Bilhetes
por G. Mirim (Antônio Wantuil)
Reformador
(FEB) Junho 1946
Saltando do bonde que tomara, sem
mesmo lhe ter visto a placa, eis que me encontrei num grande jardim, situado à
frente do internato do Colégio Pedro II. Sentei-me. Silêncio profundo em torno,
somente interrompido de hora em hora pelo rolar dos bondes que passavam.
Contemplava com saudades o antigo
edifício outrora frequentado pelo magnânimo imperador, sentindo que espectros
entravam no casarão e dele saíam, lembrando-me os bons tempos em que ali se
abrigaram as esperanças de inesquecíveis amigos que se foram, quando, ao meu
lado, percebi que alguém silenciosamente se colocara.
Depois, como me voltasse para o
estranho, surpreso de sua companhia, ele, compreendendo-me a atitude e como que
lendo o meu pensamento, convidou-me amavelmente para darmos uma volta, à
procura de sossego para o espírito conturbado.
À proporção que caminhávamos, o
velho me expunha os seus conhecimentos filosóficos a respeito da vida. As
árvores lhe falavam, e com ele palestravam, mais ou menos nestes termos:
- "Sou o encanto do jardim, Todos me admiram a elegância.
As crianças me olham respeitosas, vendo-me o porte ereto e a altura que se dirige
à amplidão dos céus. Sou a princesa do jardim. Ninguém vem ou passa por aqui,
sem contemplar-me a beleza. Ainda ontem, ao meu pé, os homens se reuniram em
festa, ao som dos seus pandeiros, em louca e bacântica (orgíaca) alegria."
Caminhamos um pouco mais e chegamos
a uma copada mangueira de seus dez anos. Tristes como nos achávamos,
dirigiu-lhe meu companheiro a sua saudação mental, ao que ela correspondeu com
essas palavras:
“- Agradeço-te, meu amigo, a visita
que te não esqueces de fazer-me e súplice, agora, é o meu agradecimento porque
me apresentas um novo companheiro de existência sofredora, um trabalhador, como
eu, que também padece a ingratidão dos homens.”
E dirigindo-se a mim, continuou:
“- Aqui viveria abandonada, meu novo
amigo, se a proteção divina não me apresentasse os quadros do futuro que me
animam a prosseguir no meu trabalho silencioso de penetrar fundo pela terra,
durante meses e meses, sozinha e esquecida, à cata dos elementos que me
auxiliam a oferecer às criaturas humanas os frutos adocicados pelo meu amor à Humanidade.
Nessa época, porém, só à noite tenho sossego e paro de chorar, substituindo as
dores que me feriram, pelas reflexões que me vêm do Alto. Durante o dia, quando
me veem, as crianças me atiram pedras, magoando os galhos e as folhas que me
fornecem o ar, até que, acertando nos frutos que lhes reservei, abandonam-nos no
chão, de onde são levados à carroça do lixeiro que passa. Porque não os deixam
para os passarinhos? Porque me ferem assim?"
A voz da velha mangueira se entrecortava de soluços. Os
sons já se lhe articulavam com dificuldade, o quadro era comovente. Meu
companheiro, porém, falou à angustiada mangueira:
- Irmã, o Cristo também deu frutos e
recebeu pedradas. Sua vida foi como a tua. Séculos e séculos trabalhou para que
pudesse vivificar os mortos que se encontravam nas sinagogas, e, mais sofredor
do que tu, minha irmã, os homens lhe destruíram o próprio ser visível e
tangível. É por isso, talvez, que até hoje ouvimos a advertência: Ninguém atira pedras em árvores que não dão
frutos.
Assim falou o velho. E enquanto lhe ouvia a voz, a
árvore se calava, resignada, e eu, de fronte curvada, ao peso dos meus
remorsos, em prece me dirigia aos Céus.
Parou a voz do companheiro. Olhei ao
derredor. Ninguém estava ao meu lado. O velho desaparecera e a madrugada raiava.
Voltava o barulho e a confusão. A cidade despertava para a morte de todos os
dias, para a ambição, para o egoísmo, para a maldade de sempre.
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