Encontro com Léon Denis
Mais uma vez, adentrávamos o admirável “Père-Lachaise”, um dos alvos turísticos mais destacados de Paris.
A famosa necrópole exibia cenários de inconfundíveis contornos, sob intensa movimentação de Espíritos já desligados das lutas carnais.
Experimentávamos, assim, a mesma sensação de respeitoso misticismo, que de outras oportunidades, percorrendo, com reverência espiritual, as alamedas circunspectas da conhecida mansão dos desencarnados. Desfilavam, à nossa contemplação, joias da criatividade artística, nos mármores raríssimos e nos bronzes custosos, habilmente erigidos em túmulos de inestimável valor para a transitoriedade física.
Conquanto reconhecêssemos, de nossa parte, com a formação espiritista a se nos fortalecer na consciência ativa, o nada em que se resumem estas cidades de cinzas para os que perambulam no mundo, em repertórios de amargas saudades, não pudemos fugir à circunspecção da Caravana, composta, em quase sua totalidade, de companheiros espirituais do Brasil em excursão de estudos ao famoso cemitério francês.
Sem qualquer espanto, observávamos como em outros redutos da mesma destinação, o vaivém de formas translúcidas, suavíssimas quão diáfanas, à feição de abelhas operárias de sublime colmeia, adejando, em nome do celeste auxílio, as cidadelas espirituais de muitos hóspedes, da gigantesca comunidade dos mortos, em dificuldades dolorosas ou carências inenarráveis, desenvolvendo tarefas do amparo legítimo cuja extensão não podemos, ainda, avaliar.
Nossa Caravana deslizava silenciosa, muito pouco notada, por entre aquela multidão de espíritos em atividades socorristas no “Pére-Lachaise” , corno um comboio de destino definido.
Nosso objetivo era o dólmen para onde foram trasladados os despojos fúnebres de
Allan Kardec.
A suavidade do luar derramava banhos de prata sobre a nostálgica ambiência de arquitetura variadíssima que, ainda hoje, retém as cinzas de notáveis personalidades da civilização europeia.
Guardávamos a impressão de um sonho em delicado tecnicolor, fruto da emoção que, decerto, se generalizava em todos os participantes da agradável excursão.
Em tempo mínimo, vislumbramos a composição granítica, singularíssima, bem ao estilo druida, demarcando, com certa austeridade, o local onde repousam os restos mortais do insigne Codificador do Espiritismo.
Protegida sob maciça e pesada lápide, a figura. de Allan Kardec, esculpida em bronze,
parecia emitir radiações especiais, qual se refletisse, de modo estranhamente belo, as carícias do luar.
Perfume suave balsamizava o ambiente emoldurado, a certa distância, por vegetais esguios como braços erguidos em súplicas ardentes aos céus.
Agradável fragrância de flores diversas, ali depositadas, frequentemente. por mãos generosas, evolava pelo ar qual se turíbulos invisíveis movidos por mãos divinas espargissem, em derredor, delicada homenagem de louvor e carinho à memória do Mestre lionês.
Convidados por nossos Mentores, estacamos a caminhada a alguns passos do dólmen portentoso, em respeitosa atenção à entidade espiritual que ali se postava em atitude que resumia, a um só tempo, êxtase da prece e introspecção meditativa.
Quem seria o Benfeitor de reconhecida envergadura espiritual, cuja radiosidade da túnica simples se completava, em harmoniosa - composição, com a alvura apreciável dos cabelos rasos?
Contemplávamos, acaso, uma joia escultórica de talentoso Fídias do além, que ali plasmara, em matéria tenuíssima, o porte sereno e enérgico de um sacerdote druida em perene reverência ao inesquecível Professor Rivail?
Destacando-se do grupo, o Orientador da Caravana aproximou-se respeitosamente da figura singular que, tão logo nos percebendo a presença, voltou-se em delicada acolhida, pondo-se-nos em evidência as linhas fisionômicas de vulto bastante conhecido nos cenários espíritas, dedicado operário da Terceira Revelação.
Tratava-se, sem sombra de dúvidas, de Léon Denis.
O espanto natural nos teria mantido sob impacto de surpreendente expectativa, não fosse a imediata gesticulação carinhosa com que o fecundo apóstolo das letras consoladoras buscou a direção de nosso grupo, entremostrando ênfase de fraternidade.
Apagando-se, quase de imediato, talvez para não nos espicaçar as sombras das vestes espirituais, Denis, qual se saísse de neblina radiosa, foi assumindo o aspecto simpático de seu porte octogenário, envergando pesado capote à moda francesa do início deste século, surgindo, assim, à nossa proximidade, como uma réplica humanizada de seus últimos dias no estágio terreno. Saudou-nos com satisfação:
- Sejam bem-vindos, irmãos de ideal! Orava, ainda agora, pela semeadura espírita nas plagas brasileiras. .. Não desconheço as sublimes responsabilidades do Brasil com vistas ao futuro espiritual de nosso orbe, acolhendo e divulgando o Espiritismo em sua missão de elevar as almas para o Criador ...
À inflexão paternal de sua voz e diante da agradável recepção do venerável patriarca do Espiritismo, a emoção se nos desgovernou o controle das lágrimas que rolaram, teimosas. Estávamos,de fato, à frente do discípulo fiel de AlIan Kardec!
Findas palavras breves de saudação e apreço, nosso Orientador deixou-nos à vontade junto ao festejado tribuno espírita, autor de tantas obras de reconhecidos méritos nos alicerces da Codificação, a fim de que a conversa se generalizasse entre todos, descontraída, espontânea e natural.
Daí a instantes, encorajados por vários irmãos do grupo e valendo-nos da especialidade de falante das letras para os periódicos da Terra, ousamos propor uma questão, à guisa de entrevista-relâmpago:
- Venerável Instrutor... temos observado muita luta religiosa na gleba humana. Divisões,
guerras, extermínios e ódios em nome da fé ... Sacerdotes de todas as crenças, lembrando a figura de Jesus, estão esquecidos de que as virtudes do Reino Divino não estão circunscritas ao domínio das organizações estatais do mundo. Os espíritas, achamos de nossa parte, muita vez se jactanciam de detentores da Verdade, assumindo íntima posição de liderança religiosa como se pensassem no comando das massas populares. Que falar aos nossos irmãos em torno da perecibilidade das igrejas instituídas e do perigoso trilho dos triunfos ilusórios, capaz de despojar o Consolador Prometido, pela incúria de seus próprios tarefeiros, de sua láurea de divino ideal?
- Tendes, por templo, o Universo... sentenciou o querido entrevistado, em surpreendente
laconismo.
- Sim, de fato, mas o personalismo humano é um gigante dementado. Emissários Celestes buscam, incessantemente, orientar os caminhos da civilização; mas as dificuldades parecem aumentar. Os encarnados, quase todos, olvidam o esforço indispensável da própria regeneração para os abençoados serviços da luz. Muitos espíritas, em nossa opinião, ainda não se aperceberam das informações do Cristianismo Restaurado, e evocam a construção de cenáculos para albergar multidões, de grande valor nas expressões arquitetônicas, caminhando para recapitular experiências do passado. Que dizer das polêmicas, nos bastidores do movimento que abraçamos, com vistas à definição de uma arquitetura própria identificadora de nossas instituições cristãs?
- Tendes, por altar, a consciência... atalhou brando e reticencioso o ancião respeitável.
Após breve pausa, com que aguardamos "algo mais da palavra instrutora, e que não veio, obtemperamos, retomando o diálogo:
- E quanto à rebeldia dos religiosos, idolatrando imagens? Abolidos os ícones tradicionais da igreja anciã, os velhos hábitos permanecem arraigados nas consciências dos devotos. Reconheço que mesmo nos arraiais espíritas há os que não abandonam certas posições desastrosas; Bezerra de Menezes, Eurípedes Barsanulfo, Anália Franco e muitos outros respeitáveis representantes da causa cristã no Brasil, até mesmo Kardec, são retratados, quase sempre, com destaques do carinho que os transforma, de certa maneira, em ídolos venerados nos grupos de orações. Que sugerir aos companheiros espíritas como alertamento oportuno?
- Tendes, por imagem, Deus! respondeu o «druida de Lorena», ensimesmando-se em ilações mentais longe de nosso alcance.
Percebendo que o ilustre entrevistado nada mais fazia que repetir conhecidas construções de sua lavra filosófica, que muitos espíritas guardam de memória, ousamos encaminhar a conversa para outra direção:
- Pois bem, nobre amigo, as pesquisas científicas crescem, dia a dia, e muitos espiritistas, com receios lamentáveis, julgam que em breve tempo as ciências do mundo ensombrarão a Doutrina dos Espíritos. Fala-se muito em parapsicologia e psicotrônica para rotular velhos fenômenos da lavoura mediúnica tão bem caracterizada por Kardec. Há quem considere o Espiritismo ultrapassado, fadado a desaparecer no final do século como mais uma escola religiosa frustrada aos embates da ciência. Que argumentar com os companheiros da crosta? .
- Acredito poder repetir que o Espiritismo foi chamado a tornar-se o grande libertador do pensamento escravizado há tantos séculos.
- Muitos temem o fim do mundo, acrescentamos ligeiro, imaginando não haver mais tempo para a liberdade almejada. Pensam no Terceiro Milênio como o caos da civilização, o império da cibernética e da eletrônica, o reencontro do homem com o próprio homem, dementado nos avanços da sabedoria, um semideus .descrente e desatencioso ante a Criação. Que falar aos devotos de fé insólita, balouçantes às investidas do pragmatismo do século, submissos ao materialismo que intenta destruir, nas criaturas, a ideia de Deus - Pai e Criador?
- Não podeis separar o efeito da causa, não podeis separar o homem de Deus! O homem não pode estudar-se e conhecer-se sem estudar Deus, não em si, mas nas relações que entretemos com Ele. E quanto mais O conhecemos mais queremos servi-Lo!
Silenciamos, ante o impacto das respostas, abraçando certo constrangimento ou frustração interior, observando nos conceitos emitidos, até ali, por nosso venerável Denis, meras repetições do que podemos encontrar nos fastos de sua laboriosa presença na divulgação espírita.
Um encontro àquela hora, pensamos, não poderia ser casual. Imaginamos, de pronto, alguma intencionalidade de nosso Orientador, proporcionando-nos os proveitosos instantes de convívio com o inolvidável líder espírita, remoendo-nos, por dentro, ante nossa evidente debilidade de inquiridor, incapaz de estimular, no entrevistado, algumas conceituações novas para traze-Ias aos espiritas.
Mesmo assim; cobrando ânimo, pudemos, ainda, argumentar:
- Mestre Amigo... nossos companheiros da Terra anseiam por assuntos originais das fontes do Além; algumas informações que lhes possam saciar a curiosidade benfazeja. Narrar-lhes este encontro sem respigar as anotações com alguma novidade seria, para muitos, um desperdício da mediunidade no serviço das letras. Que nos poderia oferecer, o estimado Irmão, em termos novos, para o noticiário espírita, quando há tanto carinho reverenciando seu glorioso esforço de continuador de Kardec?
Pousando nos meus seus olhos atenciosos, evidenciados no semblante calmo, conquanto levemente contristado, Léon Denis, quase solene, respondeu de modo a que todos lhe registrássemos a inflexão da voz:
- Você me pede novidades? surpresas para os irmãos espíritas?! Ah! meu filho, meu filho ... Recomende aos amigos da Terra a leitura das obras básicas do Espiritismo, junto às quais nossos livros são pálidas contribuições ...
- Pode ter certeza de que para a grande maioria dos espíritas com responsabilidades no Movimento e interesse nos informes do Além, os livros básicos da Codificação, ainda agora, se apresentam com o sabor de absoluta novidade!
O Repórter
(Página pslcografada pelo médium Júlio Cezar Grandi Ribeiro,
na reunião pública da Casa EspíritaCristã,
na noite da 25 de abril de 1977.)
Léon Denis
Gênio Celta entre célticas trincheiras,
Na França valorosa e missionária,
Sustentastes, com força multifária,
O legado das luzes verdadeiras.
Prosseguistes na rota voluntária
De defensor das sublimadas leiras,
Onde Kardec, em fainas timoneiras,
Fez da Verdade a liça necessária.
Discípulo do amor no mundo agreste,
Difundistes a luz do lar celeste
No turbilhão sombrio em tredo abismo ...
Qual consolidador do Paracleto,
Sois nobre e inolvidável arquiteto,
Apóstolo fiel do Espiritismo!
Luiz de Oliveira
(Soneto pslcografado pelo médium Júlio Cezar Grandl Ribeiro, na reunião pública da
Casa Espírlta Cristã - IBES - Vila Velha {ES), em que se comemorava o Clnquentenárlo
de Desencarnação de Léon Denis., na noite de 25-4-1977.)
in “Reformador” (Setembro 1977)
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