O
Pão e o Vinho
Pedro de Camargo (Vinícius)
Reformador (FEB) Fevereiro
1929
“E Jesus partiu o
pão e, distribuindo as seus discípulos, disse: “Tomai e comei, este é o meu
corpo, que é dado por vós. E, tomando o cálice, acrescentou: Tomai e bebei,
este é o meu sangue... Quem não comer a minha carne e não beber o meu sangue
não tem parte comigo, não pode ser meu discípulo... Fazei isto em memória de
mim...”
A comunhão do crente com o Cristo não é uma comunhão platônica,
que paira no terreno metafísico, vago, impreciso. É uma comunhão íntima,
perfeita, integral.
A carne e o sangue de Jesus são a carne e o sangue do
crente, isto é, a vida do Cristo é a vida do crente. Há entre o crente e o Cristo
uma transfusão de vida, de ideal, de sentimento e de ação. A vida do Cristo há
de ser a vida do crente; o sentimento do Cristo há de ser o sentimento do
crente; o ideal do Cristo há de ser o ideal do crente; a ação do Cristo há de
ser a ação do crente. Se não houver entre o Mestre e o discípulo esta
identificação, os discípulos não terão parte com ele, pois não comeram ainda a
sua carne e não beberam o seu sangue. Serão aspirantes ao Cristianismo, mas não
serão cristãos.
Decorre, outrossim, dessa comunhão integral - idêntica àquela
que se verifica entre a videira e as ramas - uma consequência lógica e natural:
os crentes que tiverem a vida do Cristo transfundida em si
próprios, viverão uma vida comum. Todos viverão a vida de cada um e cada um viverá
a vida de todos. Tal o supremo ideal do Cristianismo.
Esta doutrina, cumpre notar, não se ostenta apenas no
plano teórico de um espiritualismo etéreo, idealístico.
Ela tem, antes, cunho de realidade positiva e
eminentemente prática, como soe acontecer com todos os postulados cristãos.
Aparentemente, parece algo de bom e de prático aconselhar
a comunhão de pensamento, a solidariedade espiritual, como pretendem os credos
saturados de misticismo oriental. Mas, parafraseando o apóstolo Tiago podemos perguntar:
semelhante comunhão mitiga a fome e a sede
dos famintos e dos sedentos? Semelhante gênero de simpatia veste os nus, assiste
aos enfermos em suas angústias, conforta os desesperados, enxuga o pranto dos
aflitos? Tal espécie de solidariedade utópica defende os oprimidos, esclarece
os ignorantes, combate a iniquidade, o vício, o crime, melhora, enfim, as
condições da humanidade?
É muito fácil pregar e mesmo praticar a comunhão de
pensamento e outras tantas comunhões líricas, inspiradas no platonismo do
Oriente, mas não é essa, certamente, a comunhão ensinada, sentida e
exemplificada por Jesus Cristo. A comunhão cristã é um fato, é uma realidade
viva e palpitante; é uma identificação perfeita da vida coletiva com a vida de
cada indivíduo e da vida de cada indivíduo com a vida coletiva. Não paira nas
alturas alcandoradas do idealismo estéril: desce ao plano da vida humana,
penetra a sociedade terrena, os lares, o seio da família, o âmago dos corações.
A comunhão cristã é do Espírito, da carne e do sangue,
Jesus é o Verbo encarnado que habitou entre os homens: sentiu as suas dores, experimentou
as suas angústias, sondou as suas chagas, pensou as suas feridas. Foi com fatos
e não com pensamentos e palavras que Jesus estabeleceu sua comunhão com a humanidade
sofredora. Os mensageiros do Batista tiveram ocasião de testemunhar a maneira
como Jesus se revelava o Cristo de Deus. Sua doutrina é bem diferente da
doutrina engalanada de certos credos, cuja eficiência não vai além da
sonoridade de frases estudadas, proferidas mais com o fito de fascinar a mente
popular, do que de esclarecer a verdade e propugnar o advento da justiça na Terra.
Jesus não deu joio aos homens, deu-lhes trigo: alimentou-os, não os enfeitiçou.
A comunhão do lirismo espiritualista, que deixa a carne e
o sangue apodrecerem na dor e na angústia não é aquela que Jesus determinou que
se fizesse em sua memória e em substituição da Páscoa dos Judeus. O crente no Cristo
há de sentir a dor moral e física de seu irmão, tal como se fora em si mesmo. A
fraternidade cristã importa numa questão de fato: nunca será demais repeti-lo: “Vinde a mim, benditos de meu Pai, porque
tive fome e me destes de comer; tive sede e me saciastes; estive nu e me vestistes;
estive enfermo e prisioneiro e me visitastes. Apartai-vos de mim, réprobos,
porque permanecestes impassíveis diante de minhas angústias e de minhas aflições.”
Tanto estes como aqueles dirão: Senhor, quando te vimos em necessidade e te acudimos,
ou te deixamos de valer? Jesus retrucará: Todas as vezes que valestes, ou
deixaste de valer, aos mais pequenos e humildes da terra, foi a mim que o
fizestes. Eis aí a lei e os profetas segundo o consenso cristão.
As igrejas que assim não procederem não são cristãs,
ainda que se rotulem com tal denominação.
O Cristianismo não responde pelas adulterações que os
homens, em seu egoísmo, pretendem introduzir na sua estrutura doutrinária.
Tal é a verdade que o Espírito Consolador veio
restabelecer, a propósito do pão e do vinho que Jesus deu a comer e a beber aos
seus apóstolos, como símbolos do seu corpo e do seu sangue, imolados à causa da
redenção humana.
Nenhum comentário:
Postar um comentário