A ideia de laicismo - 1
C. Wagner
Reformador (FEB) Maio
1923
“Quando Jesus
acabou de falar, a multidão se achou admirada da sua doutrina, porque ele a
instruía com autoridade e não como os Escribas.” Mt VII, 28
“Ora, estavam por
ali, sentados, alguns Escribas em cujos corações se aninhavam estes
pensamentos: Como pode este homem proferir tais blasfêmias? Mc. II, 6 e 7
“E diziam: Este
não é o filho de José?”
Estas passagens
nos conduzem a um terreno de combate entre a autoridade interior e a autoridade
tradicional, ou exterior, em matéria de religião.
Para mais práticas,
mais diretas tornarmos as observações que vamos fazer sobre este assunto,
convido-vos a refletirmos juntos acerca do lugar que, no domínio da religião,
ocupa o que se poderia chamar a religião original, ou, em outros termos, a
religião leiga.
Muito de propósito
emprego este termo “leigo”.
Ele hoje se repete
amendadas (repetidas) vezes nos jornais, nas conversações,
nas polêmicas, nas leis.
Em geral, tem, no espírito
de toda gente, um sentido simplista e restrito.
Seus limites são
os de uma região muito palmilhada, onde significa, principalmente, anti religioso
ou irreligioso.
Leigo e profano
são sinônimos, para alguns.
Muitos mesmo
confundem leigo e ímpio, pondo nisso grande dose de boa vontade, ou de má
vontade, se preferirdes.
Parece que o termo
“leigo” indica alguma coisa de novo, de muito recente, ao sabor do juízo dos
campeões do passado; alguma coisa de novíssimo, segundo os espíritos fortes.
Estes últimos veem nisso uma possante vaga que vai submergir a Terra e varrer
definitivamente o mundo, não direi clerical, mas religioso.
Outros empregam o
vocábulo “leigo” para designar uma espécie de imparcialidade indiferente entre
os velhos cultos, ainda professados por certos grupos de homens de antiquada
mentalidade, mas, apesar de tudo, venerável, porque o homem é sempre digno de
respeito naquilo que entende com a sua vida interior. Em regra geral, raros são
os nossos contemporâneos que hão explorado um tanto as províncias infinitas da
noção de “leigo”.
Essas
desconhecidas províncias formam precisamente o terreno aonde quero hoje
conduzir-vos e começo por apresentar uma tese, que tentarei fundamentar com uma
série de fatos:
Em religião, como
em tudo, em ciência, em arte, em sentimento, o que lhes serve de base é o
elemento leigo. No seu princípio, a religião é leiga e, na sua essência
profunda, leiga tem que se conservar.
Leigo significa:
popular, humano, de um humanismo universal e fundamental.
O mundo leigo é
mais antigo do que todos os outros.
Laicificar, em matéria
religiosa, não consiste em mudar fórmulas, dogmas e ritos, na moeda corrente do
pensamento atual. Consiste ainda menos em suprimir uma cruz do frontão de uma igreja;
fazer sair do pretório um Cristo; tirar a um monge a sua cogula (túnica como a dos beneditinos); a uma religiosa a sua touca.
Laicificar é, em verdade, volver à raiz humana das instituições, das crenças,
dos costumes, dos sentimentos. O espírito laico é o mais antigo, não porque,
folheando livros e esquadrinhando datas, se lhe possa assinar certificados da
mais alta ancianidade (longo tempo de
existência), mas porque não
tem idade. Ele se prende ao mundo das realidades, que não são de nenhum tempo
particular, porém de todos os tempos e que primam a todas as outras,
simultaneamente, pela sua antiguidade, pois que datam de sempre, e pela sua
novidade, pois que incessantemente renascem em manifestações inéditas.
Vamos mostra-lo,
mediante uma série de observações.
1
Procuremos antes
de tudo uma analogia e tomemos um exemplo à evolução cientifica.
O saber humano fez
o seu aparecimento no espírito e pelo labor de alguns que careciam de qualidade
especial para recolhe-lo.
A ciência foi, a
princípio, leiga e imprecisa; depois, pouco a pouco, se catalogou, especializou,
sistematizou. Uma lei normal impele o espírito nessa direção, a fim de que
adquira mais ordem e clareza. Ao cabo de mais ou menos longo período, uma
tradição cientifica vem a achar-se estabelecida, com suas instituições, seu
pessoal encarregado de velar pelo tesouro da experiência e de manter as ideias
recebidas.
Mas, uma vez
atingido esse grau de organização, vemos comumente a ciência degenerar em
mandarinato. Por cima da capacidade primordial do homem, a de observar e pesquisar,
forma-se uma espécie de dura e impenetrável concha, semelhante à dos cágados (tartarugas). Entre o espírito e a realidade se
interpõem as teorias feitas e acabadas. Chega um momento em que os que têm
modos originais de ver e o instituto das pesquisas, os que preferem folhear o
grande livro da natureza a repetir, pura e simplesmente, as observações dos
outros, se sentem comprimidos, sufocados. Então, com vigoroso esforço, levantam
e fazem em estilhaços aquela concha, a fim de que os órgãos vitais do
conhecimento humano não fiquem comprometidos.
*
Por toda parte se
pode observar esse progresso do espontâneo para o convencional, do autêntico
para o artificial.
Atentai no mundo
dos sentimentos. Em sua origem, quando são muito verdadeiros, neles notamos um
certo número de expressões, de manifestações tão pessoais e sinceras, quanto
eles próprios. Pouco a pouco, porém, à força de se repetirem e imitarem, entram
no período convencional. Sofrem uma filtração através de espessas camadas de hábitos
e costumes herdados, que os descoram e lhes tiram o que têm de sincero e
direto. Na vida das sociedades, períodos se apresentam em que os sentimentos são
de tal maneira artificiais, em que o pó das convenções se superpôs tão bem à essência
mesma do coração, em que a expressão do que cada um sente está a tal ponto
estereotipada, que os homens parecem autômatos de gestos regulados e sem
personalidade. Onde quer que, então, se mostre um nada de sentimento inédito,
um pouco de verdadeiro humanismo; onde quer que um real e forte brado do
coração se faça ouvir, logo toda gente entra a respirar, como se alguém acabasse
de quebrar uma chapa de chumbo posta sobre todas as cabeças.
Porém, diante da
força e das manifestações do sentimento autêntico, assustam-se os guardas
ferozes das convenções e se põem a proclamar a necessidade das muralhas que a sabedoria
secular erguera em torno dos sentimentos, a fim de os proteger e disciplinar.
Eles se sentem
responsáveis e incumbidos de guardar o santuário do lar e do amor. Na
realidade, entretanto, já não guardam senão molduras vazias. Esqueceram o
verdadeiro Deus dos lares e, no dia em que esse Deus lhes aparece, não o reconhecem
e o renegam. A regra convencional, estabelecida para salvaguardar a vida
familiar, acaba por embaraça-la e destruí-la.
*
O mesmo se dá em
matéria de religião.
No alto do monte
Moriá, não havia a princípio mais do que um altar de pedras toscas, onde, à
falta de qualquer outro santuário, ia Abraão, o venerável patriarca, oferecer
seus sacrifícios.
E a lei, a princípio,
era a lei não escrita, da qual diz a Escritura santa:
“Ele não está no
céu... não está além mar: está bem perto de ti, nos teus lábios e no teu
coração (1) .”
(1)
Deuteronômio XXX,
14
O progresso e o
tempo mudaram tudo isso...
Gradativamente, o
culto de Abraão, com o seu altar informe, se enriqueceu, cercando-se de maior magnificência.
A lei foi gravada em tábuas de pedra e venerada como divindade. Doutrinas, à guisa
de brilhantes escrínios, se construíram, para encerrar cuidadosamente as pérolas
e as gemas dos sentimentos religiosos. Uma categoria especial de homens foi
designada, dentro da tribo de Levi, para zelar pelo santuário, para conservar o
ensino e presidir aos sacrifícios.
Assim nasceu e se
acentuou a hierarquia sacerdotal. Nos rolos sagrados se fixou a palavra viva e
a ciência sutil do escriba se entrelaçou nas letras do texto, como a hera
parasita nas anfractuosidades (saliências) dos vetustos
muros.
Então, o culto e a
lei e a prece e o sacrifício deixaram, lentamente, o solo popular, o sulco onde
a vida germina das profundezas e entraram no período de cristalização, de mumificação.
Numa palavra, caíram no mecanismo clerical.
Veio tempo em que
a lei não era mais do que letra morta, o nome de Deus mais do que simples vocábulo,
a alma mera inscrição outrora nítida e brilhante, agora obscura e a se apagar
cada vez mais.
Até mesmo a fonte
da religião pareceu ter secado. Debaixo do céu mudo,
a terra não mais
ouvia oráculos. Estava captada a torrente da vida que no princípio correra.
As águas
estagnadas deixam de fertilizar a planície e, a poder de inércia, se tornam venenosas.
Entregue aos que o
guardam sem o vivificarem, o tesouro religioso do passado degenera e desce à
categoria de capitais mortos, confiados a pessoas que já não dispõem da
energia, nem da inteligência necessárias para fazerem girar o seu dinheiro.
Toma o aspecto desses latifúndios que vão parar a mãos de criaturas
indolentes, para quem a terra é apenas objeto de platônica posse, impotentes
que são para fecunda-la pelo trabalho.
Quando as
instituições religiosas, paulatinamente desenvolvidas através de sua laboriosa
e normal evolução, chegam afinal ao período de estagnação e morte, mister se faz que a religião renasça
pela raiz. Então, após longo penar das almas na incerteza, flageladas pela fome
e pela sede espirituais, nasce um homem em quem as necessidades e as aspirações
de sua época ganham consciência. Sucede a esse homem o que a Escritura descreve
a miúde, quando diz: A palavra de Deus lhe foi dirigida.
Torna-se um profeta.
No profeta, colaboram
simultaneamente estas duas forças: a alma de uma multidão e o espírito divino,
forças que o consagram para ser criador e vítima: criador de uma nova ordem de coisas;
vítima da antiga ordem de coisas.
Velha e irredutível
oposição existe entre os profetas, despertadores de almas, e os sacerdotes,
matadores dos profetas.
O profeta é, por excelência,
o leigo, que não pertence a nenhuma casta
Particular, que não tem mandato
oficial. É, pura e simplesmente, um homem, que a inspiração, a quem devemos as
grandes e irrevogáveis instruções íntimas, foi buscar, ou junto de seus
rebanhos, ou num trono, ou numa cela de monge, ou não importa onde. É um homem
em quem a religião se acha em estado, por assim dizer, selvagem, sem ter ainda
sofrido qualquer domesticação, porquanto as ideias são como as plantas e os
animais. Há cravos selvagens e cravos de estufa; rosas de aposento e rosas da
montanha. Há águias de viveiro e leões de pátio; águias dos cumes e leões do
deserto. No mundo humano, temos ideias agrestes, rústicas, ideias de ar livre,
selvagens, independentes, e ideias domesticadas, prisioneiras, flores de cor
desmaiada, águias de asas cortadas, leões anêmicos.
Quando um desses leões de gaiola,
portador, geralmente, de pomposos títulos e de uma genealogia, encontra um
verdadeiro leão, olha-o com distinto desdém, como que a lhe dizer: “Tu, um leão!
onde está a tua jaula? o lugar de um leão é atrás de fortes grades. Não és um
leão, pois que não tens jaula.”
Com a mesma razão, com igual justiça,
os homens das ideias domesticadas e das palavras mortas, os guardas titulados
das instituições, cujo espírito já se evaporou, dizem ao profeta: “Blasfemas! quem
te deu o direito de falar?” E os escribas, escudados na sua sabedoria,
exclamam, apontando para o Cristo: “Donde vem este homem? Não é o filho de
José? Não é escriba, nem sacerdote e a nenhuma escola pertence. Quem lhe dá o
direito de falar assim?
É como se pedissem ao furacão os
passaportes e seus documentos à brisa
da tarde. Os homens da luz oficial e
artificial contestam ao sol o direito de brilhar! Tal foi sempre a pretensão
deles, que são os mesmos em toda parte. Qualificaram a Sócrates de ateu, ao
Cristo de preposto de Belzebú.
Assim também foi que, em nosso tempo,
alguns fanáticos da ciência privilegiada acusaram Pasteur de exercer
ilegalmente a medicina.
A ideia de laicismo - 2
C. Wagner
Reformador (FEB)
Junho 1923
Não só, como o
provam todas as experiências, o elemento leigo é o elemento inicial das
religiões, mas também é por seu intermédio que elas se alimentam e refrescam ao
longo de toda a sua evolução e, quando a anquilose (rigidez nas articulações), a velhice, a decrepitude as atingem,
é por meio dele que se rejuvenescem.
Que teria sido das
religiões, no mundo, se, de tempos a tempos, não houvessem surgido homens em os
quais elas reviviam?
Quaisquer que
sejam a antiguidade, a beleza, o valor, a verdade fundamental de uma religião,
se ela não renasce, morre de formalismo. Renascer é a lei de toda verdadeira
vida. Preciso se faz que a religião se retempere constantemente em suas origens
leigas. Aí está a Fonte da Mocidade.
As famílias
nobres, de grande ancianidade (longo tempo de existência), cujos nomes as vezes remontam muito longe no passado, são, no entanto,
bem jovens, em comparação com o plebeísmo de que descendem, plebeísmo poderoso,
original, que faz que Carlos Magno descenda de Pepino e que tudo o que há de
nobre no mundo deva suas qualidades, seu sangue, a algum sólido plebeu que
representa o começo da raça. Do sangue vermelho do plebeu é que provém o sangue
azul das velhas famílias.
Ai destas, ai dos
países, se se não revigoram nos grandes reservatórios, nas cisternas profundas
da seiva plebeia. Secam-se lhes as medulas e um sangue empobrecido é o que lhes
corre nas artérias.
Anteu, o velho
gigante da mitologia, era invencível porque, no momento
preciso em que
seus inimigos iam obriga-lo a beijar o pó, nova força lhe advinha do contato
com a terra, sua mãe.
No mesmo caso está
a humanidade religiosa.
Chegadas a um
certo ponto de desenvolvimento, tendo-se tornado um pouco estranhos pela forma
e pelo conceito, as religiões perdem o vigor combativo e a capacidade de
conquistar, a menos que toquem o solo popular, nutriente e tonificante.
Nossos
sentimentos, mesmo os que se aplicam a vida diuturna, não se conservam bem
vivos, senão quando há neles um elemento primaveril. Só sob a condição de que
haja um pouco de amor a reflorir, todos os anos, como os rebentos novos, os
nossos sentimentos de família se mantêm verazes. De outro modo, são quais
flores fenecidas, a que somente a recordação dá valor, impregnando-as, porém,
de melancolia, Não são elas as testemunhas do que já não vive? Quantos e quantos
os lares onde a afeição já não passa de relíquia incapaz de reflorir em
manifestações novas! Quantos dogmáticos, que são simples herbários (coleção de plantas dessecadas)! Quantos credos, simples plantas
fanadas (amputadas)!
*
Pelo contato
direto com o saber de seu tempo é que um sábio, embora idoso, guarda a
frescura, e se mantém ao nível do saber moderno, mutável, a lhe crescer em
torno. Não rompeu com o seu tempo: as duas funções fundamentais da vida, da vida
comercial como de toda vida orgânica, nele se conservam. Recebe e gasta;
aprende e esquece; adquire e consome.
Aos organismos
muito velhos é comum o acidente de experimentarem profundas perturbações
funcionais. Eles guardam consigo as substâncias nocivas e rejeitam os alimentos
vivificantes. Não é essa, exatamente, a moléstia que, nos dias atuais, atacou
certas coletividades religiosas, obstinadas em excluir e expulsar o que de
melhor possuem? Outra enfermidade que se alastra nas religiões envelhecidas é a
tendência que manifestam para se declarar completas, definitivas: nada mais se
recebe e nada mais sai. Tais religiões se colocam por si mesmas em estado de
conserva. Lacrado se acha o vaso que as contém. Nele não mais penetra o ar, porque
o ar, que vivifica os vivos, destrói os mortos. E esses mortos do mundo
espiritual, que pretendem governar os vivos, declaram: Ne varietur! Sint ut sunt,
aut non sint! (‘Que não se
alterem. Que sejam como são ou deixem de existir’. Resposta do Geral dos
jesuítas, Padre Ricci, a alguém que lhe propunha modificar os estatutos da
Companhia). É a eterna
formula, não de uma só categoria de conservadores extremados, ou de um único
clericalismo religioso, mas de todos.
Nesse momento de suas
existências, as pretensões que elas alimentam se tornam uma ameaça para a vida
ambiente: as necrópoles por demais vastas comprometem a higiene da cidade.
É então que surge
a necessidade premente, que digo? O imperioso dever que temos de nos reabastecermos,
de fazermos provisão de ar puro e de pensamentos rejuvenescidos. Para nos preservarmos
das influências destruidoras que nos espiam, a nós e as nossas crenças, cada um
é convidado muito seriamente a renovar o seu patrimônio interior, a refazer o
seu inventário moral, a voltar-se sobre si mesmo. É convidado a laicificar a
sua religião, isto é, a tornar viva, atual, familiar a sua fé, tira-la do
vetusto escrínio em que já não se ousa tocar, tão venerável é ele, e a pô-la em
circulação na vida cotidiana. Aquele, que se condena a comer o pão que seus
antepassados cozeram, vem, afinal, a encontrar somente pedra. O dever de cada
geração consiste em amassar ela própria a sua farinha e cozer o seu pão. Só
assim este se lhe transformará em suco e em sangue.
Se a nossa época
se submeter a esse trabalho necessário, não só dará à sua vida uma base mais
substancial, como também se livrará ao mesmo tempo da peste de sectarismo que a
corrói. Vivendo dos elementos simplificados e puros da sua religião, cada um se
sente capaz de apreciar as dos outros. Sob todas as efígies das diversas moedagens,
descobrir-se-á o mesmo metal primitivo. Simultaneamente, cada um se terá colocado
em posição de fraternal encontro com todos os homens de boa vontade, ainda que
estranhos a qualquer agrupamento religioso. Todos os grandes movimentos de
renovação da humanidade foram movimentos de regressão para o laicismo, para a simplicidade, para a popularidade primordial.
Sempre o mesmo fenômeno:
Em meio de uma época de esterilidade espiritual, de penúria e de miséria, entre
oráculos que deixaram de falar e remédios que já não curam, um homem toma a
resolução de ser de novo, muito simplesmente, isto - um homem. Tem a coragem de
erguer a fronte para a mensagem das estrelas e de fitar com olhar tranquilo e
sincero o vórtice de sua alma. Renuncia a todas as cartas que se hão levantado
do Universo e, guiado apenas por essa palavra de ordem, obscura, mas invencível,
que Deus escreve no coração dos pioneiros, aventura-se por sobre as ondas desmedidas,
onde há riscos, mas onde é puro o ar, onde se efetuam as grandes descobertas e
de onde se veem, branqueando no horizonte, as praias dos novos mundos.
Essa coragem é a
Fé e esse homem salva-o a sua fé. Ele torna a encontrar o Deus vivo e reabre,
para os outros, as fontes da vida profunda.
A ideia de laicismo - 3
C. Wagner
Reformador (FEB)
Junho 1923
Um fato evidente
mas que pode parecer singular aos que apenas conhecem o Cristianismo através
das máscaras heráldicas e da majestade pétrea dos dogmas, é que o Evangelho, na
sua origem, na pessoa do Cristo, na pessoa dos apóstolos, na forma do ensino e
pela ausência completa de ritual, foi uma religião essencialmente e
absolutamente leiga. Já o velho Judaísmo, pelo veto de seus profetas, afastara de
seu templo as imagens visíveis de Deus, que fatalmente induzem as multidões às
grosseiras idolatrias. Conservara tão somente a habitação, mas o habitante era
espírito. Com o correr dos tempos, oh! a Casa se tornou o ídolo. E, sentado no
monte, o Cristo, quando seus discípulos, tomados de veneração pelo velho Templo
e pelas suas santas tradições, lhe disseram: “Que edifício! Que maravilha!” O
Cristo, o Filho do homem, se viu obrigado a responder-lhes: “De tudo isto não
restará pedra sobre pedra.”
Com efeito, se é
certo que nunca ninguém teve em mais alto grau do que
Jesus a veneração
de todas as tradições sagradas, o sentimento filial que se deve nutrir para com
os Paes, sentimento sem o qual não há história sólida, também é inegável que
ninguém melhor do que ele compreendeu o perigo das tradições mortas. Sabia que,
com o perpassar dos anos, em toda casa construída por mãos humanas, a Idolatria
nos espreita por detrás de todos os preceitos de lei e de todas as fórmulas de
doutrina. Sabia que, se não morre a tempo, a letra mata o espírito, como o ovo
mataria o passarinho, se não assentisse em quebrar-se, ao soar a hora do nascer
deste último.
Quando, naquela época,
acesa ia a luta entre Garizim, o templo dos Samaritanos, e Morijá, o templo dos
Judeus, e de cada um dos dois montes adversos os anátemas choviam sobre o
outro, como se continua a praticar em nossos dias, a fim de provar ao próximo
que a nossa religião vale mais do que a sua, o Cristo mostrou a sem-razão dos
dois clericalismos em guerra, dizendo: “Vem o tempo, e já veio, em que não mais se
adorará nem neste monte, nem no outro. Deus é espírito e quer que os que o
adoram o adorem em espírito e verdade.”
Ser-lhe-iam
indiferentes as formas do culto? Não. Da necessidade delas, ou, pelo menos, de
sua graça e utilidade, não tinha ele a compreensão? - Tinha-a muito bem; mas
sabia que, desde que existem o espírito e a verdade, as formas brotam
incessantemente, novas e frescas, da fonte inesgotável do coração. Sob essa
condição, exclusivamente, a forma é benéfica e não usurpa o lugar da substância.
Uma forma venerável por si mesma é inimiga do fundo e se torna, afinal, o túmulo
do espírito, com relação ao qual lhe cabe a missão de ser o envoltório maleável
e dócil.
*
O Cristo é um
leigo, um homem do povo, que nada tem que ver com a casta dos sacerdotes e não
lhes toma de empréstimo os métodos.
Ele se
consideraria traidor à sua missão, se buscasse para si outro prestígio que não
o da verdade, a brilhar com o seu brilho próprio e reclamando apenas a
homenagem das consciências retas. Propagou sua doutrina, mas sem mandato oficial
e foi um escândalo eclesiástico aquela sua maneira informe e perfeitamente anárquica,
ao parecer dos profissionais da religião, de organizar o reino de Deus com
pescadores encontrados à margem de um lago, a lançar suas redes, e que jamais
se haviam assentado aos pés dos grandes mestres da época. Entretanto, essa
aparente desordem resultava de uma ordem superior.
A fim de chegar até
ao veio profundo, onde se sente brotar das fontes eternas uma água que
dessedenta para sempre, não lhe era preciso desembaraçar-se da cegueira dos
monopólios e do orgulho dos sacerdócios? Para tocar as cordas de ouro
adormecidas no fundo do coração dos homens, as cordas divinas que ressoam ao
influxo das coisas eternas, não lhe era preciso renunciar à expressão estereotipada,
que não faz vibrar mais coisa alguma, e achar de novo, muito simplesmente, o
grito da alma humana? Não era preciso, para restaurar o ideal moral e a
santidade da vida familiar e diuturna, renunciar às pretenciosas riquezas de
uma santidade artificial, volver a essas santas banalidades de que a humanidade
é feita e dar-lhes uma expressão tão viva, tão atual, que, embora velhas como o
mundo, tais coisas parecessem novas, como a fresca manhã?
O Cristo pregou
uma religião tão leiga, que seus sacramentos são a transposição, para o
espiritual, dos atos correntes da vida; uma religião tão simples, que Deus traz
nela um nome sem qualquer lustre deste mundo, um nome não tomado aos tiranos
orientais, nem aos senhores da terra, nem aos reis que comandam e que por vezes
esmagam os povos, mas um nome colhido nos lábios das criancinhas, junto dos
berços que balançam. Nunca se saberá bem quanto são leigas todas estas coisas -
o presépio de Belém, a oficina de Nazaré, a cruz do Calvário, de um laicismo
rude e escultural, talhadas na rocha viva desta vida humana que tem por destino
ser formada de aparente miséria e de invencível grandeza, do limo da terra e do
sopro de Deus.
Quanto ao templo,
disse Ele: “Sois vós o templo de Deus; os homens são a Igreja, o edifício vivo,
cada uma de cujas pedras sois vós.” E não sabemos quão preciosas são essas
pedras; não, não sabemos, nós que nos arrastamos na lama dos caminhos de que mármore
puro somos feitos. Não sabemos, nós que apodrecemos no isolamento, longe dos
nossos irmãos, que invencível baluarte de ternura e bondade poderíamos ser. Não
sabemos com que magnífico templo, com que cúpula, vasta qual o firmamento azul,
poderíamos enriquecer a humanidade se, erguendo-nos do nosso pó, nos encostássemos
uns aos outros, como vivas pedras do templo vivo. Não sabemos quantas coisas,
para as quais os nossos olhos, hoje cegos, não têm olhares, veriam os luzir nas
nossas noites, se, afinal, a claridade, vindo de nossa alma renovada vinda do
Deus interior, iluminasse as sombrias estradas que a humanidade, há séculos,
palmilha, ferindo os pés.
Irmãos meus! Conto
ter-vos posto no começo da senda. Fareis o resto da jornada.
No princípio é que
está a religião leiga. Ela é direita, simples, desembaraçada, sem ornamento,
nem auréola, e é divina, porquanto o que é verdadeiramente humano, de uma
humanidade original e autêntica, eis o que é divino.
*
Nunca se extirpará
do coração humano a fibra religiosa. Ela faz parte do nosso patrimônio
universal. Mas, para que conserve a sua generosa influência, preciso é que se
renove em cada geração. Laicificar a sua religião é dever de todo homem, como
de toda coletividade religiosa. Nossas
almas vivem do que de leigo guardamos em a nossa religião. O bispo e o teólogo,
como os simples fieis, se acham adstritos à mesma lei. O que de mais puro, de
melhor, de mais eficaz existe no tesouro religioso que possuem são os raros
elementos simples e primitivos que eles conservaram e que se vivificam
diariamente no contato com a realidade. Esses elementos formam o capital, os
bens de raiz, o ouro em barra, com relação ao que, os dogmas, os ritos, todo o
aparelho intelectual ou cerimonial da religião figuram o papel-moeda.
Que vale o papel,
quando não mais represente riqueza realizável? Eis aí exatamente o que vale a
religião privada de sua base leiga.
Para quem tem consciência
do lugar que a religião ocupa no mundo, é que se mostra a necessidade urgente e
o imperioso dever dos tempos atuais. Se a nossa época se submeter a esse
trabalho indispensável, não só dará à sua vida, ameaçada de inanição moral,
mais substanciosa base alimentar, como também se livrará da peste de sectarismo
que a devora. As sociedades se retalham em seitas, quando perdem o hábito de
volver tais fontes, ao mesmo tempo que o uso de pensar por si mesmas. Logo que
se tenta esse passo sério em busca do essencial, as coisas secundarias passam a
plano inferior.
Ora, é sempre por
amor destas últimas que os homens se dividem. Mutuamente nos dilaceramos,
porque vivemos na superfície; nas profundezas, fraternizaríamos pelas raízes. O
sectário religioso ou leigo, apenas uma coisa esqueceu, a única que tem real
valor: que ele é um homem. Ao sectário, é sempre estranho tudo o que tenha caráter
humano.
Muito se fala de cisma
e não é de admirar: o cisma prolifera por toda parte. Todo grupo mostra tendência
a se fracionar em subgrupos e os homens se saúdam a golpes de anátemas. Que anacronismo!
Como pode ser que, neste tempo, a que a
história deu as suas grandes lições de unidade, a que a ciência forneceu as provas
da solidariedade fundamental e os mais amplos meios de realiza-la, só tenhamos
libertos os olhos para o que nos divide? Que oposição entre a amplitude dos
nossos destinos e a estreiteza das nossas vistas! Quem nos veja, cada um entrincheirado
na sua caverna, terá a impressão de que somos trogloditas.
O momento que
passa, porém, não pede almas de trogloditas, pede homens animados de espírito
vasto, fraterno, verdadeiramente católico, isto é, universal. Dá-se assim que,
por surpreendente contraste, os termos leigo e católico, um significando
popular, universal o segundo, são meros sinônimos de outra palavra capaz de
absorve-los ambos, a palavra: humano.
Limpe-se, pois, do espirito hierárquico cismático a religião, cujo dever é
tender sempre para o universal, não pelo espírito de dominação, mas pelo amor;
não se separe nem da família, nem do pensamento vivo, nem do espírito público,
nem dos crentes que estão de parte! Limpem-se também, por sua vez, do espírito cismático
os que fazem profissão de laicismo; deixem de excluir do patrimônio humano a
fibra religiosa, que é fibra vital! Faça-se mais leiga a religião e que o espírito
leigo cultive melhor seus domínios religiosos! E teremos achado a fórmula do
futuro.
*
Assim é que
precisamos, em o nosso tempo, encontrar de novo a Fé. Segundo a palavra da
Escritura, ela não está no céu, onde não poderíamos procura-la, nem além dos
mares longínquos: está nos nossos lábios, está nos nossos corações.
Tenhamos
simplesmente a coragem de ser homens; executemos este ato interior, o mais
audacioso que uma criatura possa praticar; abramos crédito, crédito ilimitado,
ao Poder paternal em que o mundo repousa. Sejamos crentes, como os rochedos em
suas bases, como os pássaros que batem as asas para regiões que nunca viram,
mas certos, de instinto, que as encontrarão.
Sejamos homens
pela Fé profunda na humanidade; amemos à velha família dolorosa e militante.
Lembremo-nos de que o nosso primitivo plebeísmo constitui a maior riqueza e que
o santuário mais antigo, mais venerável, não construído por humanas mãos e que
jamais nenhum martelo do tempo reduzirá a pó, é o santuário humano, primevo,
leigo, edificado pelo próprio Deus, capaz de renascer sob formas novas, em cada
idade diferente. Para a manutenção desse santuário trabalharam todos os que hão
proporcionado à humanidade um pouco de ar fresco, quando ela gemia em espaços
confinados.
Nessa tarefa
trabalharam os profetas, o Cristo, os mártires, os reformadores, todos os que,
pertencendo a não importa que religião, pela forma exterior, comungaram, nos
momentos mais sagrados de suas vidas, na substância profunda da humanidade, e
que são irmãos de seus irmãos, por cima das muralhas de Morijá e das barreiras
de Garizim.
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