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quarta-feira, 25 de março de 2020

O pão e o vinho



O Pão e o Vinho  
Pedro de Camargo (Vinícius)
Reformador (FEB) Fevereiro 1929

            E Jesus partiu o pão e, distribuindo as seus discípulos, disse: “Tomai e comei, este é o meu corpo, que é dado por vós. E, tomando o cálice, acrescentou: Tomai e bebei, este é o meu sangue... Quem não comer a minha carne e não beber o meu sangue não tem parte comigo, não pode ser meu discípulo... Fazei isto em memória de mim...”

            A comunhão do crente com o Cristo não é uma comunhão platônica, que paira no terreno metafísico, vago, impreciso. É uma comunhão íntima, perfeita, integral.

            A carne e o sangue de Jesus são a carne e o sangue do crente, isto é, a vida do Cristo é a vida do crente. Há entre o crente e o Cristo uma transfusão de vida, de ideal, de sentimento e de ação. A vida do Cristo há de ser a vida do crente; o sentimento do Cristo há de ser o sentimento do crente; o ideal do Cristo há de ser o ideal do crente; a ação do Cristo há de ser a ação do crente. Se não houver entre o Mestre e o discípulo esta identificação, os discípulos não terão parte com ele, pois não comeram ainda a sua carne e não beberam o seu sangue. Serão aspirantes ao Cristianismo, mas não serão cristãos.

            Decorre, outrossim, dessa comunhão integral - idêntica àquela que se verifica entre a videira e as ramas - uma consequência lógica e natural: os crentes que tiverem a vida do Cristo transfundida em si próprios, viverão uma vida comum. Todos viverão a vida de cada um e cada um viverá a vida de todos. Tal o supremo ideal do Cristianismo.

            Esta doutrina, cumpre notar, não se ostenta apenas no plano teórico de um espiritualismo etéreo, idealístico.

            Ela tem, antes, cunho de realidade positiva e eminentemente prática, como soe acontecer com todos os postulados cristãos.

            Aparentemente, parece algo de bom e de prático aconselhar a comunhão de pensamento, a solidariedade espiritual, como pretendem os credos saturados de misticismo oriental. Mas, parafraseando o apóstolo Tiago podemos perguntar: semelhante  comunhão mitiga a fome e a sede dos famintos e dos sedentos? Semelhante gênero de simpatia veste os nus, assiste aos enfermos em suas angústias, conforta os desesperados, enxuga o pranto dos aflitos? Tal espécie de solidariedade utópica defende os oprimidos, esclarece os ignorantes, combate a iniquidade, o vício, o crime, melhora, enfim, as condições da humanidade?

            É muito fácil pregar e mesmo praticar a comunhão de pensamento e outras tantas comunhões líricas, inspiradas no platonismo do Oriente, mas não é essa, certamente, a comunhão ensinada, sentida e exemplificada por Jesus Cristo. A comunhão cristã é um fato, é uma realidade viva e palpitante; é uma identificação perfeita da vida coletiva com a vida de cada indivíduo e da vida de cada indivíduo com a vida coletiva. Não paira nas alturas alcandoradas do idealismo estéril: desce ao plano da vida humana, penetra a sociedade terrena, os lares, o seio da família, o âmago dos corações.

            A comunhão cristã é do Espírito, da carne e do sangue, Jesus é o Verbo encarnado que habitou entre os homens: sentiu as suas dores, experimentou as suas angústias, sondou as suas chagas, pensou as suas feridas. Foi com fatos e não com pensamentos e palavras que Jesus estabeleceu sua comunhão com a humanidade sofredora. Os mensageiros do Batista tiveram ocasião de testemunhar a maneira como Jesus se revelava o Cristo de Deus. Sua doutrina é bem diferente da doutrina engalanada de certos credos, cuja eficiência não vai além da sonoridade de frases estudadas, proferidas mais com o fito de fascinar a mente popular, do que de esclarecer a verdade e propugnar o advento da justiça na Terra. Jesus não deu joio aos homens, deu-lhes trigo: alimentou-os, não os enfeitiçou.

            A comunhão do lirismo espiritualista, que deixa a carne e o sangue apodrecerem na dor e na angústia não é aquela que Jesus determinou que se fizesse em sua memória e em substituição da Páscoa dos Judeus. O crente no Cristo há de sentir a dor moral e física de seu irmão, tal como se fora em si mesmo. A fraternidade cristã importa numa questão de fato: nunca será demais repeti-lo: “Vinde a mim, benditos de meu Pai, porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me saciastes; estive nu e me vestistes; estive enfermo e prisioneiro e me visitastes. Apartai-vos de mim, réprobos, porque permanecestes impassíveis diante de minhas angústias e de minhas aflições.” Tanto estes como aqueles dirão: Senhor, quando te vimos em necessidade e te acudimos, ou te deixamos de valer? Jesus retrucará: Todas as vezes que valestes, ou deixaste de valer, aos mais pequenos e humildes da terra, foi a mim que o fizestes. Eis aí a lei e os profetas segundo o consenso cristão.

            As igrejas que assim não procederem não são cristãs, ainda que se rotulem com tal denominação.

            O Cristianismo não responde pelas adulterações que os homens, em seu egoísmo, pretendem introduzir na sua estrutura doutrinária.

            Tal é a verdade que o Espírito Consolador veio restabelecer, a propósito do pão e do vinho que Jesus deu a comer e a beber aos seus apóstolos, como símbolos do seu corpo e do seu sangue, imolados à causa da redenção humana.

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