João Batista
por Amaral
Ornellas (*)
Reformador (FEB) Maio 1919
dramaturgo, jornalista e médium espírita brasileiro.
Nascimento: 20 de outubro de 1885 Desencarne: 5 de janeiro de 1923. Fonte: Wikipédia
Quem foi João Batista, o homem da solidão e do
deserto, que alimentava o seu corpo com mel silvestre e a sua alma com os
cânticos maravilhosos das glaucas folhagens, com as vozes misteriosas e
soturnas da floresta?
Porque se embrenhava ele pelo fundo verde da mata,
com o corpo mal coberto por uma pele de camelo, procurando o silêncio da sombra
e bebendo o sol coado da folhagem dos arbustos?
Porque semelhava uma fera humana, de cabelos
revoltos como um leão, de olhar felino como de um tigre e mãos crispadas como
uma garra ameaçadora?
Porque fazia ecoar pelo deserto a sua voz rouquenha
e tonitruante como a linguagem cavernosa dos trovões?
Porque o João falava ainda pelos lábios espirituais
de Moisés, porque o Batista sentia a atração maravilhosa da floresta, em cujo
seio Elias tinha meditado sobre a grandeza do Pai, chorando a miséria dos
homens.
Porque o sol pequenino e brilhante que iluminava o
corpo de Moisés, o óleo sagrado que lubrificara os músculos de Elias, foi o
mesmo óleo que acendeu a lâmpada corpórea do João, foi o mesmo sol encarcerado
na matéria do Batista.
Quando Moisés se despojava do invólucro material na
terra de Moab, o seu espírito subia às tranquilas regiões siderais, embalado
pelos soluços do povo que o chorava na planície. Subia para adquirir novas
forças, beber novas luzes, sorver novos ensinos. Ascendia para descer depois
mais iluminado e mais forte para viver o corpo de Elias, enquanto a sua
primitiva carcaça se decompunha no vale de Moab entrando no grande laboratório
da natureza para o geral aproveitamento das suas moléculas. A alma do profundo
legislador hebreu, do divino pastor do rebanho de Israel, que, conhecendo o
refluxo das águas do mar vermelho as passou a pé enxuto; profeta que, como nos
diz a Bíblia, outro não houve semelhante em todas as coisas fortes e maravilhas
grandes, veio com Elias viver a vida das feras, habitar as cavidades dos
rochedos. De onde, na frase de Renan, saía como o raio para fazer e desfazer os
reis.
Despojado da vestidura carnal de Elias, ergue-se
Moisés novamente às paragens serenas do Bem, e assumindo no Alto a máxima
integridade do seu espírito, volta ao Planeta na ascética figura de João
Batista, para ser a voz clamante do deserto de que falava Isaías.
Aí é que a grandeza do seu espírito assume
luminosidades fantásticas.
Seu Deus não é mais o que lhe aparecia numa chama
ardente no meio de uma sarça; não mais o que incitava a cólera do anacoreta na
aspérrima solidão do Carmelo, é o Pai todo carinho e brandura, que o mandara
aparelhar o caminho da vida para a passagem luminosa do Amor.
Ouçamos a sua voz trovejando no deserto: “Fazei
penitência!”
“O machado
está posto à raiz das árvores. Toda árvore que não der bom fruto será cortada e
lançada ao fogo. Eu na verdade nos batizo em água para vos trazer a penitência;
porém o que há de vir depois de mim é mais poderoso do que eu, e eu não sou
digno de desatar as correias das suas sandálias. Esse batizará no espírito
santo e em fogo.”
Que extraordinário poeta era João! Poetar é
traduzir por palavras as maravilhas da natureza! O poeta no momento em que
sente acender-se no cérebro a lâmpada maravilhosa da inspiração é o mortal que
mais sobe a Deus, porque interpreta o mundo através do verbo.
Que extraordinário poeta era João! Vê-se nas suas
palavras essa estranha poesia do Oriente, forte porque rescende às virgens
florestas; odorante, porque está impregnada da essência suave dos castanheiros
em flor; límpida, poque reflete a pureza cristalina das águas dos córregos
mansos que rasgam como uma lâmina o colo aveludado da selva.
O verbo de João tem pela forma por estrídulo (som agudo, penetrante) da floresta agitada, e o
odor dos castanheiros e a limpidez das águas, se a ele pudermos erguer o nosso
espírito. As suas palavras tem o poder admirável da síntese. Tentemos traduzir
em linguagem corrente o poder dos seus símbolos: Fazei penitência; isto é,
limpai a vossa alma, tornai-a pura como o vosso Pai é puro. Fazer penitência é
não reincidir nos erros, é caminhar para Deus com a alma voltada para Ele, sem
olhar para o caminho percorrido pelos crimes do pecado. Feita a penitência “eu
vos batizo com água, porém outro virá depois de mim que vos batizará em fogo.”
A água é o símbolo da pureza, o fogo é a
simbolização da tortura. Parece-me que o Batista queria dizer que limpava a
alma para o futuro, mas o Outro, investido de funções mais santas, levava essa
alma a olhar para o seu passado e sofrer o que era necessário para a sua
purificação.
A dor é o cadinho por onde passam as nossas
imperfeições. Eis o batismo de fogo, que só Deus poderia impor. Não sou digno
de desatar-lhe as correias das sandálias. Forma admiravelmente poética para
exprimir a inferioridade do seu espírito diante da maravilhosa espiritualidade
daquele que vinha dizer ao mundo que a Terra é apena um pouso na estrada infinita
da criação, porque muitos e muitos são os palácios de seu Pai.
“O machado está posto à raiz das árvores.
Toda árvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo.”
Forte imagem que num rápido traço sintetiza com
máscula eloquência o que seria preciso acumular vocábulos sobre vocábulos,
orações sobre orações, períodos sobre períodos para exprimir em linguagem comum
o que o gênio define com um só jato do seu pensamento. O machado é a revelação
de Jesus, é o verbo divino que se coloca ao lado do coração de cada homem.
Aqueles cujos ensinamentos não aproveitarem serão entregues a sua própria
ignorância, serão fechados dentro do círculo de fogo da sua imaginação, que
anseia a luz mas que caminha para a treva, que aspira o Bem, mas que se chafurda
no mal. O fogo é a própria tortura como a de um cego que sente o sol queimar lhe
a epiderme mas não pode fita-lo entre as colchas douradas do poente ou no
túmulo ensanguentado do Ocaso.
Imaginai agora o que a semente da doutrina de Jesus
poderia produzir dentro do cérebro de cada homem, que diverge desta
maleabilidade do seu caráter, como aquele diverge dos demais pelo entusiasmo
das paixões que se aninham no seu íntimo, e chegareis à conclusão de que sobre
esse símbolo do Batista poderiam escrever-se não períodos, porém livros sobre
livros, tomos sobre tomos, toda a copiosa literatura de uma raça.
O Batista, como todos os grandes sonhadores, deixem-me
chamar assim àqueles que passam pela Terra, sem viver na Terra, queria dar uma
forma, um corpo à sua ideia. E essa corporificação da sua ideia ele a foi
encontrar na fresca e límpida corrente do Jordão. O próprio Jesus não quis
despertá-lo do seu grande sonho e lá foi, ainda como prova da mais rara
humildade, receber o batismo daquele que não era digo de desatar as correias
das suas sandálias.
“Eu vos batizo em água!”
Como acharemos profundas essas palavras se nos
remontarmos à época em que floresceu João Batista. A água para os hebreus o
único princípio de todas as coisas. Eu vos batizo em água! Isto é, eu vos
batizo com o poder que tenho sobre a Terra. O Outro vos dará o batismo do fogo,
porque tem em suas mãos o altíssimo poder dos céus.
A palavra do Batista era como uma vergasta de luz
chicoteando e impureza dos homens. E como a abundância de luz ofusca as
retinas, Herodíades que se ofendera com a pública verdade do seu adultério
estigmatizado por João, consegue de Antipas o seu encerramento na fortaleza de
Machero.
E uma noite em que o palácio do tetrarca se abrira
luminosamente em festa, Salomé, a lubrica filha de Herodíades, depois de
provocar Antipas, meio ébrio, com a formosura estuante da sua carne em flor,
entre lascivos volteios de um dança caracteristicamente voluptuosa, estende,
por insinuação materna, uma salva de prata ao tetrarca maravilhado e pede, com
os lábios desabrochando em sorrisos, que sobre ela seja deposta a cabeça de
João Batista.
Antipas, bêbado de vinho e ébrio de volúpia, ordena
a um guarda que cumpra o estranho desejo da irrequieta Salomé.
E desce a guarda à fortaleza subterrânea. O Batista
lá estava sereno, confiante, pensando - quem nos dirá? - nas passagens mais íntimas do grande pastor das
ovelhas de Israel, no canavial ondeante que à margem do rio escondeu o cestinho
de junco que mal abafava o seu choro inocente.
E pensando em Moisés, talvez que um jato de sangue
rubro lhe tivesse manchado a brancura da sua divagação espiritual, lembrando-se
do cadáver daquele egípcio que soubera esconder na areia, como soubera esconder-se
da cólera do Faraó, refugiando-se em terras de Madian.
Range soturnamente a porta do presídio, aproximando-se
o guarda, refulge no ar uma lâmina brilhante, e eis calada a voz do que clama
no deserto.
E assim terminou a missão do Batista, que foi a do
precursor divino, a de preparar com o arado da sua palavra o terreno infértil
onde Jesus plantou a semente do Amor.
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