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terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Lembrança de Natal


Lembrança de Natal
Editorial
in Reformador (FEB) Dezembro 1978

            No Natal do Senhor, recordemos-Lhe as palavras divinas:

            "Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus.
            Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados,
            Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra.
            Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos.
            Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.             
            Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus.
            Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.
            Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.
            Bem-aventurados sereis quando, por minha causa, vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós. Regozijai-vos e exultai, porque será grande o vosso galardão nos céus, pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós.
            Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos
maldizem, orai peles que vos insultam.
            Ao que vos bate numa face, oferecei também a outra;
            Ao que vos arranca o manto, não recuseis a túnica.
            Dai ao que vos pedir e nada reclameis de quem vos tirar o que é vosso.
            Como quereis que os homens vos façam, assim fazei-lhes vós a eles.
            Sede misericordiosos, como vosso Pai é misericordioso, Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados, Dai e dar-se vos á: derramarão em vosso regaço uma medida boa, calcada e transbordante, porque a medida com que medirdes os outros será a mesma com que vos medirão a vós.
            A árvore se conhece pelo seu fruto. Não se colhem figos dos espinheiros, nem se vindimam uvas dos abrolhos.
            Brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus.
            Se ao trazerdes ao altar a vossa oferta, ali vos lembrardes de que vosso irmão tem alguma coisa contra vós, deixai perante o altar a vossa oferta, ide primeiro reconciliar-vos com o vosso irmão, e depois, voltando, fazei vossa oferenda.
            Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles.
            Quando derdes esmola, não toqueis trombeta diante de vós, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados.
            Não saiba a vossa mão direita o que faz a esquerda, para que a vossa esmola fique em segredo; e vosso Pai, que vê o que se passa em segredo, vos recompensará.
            Quando orardes, entrai no vosso quarto e, fechada a porta, falai com vosso Pai.
            Quando jejuardes, não vos mostreis contristados, como os que desfiguram o resto para ser honrados pelos outros.
            Não acumuleis para vós tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem podem corroê-los e onde os ladrões podem roubá-los, mas ajuntai tesouros no céu, porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração,
            Dai de graça o que de graça recebeis.
            Não se perturbe o vosso coração: credes em Deus, crede também em mim.
            Na casa do meu Pai há muitas moradas...
            Se me amais, guardai o meu mandamento. Meu mandamento é este: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei.
            Não vos deixarei órfãos. A paz vos deixo, a minha vos deu. Não vo-la dou como a dá o mundo.
            Não desfaleça, pois, o vosso coração. Permanecei no meu amor.
            Quando vier o Consolador, que eu enviarei da parte do Pai, o Espírito da Verdade dará testemunho de mim.
            Tenho ainda muito o que vos dizer, mas vós não o podeis suportar ainda. Quando vier, porém, o Espírito da Verdade, ele vos guiará a toda a verdade, porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo quanto houver ouvido de mim e vos anunciará as coisas que hão de vir. Os reis dos povos dominam sobre eles e os que exercem autoridade são chamados de benfeitores. Mas, entre vós, o maior será o que se fizer servo de todos e aquele que dirige será como o que serve. Entre vós, eu sou aquele que serve.
            Andai enquanto tendes luz, para que as trevas não vos apanhem. Quem anda nas trevas não sabe para onde vai.
            Eu sou a luz do mundo, mas se alguém ouvir as minhas palavras e não as guardar, eu não o julgarei, porque não vim para julgar o mundo e sim para salvá-lo.
            Quem me rejeita e não recebe as minhas palavras tem quem o julgue, porque a própria palavra que digo o julgará no último dia.
            Se eu, sendo Mestre e Senhor, vos lavo os pés, deveis lavar-vos es pés uns aos outros.
            Eu vos dei o exemplo, para que, como vos fiz, façais vós também.
            Em verdade vos digo que não é o servo maior que o seu senhor, nem o enviado maior que aquele que o enviou.
            Se, pois, sabeis essas coisas, bem-aventurados sereis se as praticardes."


sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

'Fenômeno é Espiritismo'


Fenômeno é Espiritismo

Túlio Tupinambá / Indalício Mendes

            É sempre útil o estudo paciente da Doutrina Espírita e das conclusões dos exegetas de grande autoridade no movimento. Os fenômenos mediúnicos constituem um estudo profundamente interessante e de importância inegável para a penetração e difusão do Espiritismo.

            Allan Kardec, em "O Livro dos Espíritos", demonstrou a importância desse estudo, no Capítulo IX - "Da intervenção dos Espíritos no mundo corporal". Dizer-se que "o fenômeno mediúnico não é Espiritismo" constitui uma afirmativa ousada e inverídica, porque é o contrário que se dá, pois o que especifica o Espiritismo é o fenômeno mediúnico. Entretanto, certo estará quem disser que o Espiritismo não é só o fenômeno. Aí, sim, estará completa a definição.

            A parte moral é de importância fundamental para a educação da Humanidade. Poderá levá-la à felicidade que constitui a aspiração máxima da criatura humana. Por isto, reconhecendo sua magna importância, foi que surgiu "O Evangelho segundo o Espiritismo", porque nada é mais necessário ao homem do que evangelizar-se. O Evangelho dá luz, orientação, paz, coragem, paciência, resignação, energia e - esperança.

            Para coadjuvar a educação evangélica ministrada em "O Evangelho segundo o Espiritismo", de Kardec, para coadjuvar e reforçar essa educação, temos "Os Quatro Evangelhos", de Roustaing, obra admirável, ditada pelos evangelistas Mateus, Marcos, Lucas e João, através da médium Sra. Collignon, mãe do Prefeito de Bordéus, França.    

            Às vezes alguém alude a uma atitude negativa de Kardec em relação a essa obra. Entretanto, sempre é bom repetir, em "Revue Spirite", de Junho de 1866, Allan Kardec, ao noticiar o aparecimento desse trabalho, julgou-o "considerável e com o mérito de não estar em contradição, por qualquer dos seus pontos, com a doutrina ensinada no O Livro dos Espíritos e no dos Médiuns, e que ele, Kardec, não havia realizado trabalho semelhante porque não julgara oportuno fazê-lo, antes que a opinião geral estivesse familiarizada com a ideia espírita” (Veja-se a obra "Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita").

            Ninguém pode, a meu parecer, considerar-se suficientemente enfronhado no estudo evangélico do Espiritismo sem dedicar também algum tempo a "Os Quatro Evangelhos".

            Mas Kardec não se deteve naquela apreciação, pois, na mesma revista, esclareceu: "Estas observações, subordinadas à sanção do futuro, em nada diminuem a importância da obra, que, de par com algumas coisas duvidosas, segundo o nosso ponto de vista, outras contém incontestavelmente boas e verdadeira e será consultada com proveito pelos espíritas conscienciosos.”

            Voltando à importância do fenômeno, diremos, porém, que seu estudo não é indispensável à educação moral do homem. Esta parte diz respeito à parte moral da Doutrina, ao "Evangelho segundo o Espiritismo", "assim como os "Os Quatro Evangelhos” (que também esclarece, ao elucidar, o papel que o fenômeno teve na passagem de Jesus por este planeta).

            Finalizando, diremos àqueles que nos lerem estas palavras de Paulo a Timóteo (I-4;15):

            “Medita estas coisas; ocupa-te nelas para que o teu aproveitamento seja manifesto a todos.”


Reformador (FEB) Janeiro 1963

A Nossa Política



                           Trecho de um artigo de Roberto Macedo publicado em 
                      Reformador (FEB) Novembro 1946 sob o título ‘A Nossa Política’.

           " ....A Política é essencialmente mundana e visa o governo transitório dos homens; a Religião é essencialmente divina e visa a regeneração eterna dos espíritos. Se puderem nossos confrades, sem violentar a linha de suas provas, afastar-se do braseiro das paixões, tanto melhor para eles. Voluntariamente, coletivamente, é que nos parece menos aconselhável irmos ao encontro do perigo, possibilitando assim o escândalo, tão natural nos homens em épocas de fermentação ideológica, mas tão impróprio nos discípulos d'Aquele que ensinou a mansidão e mandou dar a César o que é de César. Dando a Deus o que é de Deus, estaremos cumprindo o nosso dever moral unanimemente aceito e proclamado; procurando alistar-nos nas hostes de César, estaremos suscitando divergências até mesmo entre nós. Se neutralidade de opinião não existe entre cristãos conscientes do seu direito de pensar, a neutralidade de ação talvez constitua... o mais saudável dever para o confrade propenso à política. Pode ele concorrer para a vitória de sua parcialidade - pelo voto, como arma cívica, - pela prece, como arma divina. A intervenção espontânea no campo da luta, fora dos muros da Doutrina, convém evitar sempre que possível. Lembremo-nos de que o triunfo irresistível dos ideais cristãos depende menos da nossa cooperação individual que da orientação dos Guias e do gradual amadurecimento da Humanidade. Houve, é certo, entre os fundadores da Federação, alguns participantes da Política. Eram, porém, homens cheios de amor, como todos os pioneiros, e atuavam num ambiente menos impregnado de cóleras...   Demais. abandonaram a Política, renunciando ao mundo, quando lhes pareceu oportuno; a última palavra ficou, pois, com a Espiritualidade. Não insinuamos que eles errassem, nem que errem os crentes cujo livre arbítrio os conduza aos campos de batalha da Política. É um direito. Será um dever'? Nosso dever, cremo-la firmemente, é o de nos esforçarmos para sermos os eleitos de Deus."

O Destino da Alma


O Destino da Alma - Parte 1
C. Picone Chiodo
Reformador (FEB) Setembro 1946


            Nota-se que os estudos modernos a propósito da alma não visam somente fazer-nos saber que existe uma alma independente do corpo e que a este sobrevive, pois que esses estudos tendem igualmente a verificar se os Espíritos dos defuntos se manifestam aos vivos e, além disso, se é verdadeira a hipótese das vidas sucessivas, ou, seja, da palingenese ou reencarnação.

            Querem-se estabelecer cientificamente três fatos portanto:
            1) - O fato espiritualista;
            2) - O fato espiritista;
            3) - O fato reencarnacionista.

            Como é evidente, o primeiro é básico.

            Efetivamente, se fosse verdadeira a hipótese materialista, pela qual a matéria é o único elemento do Universo, gerador da vida e do pensamento, e o Espírito uma secreção das células cerebrais, como a insulina do pâncreas, e a biles do fígado, de fato não se poderia mais falar de sobrevivência e menos ainda de Espiritismo e renascimento.

            O materialismo, porém, que com fátua pretensão e infantil leviandade supôs ter reduzido a fragmentos a alma e Deus, como demonstrei em meus precedentes trabalhos, está morto e não merece mais a honra de uma discussão. De fato, crer que a matéria seja tudo, que a matéria possa pensar, é uma ilusão da qual toda pessoa culta deve hoje desembaraçar-se. De outro modo ficaria inexplicável, não poderia mesmo existir, toda essa imensa fenomenologia que força o magno problema da alma, que noutro tempo parecia de ordem especulativa e insolúvel, a entrar hoje para a categoria das deduções de natureza experimental: fenomenologia essa que, forçando a admitir-se a existência de uma inteligência dirigente e plasmadora no constituírem-se formas vivas, e provando incontestavelmente a existência no homem de faculdades que sobrepassam as leis da matéria, não pode deixar de conduzir-nos à conclusão de que a consciência põe em existência a energia e esta estabelece as formas para sua manifestação sensível.

            O fato cientificamente averiguado de que a vida do Espírito ultrapassa a vida cerebral, constitui prova iniludível de que o homem não pode considerar-se como sendo um organismo que determina a inteligência, mas, ao contrário, como sendo uma inteligência servida pelos órgãos que ela mesma constrói. É, portanto, absurdo afirmar que o aniquilamento da inteligência ocorra pela destruição do organismo, mas, racionalmente, deve inferir-se que o Espírito preexiste e sobrevive a esse organismo.          .

            A preexistência prova a sobrevivência. Se o Espírito que existiu ainda hoje existe, isso quer dizer que ele sobreviveu e, se sobreviveu, terá que sobreviver.

            As manifestações dos defuntos - espontâneas ou provocadas - são disso uma luminosa confirmação.

            Sendo imortal a alma, qual é o seu destino?

            Há duas hipóteses: a da palingenese que é a mais universalmente aceita: e a da vida única. Por esta última, cada alma seria uma criação nova, árbitra do seu destino: a sua eterna beatitude ou a sua eterna danação dependeria de sua conduta nesta vida única! Isso é absurdo e iníquo.

            Sabemos que cada homem vem ao mundo com seus cunhos psíquicos e físicos próprios, e que aqui vem ele a encontrar-se em condições econômicas e ambientais diversas. É certo que ainda antes que a pobre criatura abra os olhos à luz, já tem ela em si seu pesado fardo; tem ela nas profundezas do seu ser instintos, disposições, desejos próprios, dos quais não pode desfazer-se por um ato de sua vontade e que, ao contrário, traçam lhe, impõem-lhe o caminho que ela terá que seguir na vida.

            Física, moral, intelectual, socialmente, etc., a situação dos indivíduos é diversa. Na escala física, como na escala mental, na social e moral há muitos graus. Como da soberana inteligência à imbecilidade, assim da santidade à criminalidade, há inumeráveis distinções. Como o gênio, raro é o santo, e "Quem estiver sem pecado, esse lance a primeira pedra!" No fundo todos somos criminosos, como gritava o Hamlet à Ofélia para convencê-la a fazer-se monja e não vir a tornar-se mãe de pecadores.

            Ora, se o ser fosse uma nova criação, quem lhe imporia essas diferenças? Evidentemente seria o Criador o responsável por isso, o que equivaleria a dizer que o capricho e a iniquidade governam o mundo! Dessa conclusão não se escaparia.

            E como a estupidez e a obtusidade são apanágio da maioria e o egoísmo e a brutalidade são as notas dominantes no caráter humano, enquanto que as criaturas espiritualmente elevadas são raras, o resultado seria que bem poucas almas se salvariam da eterna condenação!

            Ora, tudo isso não pode deixar de ser absurdo e blasfêmia, tanto mais porque, dada a brevidade da vida (Vita brevis, Ars longa), (*) a pobre criatura não teria nem o tempo necessário para estudar a si mesma, para compreender alguma coisa da sua existência, de melhorar quando possível a si mesma, ou pelo menos, de ... arrepender-se de seus pecados!

               (*) Do Blog: ‘A vida é curta, a arte é longa’.

            Uma existência única não poderia transformar um selvagem em um Platão, nem um malfeitor em um S. Francisco: a criação não passaria de uma fábrica de predestinados às penas eternas do inferno!

            Contra essa pavorosa hipótese, em nome da bondade e da justiça do Criador, em nome da Razão e da Ciência, levanta-se a concepção das vidas sucessivas, a crença nos renascimentos, no retorno da mesma individualidade psíquica sob forma corpórea humana, depois de variáveis intervalos de espera (que não nos é dado estabelecer), na mesma ou em outra morada, a fim de continuar a ascensão da fatigante ladeira da evolução, do progresso espiritual, mediante a aquisição de novas capacidades, de uma consciência sempre mais ampla, de uma mentalidade e uma moralidade sempre mais elevadas.

            Não podendo negar-se uma finalidade aos processos da Natureza, os quais deram como resultado o homem, é lógico admitir-se que a soberana meta das reencarnações terrestres deve ser de pôr o Espírito em grau de triunfar das suas próprias imperfeições, lutando para esse fim contra as adversidades mais bem indicadas e, portanto, evolvendo, adquirindo conhecimentos e sabedoria por meio da experiência.





O Destino da Alma - Parte 2
C. Picone Chiodo
Reformador (FEB) Outubro 1946


Transformismo e Reencarnação

            O transformismo, em favor do qual as provas se acumulam dia a dia, e contra o qual já não se contam adversários no mundo científico, dá à teoria da evolução espiritual ligada com a evolução orgânica, uma confirmação indiscutível. Pode-se até afirmar que transformismo e reencarnação são dois termos diversos para indicar o mesmo fenômeno, isto é, a evolução dos seres vivos das formas inferiores de vida e inteligência para formas superiores.       

            Sabemos que os tipos biológicos mais altos apareceram sucessivamente e não simultaneamente com as espécies inferiores. Pela escala dos seres passaram em longa procissão as formas fantásticas e fenomênicas do animal. Cada tipo que aparece resume os tipos anteriores e representa a vida sobre um plano sempre mais alto em sua lenta, mas contínua evolução. Natura non facit saltus.(*)  Com o homem na a progressão dos tipos, talvez que ele seja o último elo da cadeia.

               (*) Do Blog: ‘A natureza não dá saltos’.

            Esse animal aperfeiçoado, portanto, a que chamamos homem, é o produto de uma evolução natural que dos organismos mais elementares, por meio de gradações, faz sair organismos mais elevados.

            Como as outras espécies vegetais e animais, assim também a espécie humana não se fez de um golpe, mas, tal qual a vemos hoje, desprendeu-se lentamente, progressivamente, da animalidade.       

            Sabe-se que a Zoologia delineia o transformismo que tem como corolário inevitável a origem simiesca do homem.

            Muitos se escandalizam de que se queira rebaixar o homem a descendente de um primo do macaco: não se trata de rechaçar o escândalo que não é um raciocínio científico e ao qual, demais, Huxley respondeu, dizendo que preferia ser um macaco nobilizado a ser um homem degradado.

            A falsa vergonha que nos impede de acolher essa tese provém talvez do fato de que o macaco tem gestos cômicos que lhe dão ares de cretino, de caricatura do homem, e não sentiríamos tal vergonha se nos fizessem descender do leão ou da rosa, como não a sentimos (coisa surpreendente!) diante do relato bíblico que faz a nossa espécie descender do barro da terra. Origem bem mais humilhante, dada a enorme distância que separa do limo da terra um ser organizado e uma organização tão elevada como a do macaco. Santo Agostinho mesmo não crê no conto bíblico, porque "crer que Deus, pelas suas próprias mãos, tenha plasmado o primeiro homem com a argila é uma ideia demasiado infantil” (De Genesi VI-12); e em outro lugar (VII-I):

            "Como Deus não plasmou o homem com as suas próprias mãos, nem tão pouco lhe inspirou seu sopro com a sua garganta ou com seus lábios.”

            "Omnes homines de carne nascentes, quid sunt nisi vermes? (Todos os homens que nascem da carne, que mais são senão vermes?) Santo Agostinho – Ivi Joan I-13).

"Que vermes somos não vos está provado,
De que surge a celeste borboleta,
Que incerta voa ao tribunal sagrado?
Porque do orgulho assim passais a meta,
Se sois insetos no embrião somente,
Vermes de formação inda incompleta '!

(DANTE - Purgatório, X-124/129) .

*

            Que o homem seja verme fica dito muitas vezes na Bíblia. Nos monumentos antigos, ao lado da menina alada, a borboleta é o símbolo da alma. Objeta-se que um César, um Kant, um Goethe, um Dante não podem descender de um animal, porque entre eles e o macaco e a espécie intermediária há uma distancia insuperável. Mas essa objeção cai se levarmos em conta, de um lado, os elos intermédios entre o homem macaco e César (o Papuasio, o Neozelandês, o Cafre, etc.), e por outro lado o prodigioso espaço de tempo que foi necessário à natureza, ou, seja, à concorrência e à seleção, para efetuar a sua evolução do homem-macaco a César e Goethe. Na realidade os 6.000 anos de idade que a Bíblia dá ao mundo não teriam bastado. Mas as descobertas paleontológicas do século XIX, por obra de uma plêiade de cientistas que se iniciou com Boucher de Perthes, provam incontestavelmente a remotíssima idade do homem. (1)

            (1) Conhecida a lei da preexistência do Espírito e sua evolução universal, a idade do planeta
carece de importância: porque os gênios que surgiram na superfície da Terra, em qualquer tempo,
podem ser muito mais velhos do que o planeta; já haverem realizado sua evolução em outros mundos. Lembremo-nos das palavras de Jesus: "Em verdade, em verdade vos digo que antes que Abraão existisse eu sou." (João, VIII - 58). A pluralidade das encarnações implica a ideia da pluralidade dos mundos habitados e isso de toda a eternidade. - O Trad.

            No fundo, portanto, não há abismo entre o homem e o animal. Não se pode refutar ao animal nem a sensibilidade, nem a memória, nem a inteligência. Os fatos que o demonstram enchem volumes. O senso moral não lhes é estranho e se no cão é o bastão que o faz nascer, como diz Strauss, não se dá o mesmo também com muitos homens? O animal conhece o amor materno, a fidelidade, a dedicação, entre eles e nós só há uma diferença de grau: sua "alma" em relação à nossa está como o botão em relação à flor e ao fruto.   

            Ora, se Deus deriva uma espécie de outra pela sucessão natural, deve-se admitir que igualmente os mais altos tipos psicológicos, dentro da mesma espécie biológica, não são criados de um golpe, subitamente, mas sim produtos do desenvolvimento natural dos tipos inferiores.

            Temos que concluir, portanto, que o que nos impressiona como gênio ou como santidade, não foi criado de improviso por Deus, sem ligação alguma com as leis da evolução ao contrário, é produto de mui longa evolução, de bem longa série de experiências, de vidas, e, portanto, de fadigas, de tormentos, de dores, de derrotas, de triunfos. A dor é a essência da vida, e a vida é uma evolução ascendente da qual a Perfeição infinita é a um tempo a força impulsiva e a meta suprema.

            Perguntar-se o porquê de ser assim, seria ingênuo. Quando uma ciência passa da simples verificação de um fato à origem do mesmo fato, tem sempre razão de admitir que uma coisa tenha que ser assim, porque não pode ser de outro modo: o que não reclama demonstração.

            Convém, porém, dizer que quantos creem ainda que podem banir Deus do mundo, porque a doutrina da evolução se realizaria sem o Criador, explicando a evolução dos organismos somente pelas leis naturais, laboram em grande erro.

            A existência de leis naturais que assim produzem a evolução reclama um legislador. Que a causa do mundo e da vida seja a Inteligência, a ideia diretriz, é a evolução mesma que no-lo diz: não compreenderíamos a evolução sem a finalidade da natureza. Sem essa ideia diretriz não se poderia compreender porque o mundo progrediu da nebulosa até o cérebro de Dante e de Leonardo, em vez de ficar na inércia e na confusão, nem se poderia explicar a finalidade do organismo, no qual tudo é instrumento de proteção para o homem, nem a regularidade, a finalidade da natureza.

            O mundo é criado por uma Inteligência, visando um fim, e este fim supremo é o Bem.

            O físico nada mais é do que o instrumento do moral, e o mecanismo não é senão o instrumento da finalidade. Se pudéssemos penetrar o fundo das coisas, veríamos o mecanismo confundir-se com a Teleologia.

            Para explicar o mundo, o materialismo tem que postular leis e leis "racionais", ou melhor, logicamente dependentes umas das outras e leis de progresso, isto é, leis com uma finalidade. Não basta que haja os átomos e que eles se movam, é preciso que se movam com regularidade. De fato, tudo é como deve ser: tudo no Universo é geometria. Está claro, portanto, que a causa primária deve ser racional, de outro modo tudo seria confusão e desordem. Se se admite o princípio de casualidade, não se pode deixar de admitir que as leis tenham sua causa e causa que baste a explicá-las. Então, como a experiência até agora não nos sugeriu outra analogia com que se possam explicar as leis, senão com a existência de um legislador, é lícito perguntar: quem é o legislador das leis da Natureza? O cientista? Mas o cientista apenas descobre as leis, não as faz. Confundi-lo com o Autor seria o mesmo que dizer que o leitor faz o livro. Se a natureza é um livro, isto é, um sistema inteligível, isso faz supor um Autor.

            O princípio darwiniano, ao qual o materialismo se apega com tão completa segurança, de fato, está longe de eliminar a hipótese da finalidade e, ao contrário, a corrobora. É mesmo verdade que a luta pela vida, a concorrência vital, seja uma causa primária e exclusivamente mecânica?

            A luta pela vida não supõe, por seu turno, o querer viver, de Schopenhauer, e a vontade ou o esforço, sem o qual, segundo a palavra profunda de Leibniz, não existe substância? Não supõe, portanto, uma causa anterior, superior e imortal? Que pode significar a fórmula: luta pela existência, senão: luta com a finalidade de resistir? Ora, isso nos leva à plena Teleologia. De resto, não se pode negar que a terminologia darwiniana não expresse finalidade; os termos seleção, escolha, separação, evidentemente introduzem na natureza um elemento intelectual.

            Não sem razão, pois, se tem dito que os mais belos exemplos de finalidade não se encontram nos Memoráveis de Sócrates ou nos diálogos de Platão, nem nas obras de Bossuet e Fenelon, porém, nas de Darwin e de Haeckel. E de fato Lamarck e Darwin eram deístas, se bem se dissessem ateus.

            Não sendo, portanto, o Ser vivo a personalidade efêmera das doutrinas materialistas, mas sim uma individualidade indestrutível; não sendo esta individualidade uma nova criação, é evidente que só a pluralidade das suas vidas pode fazer-nos compreender alguma coisa da nossa existência e esclarecer as diferenças evolutivas dos seres; suas desigualdades físicas, morais, intelectuais, etc.; desigualdades que a hereditariedade, a influência do ambiente, como se sabe, não podem explicar.


quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A Reencarnação no Brasil



A Reencarnação no Brasil

                         Ismael Gomes Braga
Reformador (FEB) Junho 1961

            Há no Brasil diversas escolas espiritualistas que ensinam a doutrina reencarnacionista e a propagam. São rosacrucianos, teosofistas, ocultistas de diversos matizes; todos nesse ponto se acham de acordo com os espiritistas, embora em outros pormenores possam divergir do Espiritismo.

            O que não poderíamos conceber, porém, é que houvesse igualmente católicos que preguem com entusiasmo a reencarnação, da qual estão perfeitamente convencidos. É inconcebível essa conciliação, porque a Doutrina Católica nega a reencarnação e ensina o dogma das penas e prêmios eternos depois da morte.

            Tivemos, no entanto, o ensejo de ouvir, na Associação Brasileira de Imprensa, uma longa conferência de uma dama da melhor sociedade carioca, que nos afirmou repetidamente que é católica, mas tem certeza da reencarnação, considerando-a perfeitamente demonstrada.

            Enumerou muitos fatos que realmente são incompreensíveis sem a reencarnação.

            Parece-nos evidente que essa ilustre senhora, ao ensinar a doutrina reencarnacionista, já não é católica, está enganada ao supor-se e dizer-se católica. Já é uma ex-católica; porque lhe seria logicamente impossível crer ao mesmo tempo em duas coisas que se contradizem reciprocamente, que são diametralmente opostas uma à outra: penas eternas e salvação universal.

            Ela já deixou a Igreja, embora continue a tomar parte no culto, a frequentar o templo, a receber sacramentos, a contribuir moral e economicamente para a manutenção de uma Igreja na qual ela não pode mais crer, porque já ousa pensar por sua própria conta, o que é proibido ao católico.

            Outros “católicos” há em situação ainda pior do que essa dama: são os “católicos” materialistas: pessoas que se dizem católicas, mas não creem na sobrevivência da alma ou disso não cogitam.

            Que força apavorante exercem as tradições! Como é forte a nossa inércia mental! Tais pessoas seguem uma tradição supersticiosa velha, já inoperante para elas.

            Felizmente temos uma Providência que cuida sabiamente de nós e nos salva de nossa própria inércia. Chega o dia em que somos despertados pela dor e começamos a série interminável de interrogações tormentosas: porque gozamos e porque sofremos? afinal, que somos? porque somos tão diferentes uns dos outros? porque nosso fado diverge tanto? porque uns vivem pouco e outros longamente? porque há homens que nascem para uma vida de martírio longo, anormais, enfermos, pobres, enquanto outros nascem belos, perfeitos, felizes e morrem em plena juventude? porque os homens são tão diferentes dos outros animais?

            As mínimas coisas da Natureza ocorrem dentro de determinadas leis: a gota d'água que cai da nuvem e pela evaporação volta a ser nuvem, está obedecendo a leis naturais, como o satélite girando em torno de um planeta e o planeta descrevendo seus círculos em volta do Sol. A semente que já foi flor e virá a ser árvore, o pássaro que constrói seu ninho e cuida de sua prole, estão obedecendo a leis naturais que regulam a vida; mas essas leis são complexas: o pássaro se alimenta de sementes e de insetos, interrompendo a vida de outros seres menores do que ele e por seu turno ele serve de alimento a outros animais que lhe são maiores. A vida física se nutre de vida, sempre exercitando qualidades e adquirindo faculdades que não são físicas, são espirituais: inteligência, energia, vontade, etc.

            Se tudo ocorre de acordo com leis sábias da Natureza; se o mínimo ossinho de nosso corpo ou do corpo de um batráquio tem uma função “legal” que lhe foi preestabelecida, é evidente que tudo no Universo obedece ao planejamento de uma Inteligência superior que em tudo se manifesta; logo, também o homem existe, vive e progride executando um planejamento inteligente. E ele goza e sofre seus próprios pensamentos: há pensamentos que lhe despertam sensações agradáveis, eufóricas, e outros que lhe causam sensação de angústia.

            Quanto ao corpo, o homem é uma série complexa de máquinas ou aparelhos sabiamente conjugados uns com os outros em seu funcionamento para manifestar a vida, e esses aparelhos ou máquinas são iguais, ou quase iguais, em todos os homens, demonstrando, porém, evolução através dos tempos, tornando-se sempre mais perfeitos e delicados. Se quanto ao corpo os homens são iguais uns aos outros, coisa completamente diversa ocorre quanto à inteligência e ao sentimento: enquanto uns chegam à culminância do saber e da virtude, outros permanecem analfabetos e insensíveis, e entre esses dois extremos há uma vasta escala de graus de inteligência e virtude.

            Então o homem não é só corpo, é uma inteligência evolutiva que se manifesta pelo corpo e esta inteligência nos demonstra os mais variados graus de progresso moral e intelectual, revela-se um Espírito no caminho evolutivo. Temos, por força dos fatos, que aceitar a velha doutrina reencarnacionista, como já fez a dama “católica” a quem nos referimos no início desta desalinhavada palestra; mas para isso será preciso abandonar velhos erros doutrinários, como é a monstruosa doutrina das penas eternas, que é negação muito grosseira da inteligência e do poder do Criador. A perdição eterna das pobres criaturas de Deus seria um erro de planejamento na Criação.


            Os porquês angustiantes das criaturas humanas as conduzirão à doutrina reencarnacionista de salvação universal, e o Brasil está tomando dianteira nessa pista de corrida evolutiva, graças à vasta divulgação do Espiritismo kardequiano nas terras de Santa Cruz.

'Da burocratização da Mediunidade'



            "Quanto a mim, tenho minhas dúvidas quanto a essa burocratização da mediunidade. Sou dos que pensam que certas coisas, como a mediunidade, não devem ser exercidas comercialmente à base de um certificado renovável, como uma carteira de motorista profissional. A meu ver, o que há de errado aí não é a mediunidade, mas o exercício dela por pessoas que ainda não têm as necessárias qualificações espirituais para tanto. E isso não se resolve com certificados, pois que exatamente aqueles interessados em fraudar e enganar não seriam atingidos pela medida, continuando a praticar a falsa mediunidade."

Hermínio Miranda
Reformador (FEB) Maio 1961

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Manhã de Primavera em Corinto

Paulo - fragmento do século VI


Manhã de
primavera em Corinto

Hermínio C. Miranda
Reformador (FEB) Dezembro 1978

            Respeitáveis razões de natureza politica, que não são de nossa competência apreciar aqui, impedem a óbvia e econômica solução - já que se está, por exemplo, no Cairo - de voar diretamente a Tel-Aviv, em Israel, passando da Terra dos Faraós para a da Bíblia em menos tempo do que tomaria uma viagem Rio - São Paulo. Para contornar o impedimento, o jeito é traçar no tormentoso mapa do Oriente Médio e adjacências um triângulo em que um dos vértices seja, por exemplo, Chipre ou Atenas. Entre essas e outras alternativas, preferimos Atenas. Não - pelo amor de Deus - que a Grécia seja apenas um trampolim geopolítico que nos permite conviver por alguns dias com árabes e judeus alternadamente. A Grécia é um sonho bom, do qual a História ainda não acordou, de todo, e creio que jamais acordará. Porque ali os mais nobres filósofos, estadistas, médicos e historiadores pensaram, para nós, um pouco de todos os grandes problemas do ser e do mundo em que vivemos.

            E assim, nos primeiros dias de maio de 1977, o jato egípcio nos deixa no aeroporto de Atenas, em plena primavera.

            Fascinam-me aqueles belos caracteres da língua que falou Aristóteles. Embora sem entender muito do que dizem, encontro aqui e ali palavras familiares - como "taripha", escrita, naturalmente, no taxímetro do carro que me leva ao hotel.

            Ainda naquela tarde perambulamos pela cidade limpa e civilizada, como convém aos herdeiros políticos de Péricles. No dia seguinte, rumo à Acrópole e ao museu. Busco, porém, em todo o esplendor daquelas ruínas, além dos marcos de uma época extinta, a presença do Apóstolo Paulo, aliás, uma grande presença em Atenas. Lá está o "Poço de S. Paulo", ao pé da Acrópole. Também tem o seu nome a moderna avenida que passa pouco adiante. O padroeiro católico da cidade é S. Dionísio, que, como sabemos, foi praticamente o único ateniense, além de Dâmaris, que ouviu Paulo com respeito e atenção. Ali está o Areópago, onde ele falou do Deus Desconhecido. Imagino-o, magro e ascético, vestido de uma túnica pobre, as sandálias rotas, a passear o olhar incendiado e o coração algo desencantado por aqueles mármores brancos e puros convertidos em estátuas, monumentos e edifícios. Tanto fausto e beleza física e tanta especulação vã naqueles cérebros privilegiados e "blasés"...

            Emmanuel (in "Paulo e Estêvão") nos dá conta da amarga decepção que o valoroso trabalhador do Cristo experimentou ali, onde a semente generosa parece ter caído sobre aqueles mármores tão belos quão frios, e a não ser uma ou outra que alcançou uma frincha rumo ao solo, como no caso de Dionísio, no solo mesmo feneceu a maior parte. A Inteligência de muitos era farta, mas estava sem luz o coração, talvez porque fossem felizes demais como criaturas humanas, saudáveis e folgazãs. Será que lhes faltava um pouco que fosse de dor? Não sei. Talvez, porque a doutrina da renúncia e do amor, que não medrou na Grécia luminosa e feliz, germinou e explodiu em luzes nas profundezas das catacumbas romanas, que ainda há pouco também visitara.

            Minha ideia fixa, no entanto, era ver Corinto, e quase entro em pânico quando me informam que o 1º de Maio, feriado nacional também lá, caindo num domingo, nos deixaria na segunda-feira sem guias, sem transporte, sem restaurantes, sem nada. Como seria a sonhada viagem a Corinto, se na quarta-feira, dia 4, partiria para Telaviv? Tentei arranjar alguém que, pelo menos, fosse comigo de ônibus e me mostrasse: ali é Corinto, mas fui logo dissuadido pelo inflexível gerente do hotel informando-me que o sindicato dos guias não permitiria fosse a séria profissão exercida amadoristicamente. Ofereceram-me, alternativamente, uma viagem pelas ilhas, pois os navios, ao que parece, não ligavam muito para essa questão de feriados. Mas eu queria mesmo Corinto. E para encurtar uma longa história, dia 3, pela manhã, uma belíssima manhã grega e primaveril, o ônibus da empresa de turismo nos deixava, à beira da estrada, em frente às ruínas da velha Corinto. Ali estava ela, afinal!

            Para o turista desatento seria apenas um monte desarrumado de pedras, onde aparece, aqui e ali, o esboço de um templo, o traçado de uma rua ou os alicerces de algumas casas. A custo consigo conter as emoções que me sacodem, pois identifico as cenas iniciais de "Paulo e Estevão"; quando Emmanuel descreve a covarde agressão sofrida pelo velho Jochedeb ben Jared, pai de Abigail e Jeziel, o futuro Estêvão. Por ali andou o Apóstolo dos Gentios e mais Timóteo, Lucas, Silas, Áquila e Prisca. Chegou a ser, a famosa cidade, um dos mais importantes centros de cultivo e irradiação do Cristianismo nascente. Nela, Paulo escreveu, pregou, ensinou, curou. E ausente, mais tarde, para os adeptos que nela operavam escreveria duas das suas grandes Cartas, inclusive para disciplinar melhor o exercício da mediunidade que começava a transviar-se e para combater dissensões que surgiam e ameaçavam erigir-se em seitas: a de Paulo, a de Pedro, a de Apolo...

            Desligo-me do grupo de turistas, para melhor sentir Corinto na sua intimidade, procurando recapturar os ecos distantes das emoções que em seu seio foram vividas e sofridas. Por toda parte aquele verde absurdo do mato rasteiro salpicado de florezinhas amarelas e discretamente perfumadas, que o guia ainda há pouco dizia serem camomilas. O campo estende-se além das ruínas e atrás de uma construção moderna, mais ao longe, ergue-se, imponente, a grande altura, o monte Acrocorinto. Lá em cima - não há tempo para subir -, naqueles tempos idos, fervilhava de gente, pois o culto da deusa descera ao nível mais baixo, quando a prostituição exercida - dizem - por mais de mil mulheres era ao mesmo tempo ritual religioso e fonte de renda.

            A manhã é clara e fresca, luminosa e perfumada; e aquelas pedras falam. Ainda lá está a plataforma de onde não apenas Paulo, mas qualquer orador se dirigia ao público que se movimentava na praça fronteira. Seria a praça que o pai de Estêvão atravessava quando foi agredido? Parece que sim, pois as ruínas em volta lembram os modernos "boxes" de certos mercados: pequeninas construções onde artesãos e agricultores ofereciam seus produtos ao público. Tenho de subir à bema (palavra grega para degrau, assento, tribuna, púlpito, trono), uma espécie de sacada ou patamar protegido noutro tempo por colunatas; resta agora apenas uma parte do piso, por onde caminho em extrema agitação emocional. Lá em cima, numa pedra tombada, está escrito em grego e em inglês o versículo 17, do capítulo 4, da Segunda Epístola, em que Paulo nos lembra que pouco importa a pequena tribulação do momento, quando nos aguarda a glória futura da paz:

            - Com efeito, a leve tribulação de um momento nos produz, sobre toda a medida, um enorme caudal de glória eterna.

            Daqui - penso eu - falou Paulo, de pé sobre estas pedras, os olhos postos naquela praça onde eram muitos os que passavam sem lhe dar ouvidos, enquanto outros ouviam-no, mas sem compreender direito qual era a sua mensagem.

            Viera do desencanto de Atenas. Lucas, em Atos (18:1), nos fala da sua chegada a Corinto, onde encontrou Áquila e Prisca que, como tantos, haviam sido expulsos de Roma, ante as perseguições desencadeadas pelo Imperador Claudius. Emmanuel nos enriqueceu generosamente, com o conhecimento de inúmeros outros pormenores importantes, ao relatar um pouco da comovente história desse casal que tão cedo dedicou-se ao trabalho devotado na seara de Jesus.

            Já vinham eles de perseguições outras, desde a primeira hora, quando o próprio Paulo as iniciara na velha Palestina. Foram companheiros do futuro Apóstolo nos "anos ocultos" no deserto de Dan. Sonhavam os mesmos sonhos e entregavam suas vidas pelos mesmos ideais.

            Mas como seria Corinto?

*

            Antes de apanhar o ônibus que nos levaria ainda a Epidauros, adquiro alguns "slides" e um interessante livrinho em inglês, do erudito Otto Meinardus, que, como ministro da Igreja Americana de S. André, em Atenas, pesquisou e escreveu seu valioso estudo sob o título "St. Paul in Greece" ("S. Paulo na Grécia", edição Lycabettus Press, 1972, Atenas).

            Meinardus não dispõe, evidentemente, das informações que Emmanuel nos trouxe, e por isso seu livro apresenta algumas lacunas e falhas, mas sua obra é honesta e tão rica quanto possível ante a exiguidade dos fatos disponíveis e a despeito da abundância de material especulativo. Diz ele haver nada menos que 84 livros e um número incalculável de artigos sobre Paulo. Muitos desses títulos ele cita como fontes de consulta no final de seu trabalho.

            Corinto era uma cidade cosmopolita de costumes extremamente corrompidos, como nos assegura Renan ("S. Paulo" - Série "Origens do Cristianismo", edição Lello, Porto).

            Era capital romana da província da Grécia, então chamada Acaia. Graças à facilidade de comunicação, tanto com a capital do Império quanto com o Ocidente, Corinto era importante ponto estratégico para divulgação das ideias cristãs. Havia lá considerável número de judeus, muitos dos quais fugiam das perseguições de Claudius. Aliás, havia muitos judeus na Grécia. Tinham mesmo uma sinagoga em Atenas e outra em Argos, segundo nos assegura Philon, mas a maior delas era mesmo a de Corinto.

            É importante observar, neste ponto, que a cidade estava predestinada à missão de criar e desenvolver influente e dinâmico núcleo cristão, pois quando, num momento de passageira depressão, Paulo parece algo desencantado com as possibilidades e perspectivas do Cristianismo na Grécia, o próprio Cristo lhe transmite uma palavra inequívoca de estímulo, como documentam os Atos (18:9 e 10):

            - Não temas! - disse-lhe o Mestre, numa visão - Continua a pregar e não te cales, porque estou contigo e ninguém te porá a mão para fazer-te mal, pois tenho um povo numeroso nesta cidade.

            Que significaria isto, senão que haviam sido reunidos, naquele ponto, muitos que traziam na sua programação espiritual o compromisso de prepararem-se para as tarefas da consolidação do Cristianismo nascente?

            Segundo Meinardus, Corinto era bastante diferente de Atenas, no sentido de que não era uma cidade provinciana grega, mas a capital de uma província romana, o que fazia enorme diferença. Sua localização geográfica lhe assegurava condição privilegiada para transações comerciais internacionais. Depois de destruída por Lucius Mummius, em 146 a. C., foi reconstruída por Júlio César em 44, tornando-se conhecida então como Laus Julia Corinthiensis, onde gregos, judeus e orientais se misturavam com os romanos colonialistas. É fácil, pois, imaginar como em seu perímetro circulavam aventureiros de toda a sorte e dinheiros de muitas nações.

            - A viagem a Corinto - dizia um provérbio da época, colhido por Estrabão de Amasia - não é para qualquer homem.

            Muitos, pois, eram os que se perdiam nos desatinos que nela se praticavam, o que Paulo deixa claramente expresso no longo trecho da Primeira Epístola, versículos 9 a 20, do capítulo 6, e na Segunda, capítulo 12, versículos 20 e 21, que termina assim:

            - Temo que em minha próxima visita o Senhor me humilhe por vossa causa e tenha de chorar por muitos que anteriormente hajam pecado e não tenham feito penitência por seus atos de impureza, fornicação e libertinagem.

            Ao restaurar a cidade em 44, os romanos levaram para lá seus deuses. E para eles construíram templos imponentes, como o de Apoio, o qual, ainda nos tempos de Paulo, segundo Meinardus, seria um dos monumentos marcantes do local.

            A cidade controlava a rota marítima que passa pelo estreito istmo que liga a Grécia Central à do Sul: o porto de Lecaion, no Golfo de Corinto, de um lado, e o de Cencréia, no mar Egeu, do outro. O atento leitor de Emmanuel há de lembrar-se que para Cencréia fugiu Abigail, quando o seu mundo doméstico desmoronou com a morte do pai e a escravização de Jeziel, seu irmão.

            No tempo de Paulo, os navios eram retirados da água e arrastados por terra sobre roletes de madeira ou sobre enormes carretas. Tanto Alexandre, o Grande, como Júlio César (aliás, o mesmo Espirito em diferentes encarnações) e ainda Calígula, pensaram em rasgar o utilíssimo canal que somente no século XIX foi possivel construir, sendo ultimamente ampliado, creio que com novo traçado às condições da moderna tecnologia das comunicações, pois levaram-nos a ve-lo.

            Renan informa que, depois de arrasada por Mummius, Corinto ficou um deserto durante cem anos, e assim continuou até à reconstrução; e que o seu repovoamento trouxe tanta gente, e tão heterogênea, que os coríntios "permaneceram durante muito tempo estranhos à Grécia, que os olhava como intrusos". Os espetáculos públicos, ainda no dizer de Renan, eram os jogos brutais dos romanos, em lugar do elegante atletismo da tradição cultural grega. Era, pois, uma cidade internacional, rica, movimentada, brilhante, nada típica da civilização grega, na qual se incrustara.

            - O traço dominante e que tornou o seu nome proverbial - escreve Renan - era a extrema corrupção de costumes.            

            Isso contrastava fortemente com os hábitos simples e joviais das demais cidades helênicas, e Paulo, portanto, precisou enfrentar dificuldades consideráveis para manter o núcleo cristão de Corinto ao abrigo da perniciosa influência daquela devassidão, transformada em ritual religioso e favorecida por desmedida tolerância.

            Quanto aos muitos judeus então existentes, não poucos traziam já de Roma suas preferências pelo Cristianismo, tanto que Suetônio, na sua "Vida de Claudius", escreve famosa passagem dizendo que "sob a instigação de certo Crestos se estavam tornando cada vez mais turbulentos" e acabaram sendo banidos de Roma. Acrescenta Meinardus, citado por Paulo Orósio,  historiador espanhol do século V, que a expulsão verificou-se no ano nono do reinado de Claudius, isto é, entre janeiro de 49 e janeiro de 50. Esses, por certo, compunham aquele grupo que o Cristo confiou ao ministério apostólico de Paulo, estimulando-o a que prosseguisse destemidamente na pregação àquela sua gente reunida .providencialmente pelas contingências da vida.




            O autor de "St. Paul in Greece" situa nesse período a chegada de Áquila e Prisca a Corinto.

            Paulo ficaria Já durante um ano e meio, e seus incansáveis pés devem ter percorrido muitos e muitos quilômetros pelas redondezas. Mesmo hoje, por estradas asfaltadas, em ônibus velozes, a viagem de Atenas a Corinto é longa. Vejo o Apóstolo a caminhar por aquelas áridas e desoladas paragens em busca do coração e da inteligência dos gregos... Seria, por certo, uma figura esquálida e maltratada, sustentada apenas pelo ideal que mantinha acesa a chama sagrada da sua vontade férrea de servir ao Cristo, segundo o compromisso que assumira quando ainda emborcado na areia de Damasco, anos antes.

            Roland Baiton, autor de "Here I Stand", escreveu que, perguntado, certa vez, sobre a aparência que a seu ver teria o Apóstolo, respondeu Lutero com um riso afetuoso:

            - Acho que ele se parecia com um camarão magricela, assim como Melanchthon.

            Daniel Rops estima que Paulo haja percorrido cerca de 20.000 quilômetros em 13 anos. E ele não sabe da viagem à Espanha, que Emmanuel nos assegura! (Ver, a respeito, "A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires", Rops, Livraria Tavares Martins, Porto, 1960)

            Dois ingleses ilustres - Malcolm Muggeridge e Alec Vidler -, que decidiram refazer todo o percurso de Paulo pelo mundo a fora, ficaram impressionados com a tremenda resistência física e moral do valente servidor do Cristo. O livro deles, muito dialogado, é leitura fascinante. Chama-se "Paul, Envoy Extraordinary" (edição Collins, Londres, 1972). E, bem entendido, fizeram as conexões por avião, ônibus, automóvel ou trem.

            Foi em Corinto que se deu o, curioso julgamento de Paulo pelo Proconsul Gálio, irmão de Sêneca, o famoso filósofo romano (nascido, aliás, em Córdova, na Espanha). Conta Emmanuel que Gálio ouviu os acusadores com um ouvido só, reservando o outro, que mantinha tampado com um dedo, para a defesa. O sábio Proconsul não via crime algum no Apóstolo e a sentença foi tão bem recebida que o povo deu uma surra em Sóstenes, o acusador, à vista do próprio juiz, enquanto alguém de coração generoso recolheu Paulo para dar-lhe proteção, depois de ter este interferido a favor do adversário.

            Sem decidir a questão, Meinardus informa que o julgamento de Paulo pode ter sido realizado junto à famosa bema, que até hoje se acha defronte a ágora, como testemunha silenciosa e venerável de muitos séculos de sublimes renúncias, de atrocidades e vandalismos inomináveis. Há quem creia, porém, que o julgamento possa ter ocorrido num dos templos locais.

            Paulo nunca mais se esqueceria dos seus amados coríntios. Visitou-os novamente mais tarde e para eles escreveu duas das suas mais notáveis epístolas. O ensaio sobre a Caridade, constante do capitulo 13 da Primeira, é, na opinião de Muggeridge, "uma das mais encantadoras e maravilhosas coisas jamais escritas".

            - Diria mesmo - prossegue ele, adiante, no seu diálogo com Vidler - que esta é uma das mais sublimes expressões de Paulo. Não acho que ele tenha jamais alcançado ponto tão elevado quanto este.

            Emmanuel nos diz que o guia espiritual de Paulo era Estevão, incumbido da missão pelo próprio Jesus. Embora Paulo, com a potência de seu gênio, pudesse perfeitamente ter produzido tão elevada manifestação do pensamento, não seria desdouro para ele acreditar que não era estranha a esse valiosíssimo documento a inspiração da antiga vítima, designada como seu guia.

            Comentando a admiração de Muggeridge, Vidler declara não acreditar que Paulo tenha escrito tanto de um só impulso, ditando tudo no calor do momento; ao contrário, deve ter meditado maduramente sobre o texto sublime. Na verdade, porém, a inspiração me diúnica tem dessas coisas, que saem perfeitas, a despeito de aparente improvisação. -

            Seja como for, Corinto foi, sob muitos aspectos, um teste para o Cristianismo nascente, Nela a doutrina de Jesus confrontava o pensamento greco-romano, o entrechoque de muitas correntes exóticas que para a sua área convergiam, a mistura de raças, crenças e descrenças, o politeísmo, o ateísmo e a ortodoxia judaica. Tornou possível demonstrar que, mesmo vivendo em meio à corrupção a mais desenfreada, os verdadeiros cristãos podem sustentar-se na fé e na prática das simples, mas austeras virtudes da ética do Evangelho do Cristo. Em Corinto se praticou a mediunidade a serviço de Jesus e lá verificou-se que a mediunidade também pode transviar-se, como os homens, ao embalo de paixões mal controladas.

            Era por tudo isso que eu desejava tanto ver Corinto, antiga principal cidade da Acaia, e assim se explicam as fundas emoções que pude viver, enquanto à minha volta muitos turistas viam apenas umas pedras envelhecidas e desarrumadas na luminosa e idílica paisagem daquela primavera grega.


            Justo onde pisaram os pés daqueles desbravadores dos caminhos da luz, curvei-me para colher raminhos humildes de camomila perfumada, porque assim podia disfarçar melhor as lágrimas, que não desejava conter...