Traição de Judas
26,14
Então, um dos doze, chamado Judas Iscariotis, foi ter com os sacerdotes
e perguntou-lhes:
26,15 Que quereis
dar-me e eu vo-Lo entregarei! Ajustaram
com ele trinta moedas de prata
26,16 E,
desde aquele instante, procurava uma ocasião favorável para entregar Jesus.
Para
Mt (26,14-16) -Traição de Judas
- , encontramos em “Palavras do Infinito” de Humberto de Campos por Chico
Xavier, o lindo trecho que reproduzimos abaixo:
“Judas Iscariotis -
Silêncio augusto cai sobre a Cidade
Santa. A antiga capital da Judéia parece dormir o seu sono de muitos séculos.
Além descansa Getsêmani, onde o Divino Mestre chorou numa longa noite de
agonia, acolá está o Gólgota sagrado e em cada coisa silenciosa há um traço da
Paixão que as épocas guardarão para sempre. E, em meio de todo o cenário, como
um veio cristalino de lágrimas, passa todo o Jordão silencioso, como se as suas
águas mudas, buscando o Mar Morto, quisessem esconder das coisas tumultuosas
dos homens os segredos insondáveis do Nazareno.
Foi assim, numa destas noites que
vi Jerusalém, vivendo a sua eternidade
de maldições.
Os espíritos podem vibrar em contato
direto com a história. Buscando uma relação íntima com a cidade dos profetas,
procurava observar
o passado vivo dos Lugares Santos. Parece que as mãos iconoclastas de Tito por
ali passaram como executoras de um decreto irrevogável. Por toda a parte ainda
persiste um sopro de destruição e desgraça. Legiões de duendes, embuçados nas
suas vestimentas antigas, percorrem as ruínas sagradas e no meio das
fatalidades que pesam sobre o empório morto dos judeus, não ouvem os gemidos da
humanidade invisível.
Nas margens caladas do Jordão, não
longe talvez do lugar sagrado, onde o Precursor batizou Jesus Cristo, divisei
um homem sentado sobre uma pedra. De sua expressão fisionômica irradiava-se uma
simpatia cativante.
Sabe quem é este? - murmurou alguém
aos meus ouvidos. Este é Judas.
- Judas !?!
- Sim.
Os espíritos apreciam, às vezes, não obstante o progresso que já alcançaram,
volver atrás, visitando os sítios onde se engrandeceram ou prevaricaram,
sentindo-se momentaneamente transportados aos tempos idos. Então mergulham o
pensamento no passado, regressando ao presente, dispostos ao heroísmo
necessário do futuro. Judas costuma vir à Terra, nos dias em que se comemora a
Paixão de Nosso Senhor, meditando nos seus atos de antanho...
Aquela figura de homem
magnetizava-me. Eu não estou ainda livre da curiosidade do repórter, mas entre
as minhas maldades de pecador e a perfeição de Judas existia um abismo. O meu
atrevimento, porém, e a santa humildade do seu coração, ligaram-se para que eu
o atravessasse, procurando ouvi-lo.
-O senhor é, de fato, o ex-filho de
Iscariotis? - perguntei.
-Sim, sou Judas - respondeu aquele
homem triste, enxugando uma lágrima nas dobras de sua longa túnica.
Como o Jeremias, das Lamentações,
contemplo às vezes esta Jerusalém
arruinada, meditando no juízo dos homens transitórios...
- É uma verdade tudo quanto reza o
Novo Testamento com respeito à sua personalidade na tragédia da condenação de
Jesus?
Em parte... Os escribas que
redigiram os evangelhos não atenderam às circunstâncias e às tricas políticas
que acima dos meus atos predominaram na nefanda crucificação. Pôncio Pilatos e
o tetrarca da Galileia, além dos seus interesses individuais na questão, tinham
ainda a seu cargo salvaguardar os interesses do Estado romano, empenhado em
satisfazer as aspirações religiosas dos anciãos judeus. Sempre a mesma história.
O Sinédrio desejava o reino do céu pelejando por Jeová, a ferro e fogo; Roma
queria o reino da Terra. Jesus estava
entre essas forças antagônicas com a sua pureza imaculada. Ora, eu era um dos
apaixonados pelas idéias socialistas do Mestre, porém o meu excessivo zelo pela
doutrina me fez sacrificar o seu fundador. Acima dos corações, eu via a
política, única arma com a qual poderia triunfar e Jesus não obteria nenhuma vitória. Com as
suas teorias nunca poderia conquistar as rédeas do poder já que, no seu manto
de pobre, se sentia possuído de um santo horror à propriedade. Planejei então
uma revolta surda como se projeta hoje em dia na Terra a queda de um chefe de
Estado. O Mestre passaria a um plano secundário e eu arranjaria colaboradores
para uma obra vasta e enérgica como a que fez mais tarde Constantino Primeiro,
O Grande, depois de vencer Maxêncio às portas de Roma, o que aliás apenas
serviu para desvirtuar
o Cristianismo. Entregando, pois, o Mestre, a Caifás, não julguei que as coisas
atingissem um fim tão lamentável e, ralado de remorsos, presumi que o suicídio
era a única maneira de me redimir aos seus olhos.
- E chegou a salvar-se pelo
arrependimento?
- Não.
Não consegui. O remorso é uma força
preliminar para os trabalhos reparadores. Depois da minha morte trágica,
submergi-me em séculos de sofrimento expiatório da minha falta. Sofri horrores
nas perseguições infligidas em Roma aos adeptos da doutrina de Jesus e as
minhas provas culminaram em uma fogueira inquisitorial, onde, imitando o Mestre,
fui traído, vendido e usurpado. Vítima da felonia e da traição deixei na Terra
os derradeiros resquícios do meu crime, na Europa do século XV. Desde esse dia,
em que me entreguei por amor do Cristo a todos os tormentos e infâmias que me
aviltaram, com resignação e piedade pelos meus verdugos, fechei o ciclo das
minhas dolorosas reencarnações na Terra, sentindo na fronte o ósculo de perdão
da minha própria consciência...
-E está
hoje meditando nos dias que se foram...
pensei com tristeza.
-Sim,
estou recapitulando os fatos como se passaram. E agora, irmanado com Ele, que
se acha no seu luminoso Reino das Alturas que ainda não é deste mundo, sinto
nestas estradas o sinal de seus divinos passos. Vejo-O ainda na cruz entregando
a Deus o seu Destino... Sinto a
clamorosa injustiça dos companheiros que O abandonaram inteiramente e me vem
uma recordação carinhosa das poucas mulheres que O ampararam no doloroso
transe... Em todas as homenagens a Ele
prestadas, eu sou sempre a figura repugnante do traidor... Olho complacentemente os que me acusam sem
refletir se podem atirar a primeira pedra...
Sobre o meu nome pesa a maldição milenária, como sobre estes sítios
cheios de miséria e de infortúnio. Pessoalmente, porém, estou saciado de
justiça, porque já fui absolvido pela minha consciência no tribunal dos suplícios
redentores.
Quanto
ao Divino Mestre - continuou Judas com os seus prantos - infinita é a sua
misericórdia e não só para comigo, porque se recebi trinta moedas, vendendo-O
aos seus algozes, há muitos séculos Ele está sendo criminosamente vendido no
mundo a grosso e a retalho, por todos os preços, em todos os padrões do ouro
amoedado...
-É
verdade - concluí - e os novos negociadores do Cristo não se enforcam depois de
vendê-lo.
Judas afastou-se tomando a direção
do Santo Sepulcro e eu, confundido nas sombras invisíveis para o mundo, vi que
no céu brilhavam algumas estrelas sobre as nuvens pardacentas e tristes,
enquanto o Jordão rolava na sua quietude como um lençol de águas mortas,
procurando um mar morto.
Humberto de Campos”
(Página recebida em Pedro Leopoldo a 19 de Abril
de 1935)
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