O
bom senso - parte 1
por C. Wagner
Reformador
(FEB) Agosto 1925
“Tu, conserva em todas as coisas o
teu bom senso.” (II Tim, IV,5)
Quando prementes se tornam as circunstâncias
e experimentamos a sensação de que é curto o tempo, às vezes grande cópia de
pensamentos resumimos nalgumas palavras breves e nervosas. Produz-se em nós uma
como condensação de sabedoria e clareza. Muitas pessoas, quando prestes a
morrer um pai ou uma mãe, por exemplo, com a preocupação do futuro de seus
filhos, se concentram e põem a alma toda nalgumas palavras supremas, que serão
como que um viatico para os que as escutam.
Assim é que, na segunda Epístola a
Timóteo, São Paulo, sentindo contados os seus dias, vendo diante de ai, talvez
para breve, a imolação nos dentes das feras, ou em qualquer masmorra esquecida,
e pensando na obra que deseja salvar, escreve sobre ela a Timóteo.
Com afeito, que viria a ser da obra
sublime d' Aquele que morrera na Cruz, obra que não pode perecer e que enche de
esperanças o coração dos homens, se, quando caem os velhos pioneiros, novos lutadores
não surgissem? Para fortalecer o ânimo a Timóteo, São Paulo acumula palavras
ternas, bondosas, paternais, palavras de luz e de paz.
Dentre todos os seus conselhos - que
devem ser lidos termo por termo e dos quais cumpre se extraia a substância - escolho
o mais modesto, talvez, para sobre ele discorrer aqui:
“Tu, conservas em todas as coisas o bom
senso.”
Tem muitos inimigos o bom senso. Vem
em primeiro lugar os Espíritos trapalhões, desequilibrados, ou extravagantes. Também
se contam, entre os seus detratores, muitos pensadores de alto voo, assim como
alguns sonhadores, estetas e almas sentimentais. Há os mesmo entre os
religiosos. Estou certo de que muitos destes últimos acham que não vale a pena
repicar os sinos e incomodar os fiéis, para que? Para os entreter com coisa tão
vulgar, qual o bom senso, quando se lhes poderia falar da salvação, da vida eterna,
da cruz, do calvário, do pecado, do perdão, da dor, da morte e de tantas outras
realidades grandes e relevantes.
Em verdade, não me proponho tratar do
pesado bom senso terra-terra, ao mesmo tempo muito baixo e muito alto: muito
baixo como Intenção, como inspiração, mesquinho em seus cálculos, curto de
vistas; porém, muito alto na sua enfatuação. É grotesco ver-se certos homens obtusos,
que só para os interesses inferiores vivem e que nada mais percebem além desses
interesses, arvorarem-se em juízes de tudo e nivelarem aos seus cérebros acanhados
os mais elevados cumes da inteligência, da religião e do pensamento. Insuportável
e dolorosa coisa é topar a gente com esse bom senso de ínfima classe; de bugiaria
e fancaria!
Outro, porém, existe. Ouso recomenda-lo
desta cátedra, onde falamos do que a humanidade possui de melhor e de mais alevantado.
Ouso-o, depois do grande São Paulo que, tendo cantado as maravilhas do
Evangelho, a beleza da vida interior, o poder da fé, a preeminência eterna da
caridade, não desdenhou de pregar o bom senso, em circunstâncias tão solenes e
termos tão expressivos: Tu, conservas em
todas as coisas o teu bom senso.
Certo, o bom senso só por si não
basta; mas, em tudo se faz preciso- Ele não poderia substituir o gênio, nem o
sentimento, nem a ciência, nem a religião; porém, que seriam estas grandes coisas,
sem este modesto auxiliar? Cabe aqui relembrar o provérbio: Muitas vezes, precisamos de alguém que seja
menos do que nós.
Comecemos pela vida familiar, afim
de concebermos um quadro mais restrito e mais prático. Na fundação de um lar o
essencial é, sem dúvida, o sentimento
que liga os dois cônjuges. O amor é aí a base fundamental. Amem-se muito os
esposos, compreendam-se, sejam capazes de sacrifícios recíprocos, de bom
entendimento, anime-os o desejo de antes dar do que receber, e isso constituirá
a perfeição. Mas não esqueçamos o bom senso, sem o qual nenhum lar poderia subsistir.
Os mais belos sentimentos se chocarão com obstáculos mínimos, com erros práticos,
com as diferenças de caracteres, com as misérias dos nervos, e cairão, como cai
um grande ministério, por efeito de ridículo incidente numa sessão parlamentar.
Pelo que respeita à mulher e ao seu
papel n família, que dizer das que desprezam o que desdenhosamente chamam as
panelas, isto é os serviços vulgares de todos os dias? Essas preferem abrir as
asas no azul. Acham razoável que o comum dos mortais se preocupe com os labores
domésticos, ficando lhes a elas reservado empregarem o tempo em ocupações mais
práticas, aplicando o espírito no domínio das puras ideias, da arte, da literatura
nobre. Podem ter altas capacidade essas mulheres mas, evidentemente, lhes falta
bom senso. De que se há mister para cultivar os trabalhos do Espírito? De liberdade.
Ora, se descuramos as coisas ordinárias da vida, tornamo-nos escravos delas, ou
escravos dos que as conhecem e delas cuidam em nosso lugar. Assim, o cavaleiro
que se descuida de estudar o seu cavalo, acaba sendo governado por ele, o que não
é honroso, ou sendo cuspido da sela, o que tem outros inconvenientes. Por mais
elevado que seja um Espírito feminino, preciso é que compreenda nas suas minudências
a vida quotidiana e as suas humildes porém imperiosas experiências.
- E o homem? repontará talvez um
feminista.
No tocante à economia doméstica, o
mesmo exatamente se dá com o homem. Seja qual for o vosso labor se não tiverdes
o senso prático, correis o risco de levar a naufrágio nos escolhos a barca familiar.
Ainda que com as mais vastas
concepções, um homem pode vir a ser uma calamidade em matéria de negócios, se
lhe faltar bom senso. Será colhido de surpresa pelo menor grão de areia que, introduzindo-se
nas finas rodagens que ele combina, fará que toda a máquina se desmantele. Essa
a única razão porque tantas cabeças, poderosamente aparelhadas para a invenção
e a especulação, nada nunca produziram que valesse algo! Queixam-se então de
Deus, da injustiça da sorte ou dos homens, da má organização da sociedade,
quando apenas um grãozinho de bom senso teria bastado para impedir que a audácia
se mudasse em temeridade e a fé no futuro degenerasse em utopia.
Quanto aos filósofos, cujo olhar vê
além das aparências e que perscrutam o fundo das coisas, tornam-se terríveis, quando
lhes falta o bom senso.
O homem mais comum, que nunca abriu um
livro antigo ou moderno, que apenas recebeu uma instrução elementar, comete
menos faltas contra a sensatez, do que um filósofo perdido em especulações e
que não sabe olhar em torno de si.
Quanto mais se sobe, tanto mais se
precisa não esquecer as contingências. Do contrário, seria o maravilhoso arquiteto
de quiméricos palácios. Para atingirdes as belas torres de marfim, donde pretendeis
mostrar-nos o mundo, só uma coisa olvidastes: as escadas. Isso não passa de
miserável pormenor. Entretanto, por não haverdes pensado nele, impedia que vos acompanhemos
até lá em cima. E vós mesmos, provavelmente, não mais podereis descer.
Se alguma coisa há que não deva ser
objeto de cálculo, de regra, das vulgares precauções, quase sempre tão
mesquinhas, é o sentimento que uns aos outros prende os amigos. Sem o bom
senso, ainda aí tudo está perdido.
Quanto mais elevados e fortes forem
esses sentimentos, tanto mais necessário se faz misturar-lhes o elemento
humilde e ordinário que lhes serve de regulador. A não ser assim, a paixão mutua
se torna elemento de desequilíbrio. Tanto mais eles disputarão, quanto mais se
amarem. Que de belas amizades mortas à mingua dessa reflexão calma, que obsta a
que os Espíritos exaltados cheguem aos piores extremos!
O mesmo se dá com a religião que,
sem o bom senso, pode tornar-se um perigo público. Podeis transviar-vos
completamente, seguindo os melhores princípios, desde que estes sejam desviados
de sua origem e de seu objetivo. Por estar dela ausente a miúdo o bom senso é
que a religião chega a fazer-se considerar como uma potência das trevas. Quando
ela alimenta a pretensão de privar o homem das suas luzes naturais e de força-lo
a caminhar em desacordo com o seu juízo são e reto, até mesmo, às vezes, em
desacordo com o seu instinto familiar ou com a sua consciência, todos sabem em
que cego fanatismo se enterra. Compreende-se então que papel cabe ao bom senso
desempenhar nesse delicado domínio.
Por lhe faltarem os olhos. o cego se
orienta com o auxílio de uma simples bengala e, à falta desta, com o de um cão que
enxerga nitidamente. Admitamos que o bom senso não seja mais do que o cão e a
bengala; mas, notai que importância tem esse cão ou essa bengala, porquanto,
sem uma ou outro, o cego correria
todos os riscos. Conservai o teu bom senso em todas as coisas! Não excluamos,
deste “todas as coisas” a religião, com suas práticas e suas crenças, pois, do contrário,
a porta estará aberta aos abusos, as excentricidades, por efeito das quais a
religião é destruída.
O
bom senso
- parte
2
por
C. Wagner
Reformador
(FEB) Agosto 1925
O bom senso também é necessário,
quem o diria? A razão. A Razão é o uso real, aristocrático. Das luzes que Deus
nos outorgou para observar e para julgar. Mas, se no uso da lógica, procedeis
com exagero, podereis ser levados a coisas insensatas. Assemelhar-vos-ei,
então, ao cavaleiro desajuizado que estraga o melhor cavalo e o atira loucamente,
de tanto o esporear, a saltar fossos e barrancos, arrastando-o afinal a quedas,
em que tudo se esfrangalha. Magnífico trabalho excenta (isenta) a razão, moderada pelo bom
senso. Quando, porém, estremando-se, força suas conclusões ao absurdo, passa ela
a ser o relógio que não regula, a navalha que exaspera, a guilhotina que mata.
Às vezes, no seio de uma família
altamente colocada, mas cujos membros são o seu tanto ou quanto desequilibrados,
há um velho servidor modesto, a quem todos amam. É João ou José. Faz parte da
casa. A barba se lhe branqueou no serviço de seus amos; porém, o trabalho
humilde e salutar lhe conservou o juízo. É um filósofo que, lá no seu canto,
vive a refletir.
Saem-se bem os amos, sempre que se
lembram em consulta-lo. Assim é que esse
homem simples e reto desempenha o pape de lastro num navio ou de regulador numa
má. Dado que outra função não exercesse na vossa vida o bom senso senão a desse
servidor fiel, conservai-o, não o despeçais nunca, que isso vos traria
infelicidade.
Pouco decorativo, o bom senso não se
satisfaz com a aparência: apega-se à profundeza. Observando-o, não posso fugir à lembrança da
superfície do mar. Comparada a bela torrente que se despenha em catadupa, ou a
feixes de espuma que se precipitam irisados, como desgraciosa e monótona a
superfície do mar! Entretanto, debaixo
dela é que jazem, modestamente dissimuladas, as inúmeras provisões sem as quais
a Terra seria um Saara. A ela é que devemos as chuvas, geradoras das torrentes
e dos rios, o orvalho que bebem as flores das colinas e as inumeráveis raízes
das florestas.
As santas Escrituras são um livro
cheio de bom senso. Ele nelas se encontra, como o ouro em certas galerias, em
barras e lâminas.
Os Profetas, os Provérbios, O Livro
da Sapiência, Sirach, o apócrifo, guardam uma sabedoria, que não é antiga nem
moderna, que é de todos os tempos, e que conservará sempre o seu valor.
Entre o Evangelho e o bom senso há
muito mais que relações do que se poderia supor. Imaginam alguns homens que
Jesus era um utopista e um alucinado. Que singular desvairamento! Ninguém melhor
do que ele compreendeu as realidades da vida usual. O Evangelho é um curso
d’água, cuja fonte reparadora retempera e tonifica as lastimáveis vítimas da
vida má e anormal. Atentai em Jesus, dirigindo-se às crianças e ao povo. Não
emprega termos metafísicos, serve-se de uma linguagem simples expressiva, que
penetra e toca. Mostra o eterno em efêmeras imagens e na imagem efêmera faz que
refulja a beleza eterna. Assim é que se lhe podem tomar o exemplo e o método
para modelo da educação popular. Naquela límpida simplicidade, há luz bastante
para clarear todas as nossas névoas.
Fazei que algumas gotas daquele Espírito
caiam nas ideias confusas do homem e um precipitado se forma, tornando tudo
translúcido! Jesus entra na noite das almas e acende nelas um farol. Mas,
precisamente, o que nosso orgulho despreza é essa sublime simplicidade. Há dois
anos, o homem lhe passa ao lado, sem lhe adivinhar a realeza porque lhe aprouve
a Ele dar a essa realeza, por envoltório, o surrado burel de um senso reto que
vai direito às coisas e lhes diz os nomes.
Escutai isso, uma árvore boa só dá
bons frutos e uma árvore má – frutos maus. “Verdade de La Palisse” (evidência tão grande, que se torna
ridícula), exclamarão
os espíritos fortes. Mas, por não haverem discernido realidades elementares é
que muitos se tem extraviado. E o homem
muitas vezes tropeça nas dificuldades mínimas, nas banalidades elementares da
vida corrente, do que nos grandes problemas do universo.
Dissertar é uma coisa; por o dedo no
ponto objetivado é coisa muito diversa. Grande arte é a de tornar sensível ao
Espírito o que é, de si mesmo evidente, porquanto a evidência, como a luz branca,
é, às vezes, invisível. Quando as grandes paixões se apoderam do Espírito, os
preceitos dos mais famosos filósofos se mostram impotentes para lutar contra a
perturbação que o invade! Experimente opor um silogismo a um touro!
Por vezes até, ainda as mais altas
verdades religiosas perdem ação sobre os nossos Espíritos postos em estado de
não as reter. Basta, porém, que um homem, arrebatado pelo furor das dessas forças
interiores, incompreendidas, indômitas, que se chamam as paixões, esbarre num
fato simples, num sinal palpável, para que se lhe manifeste toda a enormidade
do ato que ia praticar e, num ápice, o detenha. Quando compreendermos a
sabedoria que há em nos mantermos perto das realidades elementais, teremos
achado um guia seguro e talvez cheguemos a apreender o alcance dos conselhos do
Evangelho sobre a fidelidade nas coisas pequeninas, fidelidade que nos torna capazes
de compreender e realizar as grandes.
Disse o Cristo: “Se tivésseis em vós
Fé, do tamanho de uma semente de mostarda, direis a esta montanha que se
atirasse ao mar e ela se lançaria!” Quer isso dizer: se tivésseis, em Deus que
conduz o mundo, confiança bastante para lhe dar um pouco de crédito, para
esperar melhores dias, para que tudo acabe bem, não obstante as aparências
contrárias, possuireis uma espécie de capital interior, inalienável,
susceptível de transformar em poder, em bondade, em atos admiráveis! Ora,
podemos tomar esta palavra, para aplica-la ao bom senso. Se tivésseis do bom
senso uma parcela do tamanho de uma semente de mostarda, evitareis, por virtude
dele, loucuras grandes quais montanhas! Por não terem tido esse módico grão de
bom senso é que pais, mães, filhos, governos, gigantescas faltas hão cometido e
cometem todos os dias. Nunca se morre de
fome por faltar o supérfluo, mas por falta do necessário. É ainda esse tão
pequenino grão de bom senso que impede caiamos em armadilhas em que se deixam
apanhar os Espíritos crédulos.
Quando os Espíritos alucinados
sopram com toda a força dos pulmões em suas bolhas de sabão, quando os inventores
de ilusões falazes se acham a pique de deslumbrar e transviar o público, um pouco
de bom senso bastam para nos preservar. Um nada... uma palavra, um sorriso, uma
observação, um apelo à ordem, à realidade... e o fumo, se dissipa e com essa alfinetada
murcha o balão.
Nos contos de fada, há sempre uma
boa madrinha que chega coma sua bagueta (bastão) mágica e
diz: “Que queres que eu te dê?” Se o afilhado é prudente, contenta-se com pedir
um insignificante favor. Encontrar sempre na bolsa, no momento preciso, uma moedinha
parece não valer nada. Entretanto, na realidade, isso vale por um Pactolo (imensa riqueza natural não explorada).
Desejo tenhais sempre à vossa disposição
o equivalente desse insignificante presente de fada, sob a forma de uma dose
modestíssima de bom senso, invariavelmente pronta a ser utilizada.
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