A Lei Áurea
por Ismael
Gomes Braga
Reformador
(FEB) Maio de 1943
Os Brasileiros comemoramos a 13 do mês
corrente o quinquagésimo quinto aniversário do Decreto que aboliu no Brasil a
escravidão e que passou à história com o título de lei áurea. Por feliz coincidência,
essa lei de tanta significação moral, pela qual durante um século se elevaram
ao céu as preces de milhões de mulheres brasileiras, senhoras e escravas, foi
assinada e posta em vigor por uma mulher, a excelsa princesa Isabel, regente do
Império. Enquanto os abolicionistas lutavam pela imprensa e pela palavra, com
agitação e bravura, as mulheres em seus oratórios, nos templos, nos lares,
rezavam, implorando a Deus a abolição da escravidão. Conhecemos um devocionário
católico diariamente usado por uma veneranda matrona de nossa família, no qual
as páginas
onde se encontrava a prece pela libertação dos escravos estavam cortadas pelos
dedos da devota senhora, devido ao uso por mais de meio século.
Quanta compaixão inspirava aos corações bem
formados aquele estado civil injusto, que sacrificava milhões de irmãos nossos privando-os
de todos os direitos! Mas, assim como havia senhores tiranos e cruéis, que eram
algozes dos seus escravos, tornando-lhes a vida um perpétuo martírio, havia
sentimentos sublimes em corações sensíveis, que viam nos escravos vítimas
indefesas de uma injustiça social. Principalmente nas mulheres, encontravam-se
não raro esses corações que envolviam em amor materno os cativos e se
identificavam com a dor deles. O Cristianismo estava dividido em duas instituições,
que de comum só tinham o nome: o Cristianismo oficial e acomodatício, que
tolerava a escravidão como mal irremediável, e o Cristianismo do Cristo, que
orava e chorava com os escravos, de olhos fixos no Céu, esperando o fim
daquelas amargas expiações. Foi este último que venceu, por fim, no dia 13 de
maio de 1888.
Quanta sublimidade houve naqueles séculos
tristes e trevosos! Quantos milagres operados pelas almas de escravos mártires!
Lá naquele alto estava a cruz onde morreu Pai João, e minha caridosa sogra ia,
com mãos piedosas, orná-la de flores e orar de joelhos, implorando a proteção
de Pai João para os seus algozes e para seus irmãos de cativeiro, porque Pai João
foi santo e mártir. Nenhuma alma angustiada que se voltasse para ele deixava de
ser prontamente atendida. Aquela cruz no cimo do monte era o único altar de Pai
João. Ele não foi canonizado oficialmente pela Igreja, mas foi santificado por
quantos lhe conheceram as qualidades e o martírio.
Os escravos herdados por meu avô receberam
carta de alforria, ficaram livres, ao lhes morrer o velho senhor e ao serem
arrolados como patrimônio dos herdeiros; nunca, porém, abandonaram o trabalho,
nem o lar senhoril, do qual se tornaram os filhos mais devotados. Eram almas
sublimes, cheias de reconhecimento e bondade, capazes de todos os sacrifícios.
Ao recordarmos hoje que, nos primeiros anos
de existência de nossa imprensa espírita, uma de suas tarefas era trabalhar
pela abolição da escravidão, como ainda se vê nas velhas coleções de Reformador,
de 1883 a 1888, não devemos esquecer o lado sublime daquela Instituição milenária.
Quantos Espíritos culpados vinham a este mundo de expiações e de provas para
reparar pesadas faltas e encarnavam como escravos! Faziam numa só encarnação
gigantesco progresso espiritual, alcançando depois da morte a
verdadeira libertação, por isso que já não eram escravos do pecado e do
remorso.
A escravidão é quase tão antiga quanto o
aparecimento do homem na face da Terra. Houve escravos entre os Romanos, entre
os Gregos, entre os Hebreus, entre os Egípcios. Em Esparta, houve tempo em que
os senhores se tinham tornado fracos, na opinião oficial, e os escravos se
revoltaram; por isso, foi decretado que, ao menos uma vez por ano, os senhores
eram obrigados a entregar seus escravos, a fim de serem surrados em público,
por melhores que fossem, somente para que conservassem a humildade e a
constante lembrança da sua condição de escravos. Eram surrados
obrigatoriamente, mesmo contra a vontade dos senhores, a fim de não se tornarem
altivos e rebeldes. A instituição mesma, portanto, era terrível monstruosidade
e só compreensível em um mundo de grande inferioridade moral, planeta de
expiações e de provas,
como nos vieram revelar os Espíritos Superiores em as obras de Kardec, no século passado.
Felizmente, o planeta e seus habitantes progrediram
e chegou o fim da escravidão no mundo todo. A presente guerra já pôs fim à escravidão
até nos pontos mais remotos da África onde ainda existia. Em nenhum lugar do
mundo existe hoje a escravidão legalmente permitida. Se em certos pontos do
planeta ainda há quem proceda como senhor de escravos, tal procedimento é
ilegal, criminoso e terá que desaparecer rapidamente
pela aplicação das leis.
O mundo já entrou em nova fase de
progresso. De mundo de expiações e de provas já está passando a mundo
regenerador. Já está reconhecido o direito humano da igualdade e da fraternidade;
todas as classes têm direito à proteção legal; a legislação trabalhista
progride e melhora sempre, amparando cada dia mais os homens menos protegidos
da fortuna, que se não podem defender por si mesmos. Estamos rumando para a
felicidade social, para a liberdade, para a justiça. As nações que se batem na
presente guerra, ao lado do Brasil, desfraldaram a bandeira de quatro
liberdades fundamentais, indispensáveis ao homem, e nesse sentido estamos em
plena campanha abolicionista novamente. As quatro liberdades fundamentais que
as Nações Unidas querem estabelecer em todos os rincões do planeta são as seguintes:
1º) Liberdade de palavra e de expressão do
pensamento.
2º) Liberdade religiosa ilimitada.
3º) Libertação das privações econômicas,
isto é libertação de todos os homens da miséria e da falta das coisas necessárias
à vida.
4º) Vitória contra o medo, isto é, libertar
os homens e os povos de todas as ameaças que lhes possam dificultar a prática e
o pleno gozo das três liberdades precedentes.
São essas quatro liberdades fundamentais
que as Nações Unidas querem para si mesmas e para seus inimigos. Logo, estamos
na grande guerra abolicionista do século vinte, talvez mais significativa do
que as do século dezenove. Os nossos irmãos da Pátria, do Continente, da
Humanidade estão dando seu sangue e sua vida para abolir do mundo quatro formas
de escravidão ainda sobreviventes: 1º) a
escravidão do pensamento; 2º) a escravidão religiosa; 3º) a escravidão econômica;
4º) a escravidão do medo.
Essas quatro formas de escravidão, menos
palpáveis do que a antiga, não são menos terríveis, porque sacrificam povos
inteiros e destroem a dignidade humana, arrastando pela violência massas
imensas de homens à morte e ao crime; lançando o terror nas almas, fazendo do
mundo um inferno de negros pavores.
Sem a conquista destas quatro liberdades
fundamentais, o ideal cristão não pode ser praticado na Terra, será apenas um
sistema moral ideal, porém sem vida real. Sem liberdade de pensamento, o
Cristianismo não pode ser nem concebido, porque ele responsabiliza o homem
pelos seus pensamentos e não pode existir responsabilidade sem liberdade. Sem a
liberdade religiosa, igualmente, não podemos conceber o Cristianismo,
que exige de nós o amor a Deus sobre todas as coisas e o amor ao próximo como a
nós mesmos, porque só pode amar quem tem liberdade de adorar a Deus como o
possa conceber. Dentro da escravidão econômica, tendo que defender pelas armas
a propriedade contra os outros filhos de Deus que dela necessitem e se sintam
privados, igualmente seria utópica a moral de Jesus, que é toda de fraternidade
e amor ao próximo. Nos regímens de medo, também, seria impossível ao homem
fazer do livre arbítrio
o uso que lhe exige o Cristianismo.
A nova guerra abolicionista que estamos
vivendo e que poderá durar muito tempo; que poderá não alcançar de uma só vez
suas finalidades e ter de prosseguir no após guerra, durante séculos, não é
menos importante do que as do século passado, repetimos, embora seja menos
compreensível para a maioria dos pensadores. Se, pela abolição da escravidão,
durante milênios houve lutas e foi derramado sangue generoso na Grécia, em
Roma, no Egito, nos Estados Unidos, em sacrifícios belos e grandiosos, que
culminaram na Lei Áurea que hoje festejamos no Brasil, não menos sacrifícios
merece a nova campanha que tem por alvo libertar toda a humanidade e
estabelecer a liberdade e a
justiça sobre a Terra.
Assim como as nossas avós oravam pelo
triunfo do ideal abolicionista no século passado e confundiam suas lágrimas com
o sangue dos escravos, oremos também nós pelo triunfo dos princípios por que se
batem hoje os povos da América, pelos princípios, somente, não pelos imperialismos
que possam surgir à sombra desses princípios, em consequência dos ódios que a
guerra sempre desencadeia.
Imploremos a Deus que todos os povos,
inclusive os nossos atuais inimigos, em futuro próximo venham a gozar das
quatro liberdades fundamentais da bandeira das Nações Unidas. Só então o
Cristianismo do Cristo -com ou sem o rótulo cristão-- entrará em pleno vigor no
nosso mundo. Para nós espíritas, o rótulo nada vale, é apenas uma palavra e
muitas vezes uma palavra empregada fora do seu sentido próprio. O que vale são
as ideias e os sentimentos, quaisquer que sejam os nomes ou as formas externas
sob que se manifestem.
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