Croniqueta – 5
Manuel Quintão
Reformador (FEB) Julho 1923
São os livros, como os amigos: há-os
bons, leais, verdadeiros, benéficos; e
há-os maus, insidiosos, intrujões e perigosos.
Se, porém, aos maus amigos é licito e,
por vezes, fácil eximir-nos esquecendo-os e perdoando-os, aos maus livros nem é
fácil esquecer nem é licito perdoar, atento que nos deixam n'alma, após forçada
intimidade, resíduos de visco e amaritudes de fel.
Dos falsos amigos poderemos
esquivar-nos no primeiro contato de arrepio; dos livros falsos, nem sempre
porque vamos no afã de melhor julga-los, ou ainda por dever de os julgar,
confiados na sua passividade muda, ao extremo de lhes haurir o vírus todo ao
dobrar da última página.
*
E foi o que nos sucedeu ainda agora com
“O Retorno”; pretensa novela espiritista de uma Sra. Carmen de Burgos, traduzida
do castelhano por uma outra senhora portuguesa - Maria de Lima --e lançada pela
Lusitânia Editora
Ltda. de Lisboa.
Do ponto de vista literário, não cabe dizer
aqui.
O que nos interessa é o ponto de vista
doutrinário em que se colocou porventura ou desventura, a autora, para nos dar
uma obra de falso quilate, a
menos que fosse seu intuito lançar ao público
despercebido do assunto e ao proselitismo bisonho a tarrafa (rede) tão
só da rotulagem, para colimar (acertar) na essência a propaganda negativa.
*
De fato, essa novela que, pelo título
sugestivo e com iluminuras na capa, se inculca baseada em fatos reais, não passa,
no âmago, de um heteróclito (extravagante) acervo de incongruências e absurdos, de inverdades e
fantasias, transparentes, certo, aos olhos do crente consciencioso e senhor da
tese, mas de molde a intimidar os simples e ignorantes do que seja o verdadeiro
Espiritismo.
Para corroborar o asserto, bastaria
transcrever aqui, o conceito com que a
ingenuidade ou a má fé preconcebida da novelista remata a
sua obra, pondo na
boca de Barnabé estas palavras:
“...
Que lhe importava que o conhecimento do nosso destino fosse o mais necessário,
se o estudo da vida de tal modo lhe tirava o prazer de viver? Sobretudo -
pensava - não me acercarei mais da morte! Há nela um contágio, uma enfermidade,
uma virulência perigosa...”
Nós, por nossa parte, não sabíamos nem
jamais sentimos que a investigação do nosso destino pelo Espiritismo roubasse às
criaturas o prazer da vida. Ao menos os nobres, que não os bastardos. Mas,
também, quem mandou a ilustre escritora meter-se com aquela gente e com
semelhantes processos?
*
Sejamos justos, porém: a escritora, que
tentou uma novela espiritista, é
lógica em suas conclusões, pois vimos que ela, com o seu
Espiritismo de “AIfama” (asilo), enlouqueceu e matou diversos dos seus personagens.
Matou-os, sim, até de modo inusitado e
pitoresco, qual aquele pobre engenheiro, o Afonso Nunez, mordido na nuca por um
efialta (pesadelo) ciumento (pág. 65).
Nem se ria o leitor, pois há coisas
nesse livro ainda mais interessantes como, por exemplo, aquele bom médico
Pereira, que acaba, coitadinho, ensandecido, por haver matado uma alma!!!
(Ainda bem que as três exclamações não
são nossas, mas da própria autora.)
Há, ainda, espíritos que predizem a sorte
grande, outros que amam o médium Dora, ciumenta, carnal, ferozmente. (Pág. 163)
Em sessões improvisadas a mesas de um
Balneário, sobre a lousa de um túmulo ou ainda naquela alfurja (pocilga) avinhada
e sórdida do bairro da “Alfama” que é como quem diz a “Favela” de Lisboa, não
viriam, não poderiam vir espíritos elevados, espíritos de luz, desses que
estruturam e norteiam a Revelação Espírita para a sua finalidade cristiana e
superior.
Era, pois, natural que redundasse tudo
em uma choldra. (algo imprestável)
Mas, daí, talvez, a autora nem se
precate da existência de tais espíritos.
Se lá em Portugal a prática do
Espiritismo se pode inferir pelo que insinua
e predica “O Retorno”, é caso de dar pêsames aos nossos
caros irmãos portugueses, que até agora, não colheram da Árvore da Ciência do
Bem o seu lídimo, dourado e apetitoso fruto.
Fiamos, porém, que assim não seja e o
dizemos com tanto maior segurança quando vemos que, a respeito do nosso país,
as citações são de uma infidelidade e de uma infelicidade flagrantes.
Assim é que no Rio de Janeiro “existia
uma casa em que ninguém entrava
em ser recebido a bofetadas e o governo enviou várias
vezes soldados, que foram vencidos e desarmados pelos espíritos.”
E, porque, nem os próprios bombeiros
conseguissem lá entrar – “foi preciso largar-lhe fogo, ardeu, sem que se visse
ali ninguém”.
Desta patranha (narração mentirosa) a
escritora não assume a paternidade e põe-na à boca de um uruguaio.
Ainda bem...
*
A ignorância e má vontade sobre o nosso
país são portas de manifesto, aliás, em todo o livro: assim é que, analisando a
sociedade internacional do Balneário do Estoril, há lá uma brasileira “que
perseguia um engenheiro belga com ternura, a todos causando riso.”
*
Dora, aquela médium de aspasiana (Aspásia - sofista grega nascida na cidade de Mileto), a mesma que “flirta” (flerta) com os
desencarnados e lhes aguça os instintos caninos, supõe, ou antes afirma que “espíritos
sofrem porque anseiam por estar neste mundo”. Mal comparando, é como quem diz
que os homens, todos os homens, sofrem por estar fora da Penitenciária ou do
Hospital.
Entretanto, que diz a Revelação?
- Que os espíritos só reencarnam neste
nosso mundo impelidos pela necessidade de reparação, tocados de arrependimento,
o que não deve ser, em regra, coisa muito agradável.
De outra feita, Barnabé nota que “todos
os espiritistas são pálidos, secos, distraídos, com um ar de quem está de
passagem neste mundo”.
E aquela pobre rapariga noiva, que se
matou no dia em que o pândego do noivo já falecido lhe afirmou não voltaria a
manifestar-se? (Pág. 226.)
Por outro lado, naquelas sessões da “Alfama”,
“enlouquecia muita gente”.
Mas o melhor, o que toca as raias do inédito
é aquela de que os espíritos (sic) dos gatos, cães e outros animais “também encarnam
e há quem assegure que, quando o fazem num ser humano, são idiotas nas
primeiras encarnações”.
(Pag.79.)
Finalmente, o que nos faz suspeitar da
identidade deste livro é aquele remate do último capítulo – “Campo dos Mortos”.
Aliás, a sua autora, se fosse crente,
sincera, orientada e catequista, não se
deixaria empolgar pela dramaticidade do ambiente,
dando-nos uma página de mera, de pura ficção, com chocalhares de fêmures e tíbias
“e uma caveira a rolar
como
se houvesse dentro um rato...
Poderia, simplesmente, bater a chapa e
apresentar aos seus inadvertidos leitores o possível retrato do malgrado engenheiro
Afonso Nunez, para que o estonteado, fútil e libidinoso Barnabé levasse a Madri
a prova definitiva e real da sobrevivência da alma.
Isso era fácil, racional, lógico e
teria a vantagem de atenuar os atentados cometidos contra o verdadeiro espírito
doutrinário em que a sua autora pretendeu antes justificar uma obra
materialista com rótulo de Espiritismo.
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