brasil não possuíam palavras para expressar os números superiores a quatro, cifra que também só alcançam os conhecimentos matemáticos da pega (espécie de corvo).

O apache não possui o verbo ser. A linguagem nos Faus, nos Aschebas, nos Ajetas e nos Vedas, reduzia-se a gestos e esgares (caretas), acompanhados de gritos guturais, semelhantes aos sons roucos emitidos pelos macacos, e manifestam as suas sensações com o auxílio de processos imitativos.

A indústria naqueles povos reduz-se à confecção de pedras grosseiramente talhadas e a de paus nodosos (com nós) e pontiagudos.

Os mincônios não sabem talhar machados de sílex nem, como sabe o castor, construir cabanas. O bosquimano abriga-se nas cavidades das rochas, o obango debaixo de folhas entrelaçadas, do mesmo modo que o orangotango. Grande número de povos alimenta-se de ervas, de raízes, de insetos, de vermes e de serpentes.

A agricultura é-lhes mais desconhecida a eles que às formigas, que sabem, pelo menos, semear uma espécie de gazão (grama) alimenticio. Os dacos e os andanamitas desconhecem o uso do fogo.”

Como se vê, não existe diferença essencial entre o homem e o macaco: o que há é uma graduação ascendente de um mesmo princípio, que vai progredindo lenta mas ininterruptamente, a medida que reveste organismos mais desenvolvidos, através de avatares (mutações) em ambientes cada vez mais adiantados em trabalho, cultura e moralidade.


Identifiquemo-nos – 7
Rodolfo Calligaris
Reformador (FEB)  Março  1942

Até aqui só falamos da inteligência e sensibilidade do macaco, porque, sendo este animal o que, sob todos os aspectos, mais se aproxima do homem, melhormente se prestaria a um cotejo com ele.

Veremos neste artigo que essas faculdades têm a sua gênese nas fronteiras com o mundo inanimado, provando-se destarte a unicidade de princípio para todos os seres, o que é mais lógico e mais conforme com a justiça e a sabedoria de Deus, do que supor que Ele haja beneficiado umas espécies em detrimento de outras.

É dificílimo explanar esta questão com sucesso em virtude dos preconceitos ainda arraigados na humanidade, oriundos do egocentrismo ensinado pelas religiões, segundo o qual o homem é a razão de ser do Universo, só o homem tem alma, só o homem é perfectível e só o homem seria digno dos favores de Deus, egocentrismo que há de cair, como caíram as concepções cosmogônicas de Moisés, a teoria absurda da imobilidade da Terra e o geocentrismo infundado de Ptolomeu!

Quando se fala, pois, da existência de uma potência espiritual nos animais, é-se olhado com desdém pelos "anjos decaídos", cuja decantada superioridade já foi reduzida à sua expressão real e que não na admitem fora ou abaixo de si; não se é compreendido pelos outros, menos exclusivistas, que transigem, mas entendendo, erroneamente, que essa transigência importa, ipso-fato, no estabelecimento de que os animais possuem memória, discernimento, imaginação, etc., em proporção igual a nossa, o que é impossível, não só devido a deficiência dos seus organismos, como também ao nível atual de sua evolução anímica.

O que a história natural e a filosofia nos ensinam é que, desde os vegetais até ao homem, não há delimitação concebível de uma para outra espécie, as quais se entrosam, formando uma cadeia interminável, através da qual a potência espiritual, a princípio imperceptível, se eleva em segredo, regular e progressivamente, até identificar- se com os planos do Criador e tornar-se um arauto de sua sabedoria e um medianeiro do seu amor.

Mas, deixemos falar os fatos.

Florens conta que, por serem assaz numerosos os ursos do Jardim das Plantas, resolvera-se eliminar dois deles.

Com tal intuito, lançaram lhes bolos envenenados com ácido prússico; mas, eis que eles, apenas cheiraram o alimento letal, se puseram em fuga. Ninguém os suporia capazes de regressar; contudo, atraídos pela guloseima, ei-los agora a empurrar os bolos com as patas para a bacia do fosso, onde os remexiam. Depois, farejavam atentos e, à medida que o tóxico se evaporava, apressavam-se a comê-los. Tal sagacidade lhes valeu a vida, foram perdoados" (1).

(1) A evolução anímica

Os cavalos de corridas, como é notório, têm consciência e participam do entusiasmo do prélio em que estão empenhados e, quando vitoriosos, dão visíveis demonstrações de júbilo.

Erasmo Darwin narra o seguinte caso: Um canguru, perseguido por um cão, dirigiu-se para o mar e ainda aí continuou a ser acossado. Avançou então para as águas até que só a cabeça ficasse à tona. Isso feito, enfrentou o inimigo que nadava ao seu encontro, agarrou-o e te-lo-ía afogado, se o dono não se apressasse em socorre-lo.

M. Boll relatou (2) o seguinte fato por ele testemunhado:

(2) Revue Scientifique

“Um cão de fila aventurava-se a dentro do lago congelado quando, súbito, quebrou-se o gelo e ele resvalou n’água, tentando em vão libertar-se. Perto, flutuava um ramo e o fila se lhe agarrou, na esperança de poder alçar-se. Um terranova que, distante, assistira ao acidente, decidiu-se, rápido, a prestar socorro. Meteu-se pelo gelo, caminhando com grande precaução e não se aproximou da fenda mais que o suficiente para agarrar com os dentes a extremidade do ramo e puxar a si e o companheiro, dessarte salvando-lhe a vida".

Gabriel Delanne (3) registra Interessantíssimos fatos cujas narrativas foram colhidas em obras de grandes autores, quais Viana de Lima, Gratiolet, Lubbock, Romanes, e outros. Destacamos os seguintes:

(3) A evolução anímica.

‘Nas aves jardineiras de Nova Guiné, o sentimento do belo e do confortável atinge o mais alto grau. Estes pássaros, da família das paradíxias, não se contentam com um simples ninho pois constroem, fora da habitação ordinária, verdadeiras casas de recreio, que se tornam atestados de bom-gosto. Tais construções, reservadas aos adultos, que a elas vão para entregar-se a brincos e deleites amorosos, apresentam grande variedade ornamental e os paradíxias gozam, realmente, o luxo de que se rodeiam.”

“Um elefante esforçava-se, debalde, para captar uma moeda junto da muralha, quando, de súbito, pôs-se a soprar e com isso fez deslocar-se e rolar a moeda até o ponto em que ele se encontrava, conseguindo-o admiravelmente."

“Cães, cabras, gatos aprendem por si mesmos, sem qualquer educação prévia, a tocar uma campainha ou abrir uma porta. Apontam-se vacas, mulas, jumentos, que manejam ferrolhos para abrir porteiras.”

“Certa feita, um abegão (caseiro, administrador), através da sua janela, lobrigou (entreviu), de madrugada, uma raposa a conduzir o ganso apresado. Chegando rente ao muro, alto de 1,2 m, a raposa tentou de um salto transpô-lo, sem largar a presa. Não o conseguiu, porém e veio ao chão para insistir ainda em três tentativas inúteis. Depois, ei-la assentada, a fitar e como que a medir o muro. Tomou, então, o partido de segurar o ganso pela cabeça e levantando-se de encontro ao muro com as patas dianteiras, tão alto quanto possível, enfiou o bico do ganso numa frincha do muro. Saltando após ao cimo deste, debruçou-se jeitosamente até retomar a pressa e atirá-la para o outro lado, não lhe restando, então, mais que saltar por sua vez, seguindo o seu caminho.”

“Buffon adverte-nos de que as aves representam tudo quanto se passa num lar honesto. Observam a castidade conjugal, cuidam dos filhos; o macho é o marido, o pai da família e o casal, por débil que seja, mostra-se valoroso até ao sacrifício de morte, em se tratando de defender a prole. Não há quem ignore o zelo da galinha na defesa dos pintinhos. Os animais ferozes: - tigre, lobo, gato selvagem, todos têm por suas crias o mais terno afeto.”

Até entre os vegetais o observador atento descobre manifestações de inteligência e de sensibilidade.

A absorção dos elementos nutritivos específicos de cada tipo da fibra não indica uma função Inteligente, rudimentar embora?

A sensitiva e a camélia, aquela em se esquivando ao mais leve contato e esta fenecendo apenas aspirado o seu perfume, não atestam que já possuem aptidão para receberem sensações exteriores?

Retrocedendo ainda mais na escala da natureza, depararemos com o cristal, já em pleno reino mineral, que, conquanto pareça inverossímil, a si próprio se refaz, recompondo a sua forma típica, sempre que um prejuízo qualquer se verifique em sua estrutura molecular.

*

Quanta beleza, quanta majestade na conquista da nossa individualidade, qual no-Ia apresenta a ciência!

As espécies desfilam ante nosso olhar atônito, como num filme genial, revelando-nos as fases de mil e uma transformações sucessivas, lentas, porém firmes, por que passamos até atingir o tipo definitivo da humanidade, libertando-nos assim das peias de uma religião feita de fábulas e de ignorâncias, que falseia a história de nossa origem e subverte a finalidade da nossa existência.

Não! Não somos filhos espúrios do pecado, estigmatizados desde o ventre materno; evoluindo, chegamos ao que somos e, evoluindo sempre, chegaremos, não importa quando, à meta final dos nossos destinos: a suprema glória e o supremo bem: - A PERFEIÇÃO!'


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