Espiritismo
– Ciência - Religião
Carlos Imbassahy
Reformador
(FEB) Janeiro 1941
Poucos axiomas são tão verdadeiros como
aquele que diz – in medio consistit
virtus.
A virtude está no meio termo, já
proclamavam os romanos. E esse fruto da sabedoria popular ser-nos-ia sempre
agradável, se a nossa ignorância, ou, melhor, o nosso orgulho não
nos levasse sempre ao extremo da balança, onde os homens pesam todas as coisas,
assim humanas como divinas.
Há uma propensão enorme, entre as criaturas,
para as ideias arraigadas, irremovíveis; daí nasceu o dogma, do dogma a intolerância,
escalracho (infestação) doutrinário, que
invade e estiola (debilita) a consciência.
Quando o indivíduo crê firmemente e
intransigentemente no quer que seja, sem estudar as razões, ou mesmo as hipóteses
que lhe possam contrariar a opinião, já não é um espírito em progresso. Está a
um passo do fanatismo, que é a obinubilação (perturbação) completa da razão.
Devemos - e digo isto sem sombra de dúvida
- estar prontos para modificar nossas ideias, quaisquer que elas sejam, desde
que a verdade se imponha. E é nisto que consiste a superioridade da doutrina
espírita sobre as demais doutrinas.
Enquanto o crente mantem-se em suas crenças
obsoletas, por maiores que sejam as provas que lhe demonstrem o erro, o
espírita se deixa orientar pelos ventos do progresso e se encaminha para onde a
sã razão o conduz.
Nós estaremos onde estiverem as provas
daquilo que afirmamos. Afirmar sem provar, garantir sem esteios (amparos), impor sem raciocínio
não poderá ser, jamais, o nosso critério.
É bem de ver que, muitas vezes, nos faltam
as provas daquilo em que cremos; nem sempre temos o arrimo necessário para
sustentar as nossas hipóteses. Proceda-se, então, como no terreno científico:
serão questões abertas, serão doutrinas pessoais, serão hipóteses de trabalho.
O mal, porém, é que, ao possuir uma ideia, sem elementos que a abonem, temo-la,
para logo, como absolutamente certa, e não admitimos que ninguém a possa
acreditar errada, ou mesmo contrariá-la. Surgem, assim, extremistas nas
questões doutrinarias.
Ora, o supor-se alguém como seguro detentor
da verdade, num planeta atrasado como o nosso, é manifestação de vaidade, uma
espécie de vaidade subconsciente, que por aquela forma se traduz.
Tal tem um pensamento e, uma vez que ele o perfilhou,
não pode estar errado. Ele não pode errar e assim, tudo em que opina leva o
cunho da verdade absoluta. E não admite, então, a opinião contrária. Aquele que
o contraria é riscado das suas relações de amizade. Esse não pode ter ideias
também: se as tem, discorda, se discorda é inimigo.
Vemos, destarte, muitos homens
inteligentes, probos, trabalhadores, que todos podiam caminhar juntos, unidos
pelo princípio comum da solidariedade, pregando juntos a fraternidade humana,
que é a cruzada que deve reunir, sob uma só bandeira, as criaturas de prol - vemo-los
desavindos, e desavindos por questões de nenhum valor para o progresso moral do
gênero humano.
Mas, os que se metem pelas betesgas (becos sem saída), deixando a
estrada real, os que supõem que toda a verdade se foi encantonar nos seus principiozinhos,
frágeis e insustentáveis, não sabem que o verdadeiro sábío é aquele que sabe
que não sabe nada.
Convinha, aos que se presumem de sabidos e
soletram pela cartilha cristã, a leitura do Novo Testamento. Ali diz o apostolo
Paulo:
“Se alguém supõe que sabe alguma coisa esse
ainda não sabe como é preciso que o saiba.” (1ª Epístola aos Coríntios, VIII,
v. 2.)
O grande filósofo Sócrates, considerado o
grande mestre, afirmava a seus discípulos: -
Eu só sei que nada sei. E não fazia mais que repetir aquilo que muitos anos
antes dizia Buda aos seus discípulos, e Buda era o iluminado.
O nosso amado Mestre, o Mestre Divino, de
cujo saber nenhum cristão duvida, afirmava, na sua pregação: -
Quem sabe é o Pai que está nos Céus.
Enchemo-nos, portanto, de muita pena, quando,
vemos um pobre mortal assegurar que quem sabe é ele.
A intransigência, o exclusivismo doutrinário,
o não admitir alguém que outrem possa
emitir
opinião diversa, equivale a esta declaração formal: - Quem sabe sou eu! Eu sei
tudo!..
E, como ele sabe tudo, não pode consentir
que o outro saiba alguma coisa. Daí para as divergências profundas e pueris o
passo é pequeníssimo. Surgem, então, os cismas, os retaliamentos, às vezes,
mesmo, as verrinas (críticas
ásperas),
a descompostura grossa...
Há tempos, um amigo meu, creio que o Vaz de
Carvalho, falou-me num quadro de Cristo,
sem barbas. Tão impressionante o achou, que pretendia expô-lo.
- Você está doido, positivamente doido -
disse-lhe eu.
- Mas, - replicou ele - não há certeza se o
mestre tinha ou não a barba que se lhe atribui. Penso, pois, que não haveria
inconveniente.
Eu o atalhei, imediatamente, com a presteza
de quem vê um raio quase a fulminar-nos.
- Afugenta, meu amigo, essa ideia terrível!
Já previste o que irá suceder? Formar-se-ão logo os partidos. Haverá uma luta
acérrima. Imprimir-se-ão os panfletos. Os amigos se separarão. Amanhã não se
cuidará mais de saber o que dizia o Cristo, mas se ele tinha barbas ou não as
tinha.
Virão, ainda, outros propugnadores, outras
variantes. Em vez de barba, dar-lhe-ão um cavanhaque. Haverá os cavanhaquistas
e os não cavanhaquistas. Em breve, correrão rios de tinta e de desaforos. Em
breve, ninguém quererá mais saber como serão os textos do Evangelho, mas de
como seria o rosto do Divino Mestre.
O meu amigo sorriu amargamente, como quem descobre,
com grande pesar, que era certo o que eu estava a expor-lhe. Chamou, então, um
rapazinho e ordenou: - Vá ali, ao Sr. Américo
e diga-lhe que eu desisto do retrato.
*
É de crer que, por um declive insensível,
se chegue à conclusão de que não devemos ter ideias. Seria um desastre tal conclusão.
Ela nos levaria a indiferença, senão ao ateísmo. Podemos
e devemos ter ideias, defendê-las com o ardor que nos for possível. Mas, entre
o defender
ideias e lançar os anátemas aos que pensam de outro modo, existe um abismo. Na
sua obra memorável, o Visconde de Bragelone, declarava Alexandre Dumas, a
respeito do
cardeal de Mazarino, o famoso ministro de Ana d'Áustria ao tempo de Luiz XIV.
"que ele, na sua qualidade de
cardeal e de primeiro ministro, era pouco mais ou menos ateu e inteiramente
materialista".
Longe de nós, a indiferença do cardeal.
Se Mazarino era mesmo materialista e ateu,
não sei. Vá por conta de Dumas. O que é certo é que, na defesa do nosso deísmo
e do nosso espiritualismo, temos que apresentar razões e não meras alegações,
fatos e não meras asserções. E, baseado no princípio do fato e da prova, é que
o Espiritismo, ou a terceira Revelação, como lhe chamamos, surgiu, rodeada de
toda a extensa gama da fenomenologia psíquica; dora (de agora) em diante não se
trata mais de crer, porém de saber.
Compreendendo a ineficiência do dogma, a impossibilidade
de divulgar princípios, só porque neles crê, é que alguns pensadores e
publicistas vêm expendendo o melhor do seu tempo com a demonstração daquilo que
afirmam.
O pobre escritor destas linhas, notando que
é essa a base única e sólida da sustentação de qualquer princípio, tem
procurado acompanhar as pegadas daqueles pensadores, não sem refletir na grande
distância que separa um e outros.
Também notou quanto é precário o nosso conhecimento
e daí a necessidade de esteia-lo da melhor forma possível; Spencer estabeleceu como
lei a sua relatividade. E viu, ainda, que as ideias extremas são sempre
obscurantistas, que, aos seus propagadores, falta isenção de ânimo, serenidade,
tranquilidade espiritual; e que, finalmente, tudo na natureza nos está a demonstrar
que a grande virtude reside no meio termo.
Só deveríamos ser radicais quando tivéssemos
em mãos as provas seguras, e até estas falham tantas vezes !..
Imagine-se, agora, o radicalismo, o absolutismo,
sem prova nenhuma!
Tais considerações vêm à baila, porque, há dias,
censurava um confrade, entre outras, as minhas ideias científicas, no que toca
ao Espiritismo, e ele achava que o Espiritismo não é ciência, é religião.
O interessante é que outro amigo, e destes
que bem merecem tal nome, censurava-me, por seu turno, a religiosidade em Espiritismo,
e me afirmava, com grande cópia de argumentos, que o Espiritismo não e religião, é ciência.
Chama-se a isto estar preso por ter cão e por
não ter cão.
Mas, o que a eles, ou a pouca gente se afigura
claro é que o Espiritismo possa ser, ao
mesmo tempo, religião e ciência. É com este caráter que ele se nos apresenta, é
por esta
forma, conseguintemente, que o encaramos.
Parece ter sido debalde que os mestres no-lo
expõem sob esse duplo aspecto, ou melhor ainda, sob o tríplice aspecto de religião,
Ciência e filosofia..
Muitos, porém, só o reconhecem por uma das
faces. E o fato se explica e justifica de maneira
clara. Vamos buscar no passado as raízes dessa preferência. E, em vez de condena-la
tentaremos, ao contrário, explicá-la.
Muitos de nós, que hoje militamos na doutrina
espírita, viemos das fileiras religiosas, do absolutismo religioso. Vivemos,
durante séculos, folheando os livros sagrados, engrazando (enfiando as contas
dos)
rosários, comentando as Escrituras, apostrofando os incréus
ou os díscolos (rebeldes), anatematizando os
contrários, proibindo as discordâncias, impondo os pontos teológicos.
Seria impossível que esse lidar, durante tempos
imemoriais, num sentido único e num só feitio não nos fizesse uma ranhura na
alma. Daí o infalibilismo bíblico, o sectarismo religioso, a inflexibilidade na
interpretação dos textos, a fé desarrazoada, a inclinação a toda a sorte de
fanatismo, o abandono da iniciativa pessoal, a propensão a deixar tudo por
conta e as costas do Espírito Santo, no nosso caso, o espírito guia.
Eles não podem ver, ainda, com bons olhos o
Espiritismo cientifico, que lhes parece orgulho, bazófia e até ignorância.
Há o reverso; há o outro extremo: os que não
admitem o espirito religioso. Para eles, só vale o conhecimento. Foram
provavelmente, como Giulio Mazarino, conforme no-lo pinta Dumas. Não tinham
nenhum elemento de convicção. Faltando-lhes a fé, sua crença não passava de mera
encenação, espécie de fogo de vistas. Só acreditavam nos cinco sentidos e nas
fracas noções que a ciência nos oferece. Não viam, nem veem que muita coisa há
que nos entra na alma pela via da intuição; que há pobres de espírito mais
iluminados que muitos sábios sublunares; que uma simples prece faz conseguir o
que muitos anos de esforço não puderam realizar.
O estudo, a meditação, a lição dos maiores convenceram-me
de que amputaremos o Espiritismo, se lhe tirarmos uma de suas faces.
Abstenho-me de o demonstrar a confrades e
amigos, por fugir a controvérsias dentro de nossos arraiais. Além disso.
disse-me há tempos distinto irmão em crenças espiritas, que não
me replicaria, porque não tinha onde publicar seus escritos.
Aprendi a tolerância na adversidade. Tempos
houve em que vi, a respeito de trabalhos meus, a mais disparatada crítica, sem
ter por onde revidar. As vezes, mesmo, me vinham pedir artigos, opiniões,
entrevistas, que eu dava, com dificuldade, por falta de tempo e de saúde. Surgiam
os contestadores, nem sempre imunes de virulência. Eu voltava com a tréplica.
Neste ponto, porém, os entrevistadores ou donos de jornais davam por finda a
questão. Não queriam polêmicas, não desejavam agitar as questões religiosas. Fácil
é adivinhar donde provinha a proibição e eu acabava arrolhado. O que ninguém
sabia é se havia parado por falta de jornal.
Graças a Deus rendo eu hoje em dia, porque
tais provas me ensinaram a paciência e
me fizeram ver quanto fere a injustiça, a intolerância, o espírito de seita.
Nada direi, portanto, aos argumentos de confrades
e, sobretudo, de confrades amigos.
As leis da amizade e do cavalheirismo me
obrigam a passar de largo.
O mesmo já não sucederá a um ilustrado publicista
o qual, ocupando em S. Paulo importante função pública, negou a uma escola o
direito de ensinar Espiritismo, a exemplo do que ela fazia com outras
religiões, porque esta disciplina não era uma religião, assegurava ele.
Esse tem, por certo, ao seu dispor, inúmeros
jornais. Não faltará nunca a ninguém uma publicação qualquer, quando se trate
de dar combate ao Espiritismo.
Ora, negar ao Espiritismo o seu lado religioso
seria retirar-lhe o pé de igualdade junto às
demais crenças; seria desnivela-lo perante as outras religiões; seria desconhecer
os favores que a Constituição concede a todos os credos; seria vedar-lhe a
propagação; seria tornar legal a sua proibição; seria impedir o seu conhecimento,
frustrar a reunião dos seus crentes, fechar as suas sessões, matá-lo; enfim.
Tal é o escopo dos nossos adversários, infelizmente
com aplausos de alguns amigos, os quais, sinceros embora, não veem por onde a serpe
(serpente) rasteja.
Que eles, os antagonistas, obrem com mãos livres,
estão no seu direito. Os seus argumentos, porém, é que pouco valem, e tão só
isto é o que pretendo demonstrar, sem molestar ninguém.
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