sábado, 23 de março de 2019

Rita Maria


Rita Maria
por José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Junho 1962

            Rita Maria era assim mesmo. Não adiantava brigar com ela, porque, o que entrava por um ouvido, saía pelo outro. Às vezes "seu" José Guimarães exclamava, irritado:

            - Pau que nasce torto!..

            Ela gostava muito de fumar e só fumava cachimbo. Tinha o temperamento folgazão, essa alegria barulhenta e sem peias, que não escolhe lugar para se expandir. Rita Maria cantava, dançava e mexia com todos, sem faltar ao respeito a ninguém. Era gênio dela. Desde moça que era assim. Agora, já velha, não tinha muita firmeza no que fazia. Se cozinhava, deixava o feijão queimar e não poucas vezes o patrão reclamara o arroz "bispado". Tinha, porém, um coração muito sensível e não fazia mal a quem quer que seja.
           
            "Seu" Guimarães, no entanto, explodia, intolerante:

            - Parece que esse diabo bebe!.. Ó Eponina! Eponina! Você já provou este ensopado? Está sem sal! ...

            Mas a tempestade passava logo e a Rita Maria ia continuando naquele mesmo programa, ouvindo os ralhos de "seu" Guimarães, por causa dos seus descuidos na cozinha.

            Diversas vezes o patrão comentou com a mulher o "miolo mole" de Rita Maria, como ele dizia: - Olhe, Eponina: a Rita Maria parece que anda bebendo às escondidas. Acho que não endireita mais. Está ficando velha e amalucada. Não sei onde põe o dinheiro que ganha aqui. Talvez compre fumo e cachaça... É melhor você dar um jeitinho nela, enquanto é tempo... Um dia, Eponina, ela ainda nos dará um aborrecimento muito sério...

            D. Eponina gostava muito de Rita Maria e encontrava sempre uma saída para desculpá-la:

            - Não acredito que ela beba, não. Fumar, fuma, mas isso não é de hoje, José. Você acha justo que se mande a Rita embora? Enquanto ela era moça e forte, não nos deixou por ninguém. E não lhe faltaram boas propostas. Envelheceu e continua fiel à nossa família, trabalhando com boa vontade, fazendo o melhor que pode. Seríamos ingratos se não a quiséssemos agora... Tem lá suas maluquices, mas ninguém é perfeito neste mundo, José. Depois, não é todo o dia que ela nos estraga o paladar.  Vamos ter mais um pouco de paciência, sim!

            E "seu" Guimarães, embora contrariado, ia cedendo.

*

            Passaram-se meses, até que, certa noite, Rita Maria saiu e não voltou. Somente deram por sua falta na manhã seguinte, à hora do café. Procura daqui, procura dali, levaram assim horas e horas, até que um barqueiro chegou com a notícia de que o corpo da velha fora encontrado no rio... Naturalmente, perdera o equilíbrio ao atravessar a pinguela e se afogara. Todos ficaram tristes, porque, afinal, Rita Maria era "boa coisa", apesar de “meio pancada”. D. Eponina chorou muito, inconsolável, pois a velha a acompanhava desde a meninice. "Seu" Guimarães, todavia, não se mostrou muito penalizado, ao considerar: - Que é isso, Eponina! Deixe de bobagem. A Rita Maria já estava precisando "ir" ... A bebida acabou com ela, pode estar certa. Vai ver, caiu no rio quando se encontrava embriagada... Tinha que terminar na “água”, minha filha... Foi melhor assim. Deus sabe o que faz...

*

            Tempos mais tarde, ninguém mais se lembrava daquela velha bulhenta da casa de D. Eponina. "Seu" Guimarães teve necessidade urgente de ir a um vilarejo próximo, à noite. Chovia muito. Tudo estava tão escuro que, apesar da lanterna que ele levava, mal enxergava o caminho. Lá adiante, esperava-o a pinguela que dava acesso à outra margem do rio. Ele se dirigiu cautelosamente para ela, segurando-se com firmeza e olhando com muita atenção onde pisava. Em dado momento, porém, escorregou e caiu no rio, então caudaloso. Lutou desesperadamente e estava prestes a afogar-se quando percebeu que alguém lhe dava a mão e o ajudava a sair. "Seu" Guimarães não compreendera o que se passara, pois as margens estavam distantes do lugar em que se achava. Como poderia receber ajuda, ali, daquela maneira? Ainda meio atordoado, sentou-se no chão lamacento. Não estranhou sequer que, sem a lanterna, que se perdera no rio, estivesse aquele lugar satisfatoriamente iluminado. Dispunha-se a agradecer ao seu salvador, quando viu, com espanto, no seu lado, alegre como sempre, "pitando" o mesmíssimo cachimbo, a velha Rita Maria! No momento, não se recordou de que ela já havia morrido. A satisfação, por haver escapado de morte horrível, dominava todo o seu ser. Assim, exclamou: - Quase que eu "fui", hein, Rita? Até que enfim você fez alguma coisa com perfeição... Rita Maria riu alto e, como se tivesse asas, sobrepairou o rio, a cabeça velha emoldurada por um halo prateado, e desapareceu, dizendo-lhe: - Graças a Deus, patrãozinho!..

*

            Só então "seu" Guimarães caiu em si. Fora salvo por um fantasma! Não suportou o choque e desmaiou. Foram encontrá-lo no mesmo lugar, no dia imediato, ainda desacordado. Por coincidência, quem o encontrou foi um ex-fazendeiro que morava do outro lado da pinguela. Ao ouvir a narrativa de "seu" Guimarães, retrucou: Maravilhoso! Só quem conheceu intimamente a Rita Maria pode compreender a beleza do seu Espírito. Não se assuste, Guimarães. Foi ela mesma quem o salvou. Na noite em que morreu, dirigia-se para a minha casa, onde realizávamos um serviço de caridade por motivo do Natal do Cristo. Tudo quanto ganhava ela nos dava com alegria para ajudar-nos na obra de assistência aos necessitados. Não bebia cachaça, Guimarães. Apenas fumava do fumo que eu lhe dava. Se gostava de fumar, cantar e dançar, gostava ainda mais de auxiliar os que precisavam mais do que ela... Um nobre Espírito, Guimarães...

            O marido de D. Eponina estava derrotado. Compreendera, muito tarde, que Rita Maria valia muito mais do que ele supunha. Caíra no rio da mesma maneira que ele, e não porque estivesse embriagada. Guimarães sentiu os olhos arderem e chorou de vergonha e arrependimento. Aquela frase terna que dissera timpanava em seus ouvidos:
-
             ... tinha que terminar na “água”, minha filha...

            E soluçando, concluiu:

            - ... e foi da água que ela me salvou...

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