Rita Maria
por José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador
(FEB) Junho 1962
Rita Maria era assim mesmo. Não
adiantava brigar com ela, porque, o que entrava por um ouvido, saía pelo outro.
Às vezes "seu" José Guimarães exclamava, irritado:
- Pau que nasce torto!..
Ela gostava muito de fumar e só
fumava cachimbo. Tinha o temperamento folgazão, essa alegria barulhenta e sem
peias, que não escolhe lugar para se expandir. Rita Maria cantava, dançava e
mexia com todos, sem faltar ao respeito a ninguém. Era gênio dela. Desde moça
que era assim. Agora, já velha, não tinha muita firmeza no que fazia. Se cozinhava,
deixava o feijão queimar e não poucas vezes o patrão reclamara o arroz
"bispado". Tinha, porém, um coração muito sensível e não fazia mal a
quem quer que seja.
"Seu" Guimarães, no
entanto, explodia, intolerante:
- Parece que esse diabo bebe!.. Ó
Eponina! Eponina! Você já provou este ensopado? Está sem sal! ...
Mas a tempestade passava logo e a
Rita Maria ia continuando naquele mesmo programa, ouvindo os ralhos de
"seu" Guimarães, por causa dos seus descuidos na cozinha.
Diversas vezes o patrão comentou com
a mulher o "miolo mole" de Rita Maria, como ele dizia: - Olhe,
Eponina: a Rita Maria parece que anda bebendo às escondidas. Acho que não
endireita mais. Está ficando velha e amalucada. Não sei onde põe o dinheiro que
ganha aqui. Talvez compre fumo e cachaça... É melhor você dar um jeitinho nela,
enquanto é tempo... Um dia, Eponina, ela ainda nos dará um aborrecimento muito
sério...
D. Eponina gostava muito de Rita
Maria e encontrava sempre uma saída para desculpá-la:
- Não acredito que ela beba, não.
Fumar, fuma, mas isso não é de hoje, José. Você acha justo que se mande a Rita
embora? Enquanto ela era moça e forte, não nos deixou por ninguém. E não lhe
faltaram boas propostas. Envelheceu e continua fiel à nossa família,
trabalhando com boa vontade, fazendo o melhor que pode. Seríamos ingratos se não
a quiséssemos agora... Tem lá suas maluquices, mas ninguém é perfeito neste
mundo, José. Depois,
não é todo o dia que ela nos estraga o paladar. Vamos
ter mais um pouco de paciência, sim!
E "seu" Guimarães, embora
contrariado, ia cedendo.
*
Passaram-se meses, até que, certa
noite, Rita Maria saiu e não voltou. Somente deram por sua falta na manhã
seguinte, à hora do café. Procura daqui, procura dali, levaram assim horas e
horas, até que um barqueiro chegou com a notícia de que o corpo da velha fora
encontrado no rio... Naturalmente, perdera o equilíbrio ao atravessar a
pinguela e
se afogara. Todos ficaram tristes, porque, afinal, Rita Maria era "boa
coisa", apesar de “meio pancada”. D. Eponina chorou muito, inconsolável, pois
a velha a acompanhava desde a meninice. "Seu" Guimarães, todavia, não
se mostrou muito penalizado, ao considerar: -
Que é isso, Eponina! Deixe de bobagem. A Rita Maria já estava precisando
"ir" ... A bebida acabou
com ela, pode estar certa. Vai ver, caiu no rio quando se encontrava
embriagada... Tinha que terminar na “água”, minha filha... Foi melhor assim.
Deus sabe o que faz...
*
Tempos mais tarde, ninguém mais se
lembrava daquela velha bulhenta da casa de D. Eponina. "Seu"
Guimarães teve necessidade urgente de ir a um vilarejo próximo, à noite. Chovia
muito. Tudo estava tão escuro que, apesar da lanterna que ele levava, mal
enxergava o caminho. Lá adiante, esperava-o a pinguela que dava acesso à outra
margem do rio. Ele se dirigiu cautelosamente para ela, segurando-se com firmeza
e olhando com muita atenção onde pisava. Em dado momento, porém, escorregou e
caiu no rio, então caudaloso. Lutou desesperadamente e estava prestes a
afogar-se quando percebeu que alguém lhe dava a mão e o ajudava a sair.
"Seu" Guimarães não compreendera o que se
passara, pois as margens estavam distantes do lugar em que se achava. Como
poderia receber ajuda, ali, daquela maneira? Ainda meio atordoado, sentou-se no
chão lamacento. Não estranhou sequer que, sem a lanterna, que se perdera no
rio, estivesse aquele lugar satisfatoriamente iluminado. Dispunha-se a
agradecer ao seu salvador, quando viu, com espanto,
no seu lado, alegre como sempre, "pitando" o mesmíssimo cachimbo, a
velha Rita Maria! No momento, não se recordou de que ela já havia morrido. A
satisfação, por haver escapado de morte horrível, dominava todo o seu ser.
Assim, exclamou: - Quase que eu "fui", hein, Rita? Até que enfim você
fez alguma coisa com perfeição... Rita Maria riu alto e, como se tivesse asas,
sobrepairou o rio, a cabeça velha emoldurada por um halo prateado, e
desapareceu, dizendo-lhe: - Graças a Deus, patrãozinho!..
*
Só então "seu" Guimarães
caiu em si. Fora salvo por um fantasma! Não suportou o choque e desmaiou. Foram
encontrá-lo no mesmo lugar, no dia imediato, ainda desacordado. Por
coincidência, quem o encontrou foi um ex-fazendeiro que morava do outro lado da
pinguela. Ao ouvir a narrativa de "seu" Guimarães, retrucou:
Maravilhoso! Só quem conheceu intimamente a Rita Maria pode compreender a
beleza do seu Espírito. Não se assuste, Guimarães. Foi ela mesma quem o salvou.
Na noite em que morreu, dirigia-se para a minha casa, onde realizávamos um
serviço de caridade por motivo do Natal do Cristo. Tudo quanto ganhava ela nos
dava com alegria para ajudar-nos na obra de assistência aos necessitados. Não
bebia cachaça, Guimarães. Apenas fumava do fumo que eu lhe dava. Se gostava de
fumar, cantar e dançar, gostava ainda mais de auxiliar os que precisavam
mais do que ela... Um nobre Espírito, Guimarães...
O marido de D. Eponina estava
derrotado. Compreendera, muito tarde, que Rita Maria valia muito mais do que
ele supunha. Caíra no rio da mesma maneira que ele, e não porque estivesse
embriagada. Guimarães sentiu os olhos arderem e chorou de vergonha e
arrependimento. Aquela frase terna que dissera timpanava em seus ouvidos:
-
... tinha que terminar na “água”, minha filha...
E soluçando, concluiu:
- ... e foi da água que ela me
salvou...
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