A Ressurreição
de Cristo
A
Redação
Reformador (FEB) 31 Março
1907
Jesus anunciara antecipadamente aos seus discípulos o que
com ele havia de suceder, confirmando ao demais o que a seu respeito se achava contido
nas Escrituras: que “importava que o Filho do homem fosse levantado, (para
designar de que morte havia de morrer) (1);” que o “Filho do homem seria entregue
para ser crucificado (2);” que, porém, ressurgiria dos mortos, e “depois que ressurgisse,
iria adiante deles para a Galileia (3).”
Entretanto, ou porque o seu entendimento de homens ainda
se não achasse aberto para a penetração do sentido espiritual das palavras do Mestre,
como aconteceu depois do Pentecoste, em que pela portentosa manifestação espírita
que então se deu (4) foram confirmadas em suas diferentes e respectivas mediunidades;
ou porque, à força de o verem realizar prodígios e escapar sempre à desordenada
sanha do que contra ele mais de uma vez haviam investido, tentando prendê-lo ou
lança-lo abaixo do monte, acabassem por acreditar invulnerável e intangível a
pessoa do idolatrado Mestre, o certo é que, quando o o viram cair inerme e sem
defesa nas mãos dos quadrilheiros, dir-se-ia que uma súbita desilusão daquele
prestígio, que tanto os fascinara, lhes invadira a mente, e um insopitável
terror se lhes apoderou o coração.
(1) João, XII, 32 e 33
(2} Mateus, XXVI, 2
(3) Idem, XXVI, 32
(4) Atos dos Apóstolos, II, 1 a 4
Daí a fuga e o abandono, “a dispersão das ovelhas” e a dolorosa
peregrinação do Pastor, de tribunal em tribunal, até ser, pela pusilanimidade de
Pilatos entregue aos furores da turba, insuflada pelos príncipes dos sacerdotes
e os fariseus, para a ignominiosa suspensão no alto madeiro, que ao contato do
seu corpo angélico se deveria de então em diante transformar em símbolo e penhor
de redenção.
E foi preciso que
um ilustre e rico senador, dispondo desse duplo prestígio da posição e da
fortuna, se atrevesse a afrontar a atmosfera de hostilidades que se fizera em
torno do Crucificado, até mesmo depois da consumação do sacrifício, para que o seu
próprio corpo inanimado não fosse abandonado aos derradeiros desabafos do ódio
impenitente. Somente, pois, José de Arimatéia, “que também esperava o reino de
Deus,” como discípulo de Jesus, posto que apenas o fosse ocultamente, por uns restos
de respeito humano que o retinham, teve a coragem de reclamar de Pilatos os despojos
do Salvador, dando-lhe piedosa sepultura no coração da rocha, que fizera abrir,
em meio do horto que possuía próximo ao calvário.
E ali ficaram eles – os preciosos despojos – sob a pesada
lousa, que o rancor vigilante dos algozes ainda obteve de Pilatos a permissão de
fazer guardar pelos pretorianos, tendo tido o prévio cuidado de colocar-lhe
selos, para assegurar melhor a inviolabilidade da sepultura.
Mas – refere a Escritura:
“No primeiro dia da
semana veio Maria Madalena ao sepulcro de manhã, fazendo ainda escuro: e viu
que a campa estava tirada do sepulcro.
Correu,
pois, e foi ter com Simão Pedro e com o outro discípulo a quem Jesus amava e disse-lhes:
Levaram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde o puseram.
Saiu
então Pedro e aquele outro discípulo e foram ao sepulcro.
Ora
eles corriam ambos juntos, mas aquele outro discípulo correu mais do que Pedro,
e levando-lhe a dianteira chegou primeiro ao sepulcro.
E
tendo-se abaixado, viu os lençóis postos no chão, mas todavia não entrou.
Chegou,
pois, Simão Pedro que o seguia e entrou no sepulcro e viu postos no chão os
lençóis e o lenço que estivera sobre a cabeça de Jesus, o qual não estava com
os lençóis, mas estava dobrado num lugar a parte.
Então,
pois, entrou também aquele discípulo que havia chegado primeiro ao sepulcro, e
viu e creu.
Porque
ainda não entendiam a Escritura: que importava que ele ressuscitasse dentre os mortos.
E
voltaram os discípulos outra vez para sua casa.” (João, XX, 1 a 10)
Prossegue o evangelista narrando, ato contínuo, a primeira
aparição do Cristo ressuscitado a Maria Madalena, e outra em seguida, na tarde desse
mesmo dia, aos discípulos que se achavam a portas fechadas, “por medo que
tinham dos judeus” e uma terceira aparição, oito dias depois, nas mesmas condições,
aos discípulos, para confundir a incredulidade de Tomé, a quem consentiu que
examinasse com o dedo os orifícios dos cravos em suas mãos e o lançaço que lhe
produzira no lado o soldado romano; ainda outra aparição à borda do mar de Tiberíades,
etc. Os demais evangelistas referem ainda outras aparições de natureza semelhante
que não se acham contudo mencionadas no quarto evangelho, de cuja omissão se
faz cargo o próprio autor, afirmando que “outros muitos prodígios ainda fez Jesus
em presença de seus discípulos, os quais não foram escritos neste livro.”(XX,
30).
***
A ressurreição do Cristo, coroamento lógico de sua missão
e de seus ensinos imortalistas, pode ser encarada como fato histórico e no
ponto de vista do ensinamento do ensinamento moral ou religioso que contém. Seja-nos lícito examina-la em cada um desses
aspectos, hoje que por toda a parte comemora a cristandade.
Como fato histórico, ela tem permanecido sem contestação
digna de crédito, a menos que se queira atribuir a umas vagas insinuações
forjadas, até aos nossos dias, pelos adversários do Cristianismo, que de resto
nunca chegaram a documentar com provas o seu desmentido.
É certo que a história não atesta positivamente; antes,
em sua incapacidade de a apreciar com os elementos puramente terrenos de que dispõe,
limita-se a opor-lhe umas tímidas reticências. É assim que no compêndio universal
de César Cantu, de que pelo seu caráter popular, facilmente acessível, preferimos
socorrer-nos, encontra-se esta referência:
No domingo, porém, Maria de Magdala e as outras mulheres
foram de madrugada ao jazigo. Viram com assombro que a pedra que tapava a entrada
da gruta havia sido deslocada. Entraram: o corpo havia desaparecido! Foram
contar o estranho caso, a pequena comunidade galileana soltou um grito
uníssono: Ressuscitou! E a crença na ressurreição de Jesus radicou-se no
coração dos que o haviam amado em vida, para ser transmitida à Igreja cristã
como um dogma.
“Jesus ressuscitado
pertence à religião, não à história. A história deixa-o no túmulo, porque os
seus olhos profanos só podem ver nele a natureza humana; porque a razão, que a
guia, não invade os domínios da fé.(1)”
(1) C. Cantu, Historia Universal, vol. V, págs. 106
Ao que podemos, por nossa parte, objetar que, tendo chegado
a época da fé raciocinada, em substituição da fé passiva e cega, esses domínios
deixaram de lhe ser inacessíveis, Hoje acreditamos no que é sancionado pela razão,
e só acreditamos naquilo que nos seja demonstrado, quer pelos fatos quer pelos
dados da análise do raciocínio.
Ora, a ressurreição do Divino Mestre é um fruto universalmente
aceito pelos adeptos da Revelação moderna, não como um artigo de fé imposto, à fortiori, mas como o resultado de seus
conhecimentos da fenomenologia espírita. Nem todos, contudo, entendem do mesmo
modo. Uns, com efeito, acreditam que Jesus ressuscitou com o mesmo corpo que revestira
durante a sua passagem pela Terra e que, composto de fluidos sutis, compatíveis
com a pureza perfeita e imaculada, apenas condensados para dar-lhe a aparência
corpórea, similar à das materializações espíritas, não sofrera decomposição e
por isso não deixara vestígios no túmulo abandonado. Outros entendem que o
Cristo apenas ressurgiu com o seu corpo astral, fluídico, ou perispirítico, e com
ele se mostrou aos seus discípulos.
Esses porém, não conseguem resolver as múltiplas dificuldades
que se apresentam para explicar os atos propriamente de vida de relação
praticados pelo Divino Mestre nos dias subsequentes à ressurreição, aos olhos pasmos
dos discípulos – para já não falarmos de outros fatos enigmáticos ocorridos
durante a sua vida, inexplicáveis a não admitir-se uma corporeidade especial
para o Enviado do céu.
Antes de passar adiante, seja-nos lícito fazer aqui uma
ressalva: trazendo mais uma vez para estas colunas a análise deste ponto, nem
de leve nos passa pela mente a ideia, de que Deus nos livre, criminosa que seria,
de fazer da personalidade de Jesus um motivo de separação ou de discórdia entre
os espíritas.
Sem dúvida – e neste ponto felizmente estamos todos de acordo
- o que acima de tudo nos interessa na história e na vida do meigo Nazareno são
os seus ensinos morais e os seus atos de amor e humildade; porque de observar
aqueles e imitar estes dependem nosso adiantamento nesta vida e a nossa
felicidade espiritual na outra.
Isso, porém, não exclui o interesse que nos devem despertar
todas as circunstâncias de que se revestiu aquela vida incomparável. Se nos agrada
e convém a doutrina, porque nos não há de interessar também a pessoa do seu instituidor?
Encarando-a, pois,
no ponto de vista sob que nela faz conhecer a Revelação da Revelação,
defendemo-nos vivamente da ideia de criar um partido ou originar um cisma e não
pretendemos de modo algum impor a quem quer que seja o nosso modo de ver. O que
pedimos aos que não pensam como nos é que, não somente não nos queiram mal por
isso, mas que esclareçam e dissipem o nosso erro, dando-nos com a indispensável
clareza uma explicação satisfatória, quer dos atos maravilhosos praticados por Jesus
durante a vida, como o súbito desaparecimento das mãos dos que o haviam agarrado
para lança-lo monte abaixo, o trajeto sobre as águas, a transfiguração do
Tabor, o sentido, em relação a ele, das palavras sobre João Batista, como o maior
“dentre os nascidos de mulher,” etc., etc. quer do atos posteriores à ressurreição
a começar pelo desaparecimento do seu corpo do sepulcro, o que não pode ser atribuído
a uma sonegação praticada pelos discípulos; primeiro porque se achavam eles ocultos
e amedrontados; e segundo porque os judeus vigilantes teriam desmascarado essa
burla, caso tivessem tido a coragem de leva-la a efeito.
São estas dificuldades - e aqui retomamos o fio
interrompido pela digressão - que não resolvem os nossos irmãos em crença adversos
a admitir no Cristo uma corporeidade peculiar à sua natureza, ao grau de sua perfeição.
Porque, a menos que
se queira adotar um duplo arbitrário critério analítico das Evangelhos – um para
adotar as doutrinas outro para impugnar os fatos – aceitando-se, pois, como verídica
a palavra dos evangelistas, vemos que Jesus praticou, depois da ressureição, atos
idênticos aos que antes praticara:
Caminhou ao lado de dois discípulos que se dirigiam a Emaús,
sentou-se com eles à mesa e, tendo-se feito por eles reconhecer ao partir do
pão, desapareceu subitamente (1); apresentou-se logo depois em Jerusalém, entre
os onze apóstolos reunidos e, para testemunhar-lhes a mesma corporeidade de sempre,
os advertiu: “Olhai para as minhas
mãos e pés porque sou eu mesmo; apalpai, e vede que um espírito não tem carne nem
ossos como vos vedes que eu tenho.” E como eles ainda se mostrassem hesitantes,
comeu e provou à sua vista da posta de peixe e do favo de mel que eles lhe
apresentaram (2).
A esses fatos ainda se podem acrescentar os que se acham
no capítulo XXI do Evangelho de João.
Do seu exame o que
resulta é que o corpo com que Jesus se apresentou aos seus discípulos depois da
ressurreição, reatando a série dos prodígios, é o mesmo com que antes os havia produzido,
o mesmo ainda com que elevou-se nos ares, ou aos céus, na Ascenção,
desaparecendo às suas vistas.
(1) Lucas, XXIV, 15
a 34.
(2) Lucas, XXIV, 33 a 43. Quanto à ingestão do
alimento, o que se deu - é claro – é claro – foi uma dispersão dos seus elementos,
operada por eles.
Ora, teria Jesus remontado às altas regiões, de que baixara,
com um corpo de matéria corruptível? – Assim o acreditaram, em sua simplicidade
e limitado conhecimentos, muitos dos seus primeiros continuadores e discípulos.
Hoje, porém, graças aos esclarecimentos que já possuímos, esse fato da ascensão,
como os acima assinalados, só pode ser admitido como a derradeira manifestação
espírita daquele que, puro espírito, da matéria grosseira, tal como a conhecemos
e sentimos em nós mesmos, não poderia suportar o esquálido contato. Com ele só
era compatível a condensação de fluidos etéreos que bastassem à 'corporeidade necessária
aos fins de sua missão messiânica na terra.
***
No ponto de vista moral, ou religioso, a ressurreição é o
remate glorioso e indispensável das doutrinas imortalistas que Jesus, das quais
foi, por assim dizer, a comprovação documental. Sem ela, a fé dos seus continuadores
e discípulos teria faltado o elemento vivo que a fez subir às culminâncias do
assombro e do delírio.
Certos, porque tinham visto, de que ressuscitariam, como ressuscitara
o Mestre, não houve fadigas a que não expusessem, nem perigo que não arrostassem,
para pregar à face do mundo as doutrinas de redenção e vida eterna de que se
haviam constituído portadores.
Considerando hoje, a vinte séculos de distância, aquele fato
e essas doutrinas, podemos também compreender que ele encerra ainda uma alta significação
espiritual. Corporificação viva dos ensinos que trouxera ao mundo, para a
regeneração de sua humanidade, o Cristo ressurgido vale pela afirmação de que a
coligação dos ódios e dos interesses subalternos pode por alguns instantes obscurecer
o brilho da verdade e aparentar sobre ela um efêmero triunfo. Mas, como a Verdade,
que é de Deus, é invencível, esse breve eclipse não terá servido senão para faze-la
fulgurar de novo, com duplicada intensidade.
Na ressurreição do Cristo, vemos o triunfo da Verdade sobre
o erro, do Bem sobre o mal, da inocência sobre o crime. Despedaçando a lousa que
por um momento o sepultara, emergindo de novo com a fronte aureolada pelas claridades
do céu, Jesus é ainda e sempre para nós um símbolo e um modelo.
Veneremos esse símbolo e, copiando esse modelo, mostremo-nos
dignos da herança de Bem, de luz e de Verdade que nos legou o seu amor inimitável.
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