Caridade
por J. Fontoura
Reformador (FEB) Maio 1919
“Guardai-vos, não façais as vossas boas obras diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles, de outra sorte não tereis a recompensa da mão de nosso Pai, que está nos céus. Quando, pois, dás a esmola não faças tocar a trombeta diante de ti, como praticam os hipócritas nas sinagogas, e nas ruas, para serem honrados dos homens; em verdade te digo que eles já receberam a sua recompensa. Mas quando dás a esmola, não saiba a tua esquerda o que faz a tua direita.” (Mt., cp. VI vv. 1,2,3)
Longe está a humana gente de cumprir os ensinamentos de N. S. Jesus Cristo; longe estão os tempos em que a mão esquerda não saberá o que faz a direita; longe, muito longe estão os tempos em que o homem fará a caridade que será recompensada por Deus; longe estão os tempos em que as trombetas não se farão soar nos quatro pontos cardiais, todas as vezes que o homem, soltando de suas mãos egoísticas o ouro que o orgulha, não se faça conhecido para, cheio de vaidade, ouvir dos que o rodeiam e o adoram, elogios balofos, que o deviam envergonhar. “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”.
E não se pense que nos referimos somente a indivíduos isoladamente, não.
Às massas constituídas em corporações religiosas; os grupos compostos de milionários,
banqueiros, sociedades anônimas e também as que se formam para a organização de
festas de caridade; a todas incluímos nestas linhas, nem de longe como um
motivo de censura, mas como prova do ponto que tomamos como simples estudo
sociológico em face dos Evangelhos.
Ainda há pouco (e está isto bem vivo na memória de
todos que pensam nos motivos dos acontecimentos sociais ligando-os às coisas de
Deus), abria-se uma subscrição para edificar-se um grande, um monumental
edifício destinado a uma associação no Brasil.
Pois bem. Foi uma verdadeira califórnia (algo que traz ou propicia
riqueza) em
concha limpa, uma verdadeira corrida sensacional, onde cada capitalista fazia
esforço para tirar o primeiro lugar. Dentro de uma semana, mais ou menos, já
havia em cofre, apenas a quantidade de duzentos e tantos contos (de réis). Os jornais publicavam diariamente
os nomes dos milionários que seriam de puro sangue nessa corrida.
É rara a semana em que em cidades do
vasto território descoberto por Pedro Álvares Cabral não se fazem festas em
benefícios de templos onde brilham as colunetas de ouro, em que o som do grande
órgão enche a nave, por onde se espalha o fumo perfumado do incenso misturado a
ondulações sonoríssimas de vozes femininas. Durante os quatro anos da guerra (1ª Grande Guerra 1914-1918) que inundou de sangue o
continente Europeu, não raro formaram-se sociedades anônimas para exploração de
indústrias que deram em pouco tempo fortunas fantásticas aos principais
acionistas. Homens houve, pobres, que de um momento para outro enriqueceram,
tornando-se possuidores de fortunas incalculáveis.
Estabelecimentos bancários emergiram e cresceram como
cogumelos, às porções; nos grandes salões da aristocracia brasileira,
enfeitados com esmero e gosto, senhoritas trajando vestimentas à fantasia,
custosas e caríssimas, vibraram ao som dos tangos, em requebros de corpos, cada
qual procurando melhor acertar o ritmo dessa música material em que se
concentra a essência da volúpia, para fundos metálicos, com que pudessem
socorrer os sofredores de outras nações; e seus nomes enchiam colunas de
jornais, recebendo elogios que não elevam.
No entanto, em nossas terras, em nossa própria casa,
morrem milhares de irmãos, transidos de miséria.
As águas dos rios
avolumam-se, inundam cidades e lavouras, destroços de casas vão por água
abaixo, levadas pelas correntezas, girogirando nos redemoinhos; ou sepultando
no desmoronar, humanas e infelizes criaturas. Pais lamentam-se assistindo sem
remédio a morte dos seus; mães arrancam os cabelos, desesperadas pelo
infortúnio. “Rachel chorando a seus filhos sem admitir consolação pela falta
deles.” Crianças órfãs correm em busca de abrigo, a procura da caridade,
padecendo fome.
Enquanto isso se dá
num ponto do Brasil, em outros a seca produz as maiores calamidades. Retirantes
esfaimados, pais e mães trazendo apertados ao peito os filhinhos esqueléticos,
que nem forças tem para chorar, atravessam grandes campos desertos, em que só
ossadas de gado se encontram espalhadas, por essas extensões sáfaras (desérticas), onde nem um pé de grama brota mais e donde sobe o
rescaldo (calor resultante de cinzas) mortificante (1).
Porque? Bem sabemos que as provas coletivas são uma
verdade. Mas, não temos o direito de ir ao encontro dos que passam por essas
provas, procurando amenizá-las?
Sim. Deus, em sua infinita misericórdia, permite que
ajudemos a cumprir suas penas aos condenados, não só dando conforto material,
mas também físico e moral.
Mas então, porque a nossa indiferença para com esses
patrícios que sofrem, quando ainda não há muito mostrávamos tanto interesse
pelos nossos irmãos do estrangeiro?
Porque, longe estão os tempos em que a mão esquerda não
saberá o que faz a direita. Interesses banais de orgulho e vaidade ocultam-se
nessa caridade apregoada aos quatro ventos. Que interesse pode haver para as
sociedades promotoras de festas caridosas no socorrer pobres infelizes dos
nossos sertões? Que medalhas ou brasões, essa miseranda gente pode mandar
pregar ao peito daqueles que fartos, servem-se do nome bendito da caridade para
divertirem-se com motivos justificados? Que agradecimento pode vir dessa gente
paupérrima e anônima, que recebendo o óbolo, não sabe quem lh’o enviou e apenas
humildemente ergue os olhos para cima e agradece a Deus, pensando ser do céu
aquela esmola?
Nenhum; ingratos. Socorre-los é atirar pérolas a porcos;
não podendo agradecer, nem papel talvez tenham para mandar uma lista de nomes
manifestando sua gratidão e que possa ser publicada nas gazetas indígenas.
Os
pobres da Bélgica heroica, da França invencível, da Itália valente, e de outras
nações, ah! Esses... outra coisa... uma esmola a eles pode estreitar a amizade
entre os dois países, o nosso e o deles, resultar daí um grande intercâmbio
comercial. Além do que eles sabem ser gratos e os agradecimentos vem escritos
em papel pergaminho e por via diplomática... vale a pena gastar o tempo assim
com gente boa e fina... gente que sabe agradecer... Longe estão os tempos e
muito longe, em que o homem saberá praticar a caridade.
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