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sexta-feira, 2 de abril de 2021

O ‘Livro dos Espíritos’ entre os selvagens

 


O ‘Livro dos Espíritos’ entre os selvagens

             Prezadíssimo Senhor Allan Kardec,

             Desculpa-me por não vos escrever em francês, compreendo essa língua pela leitura, mas não posso escreve-la correta e inteligentemente.  

            Frequento há muito mais de dez anos as populações aborígenes que habitam a vertente oriental dos Andes, em terras da América, nos confins do Peru. Vosso Livro dos Espíritos, que adquiri em uma viagem a Lima, acompanha-me nestas solidões; dizer-vos que o li com avidez e que o leio sem cessar, não vos de admirar; assim, não viria vos interromper por tão pouca coisa, se não tivesse o desejo de obter de vós alguns conselhos que espero da vossa bondade, não duvidando que os vossos sentimentos humanos não estejam de acordo com os sublimes princípios de vosso livro.

            Esses povos que chamamos selvagens, não o são tanto quanto o julgamos geralmente; se se quer dizer que habitam cabanas em lugar de palácios, que não conhecem nossas artes e nossas ciências, que ignoram as práticas das pessoas civilizadas, são verdadeiros selvagens; mas quanto ao que diz respeito à inteligência encontra-se entre eles ideias de uma justeza maravilhosa, grande finura de observação e sentimentos nobres e elevados. Eles compreendem com surpreendente facilidade e tem um espírito, sem comparação, menos pesado que os camponeses da Europa. Desprezam o que lhes parece inútil em relação à simplicidade suficiente ao seu gênero de vida. A tradição de sua antiga independência é sempre vivaz neles e por essa razão tem invencível aversão a seus conquistadores; mas embora odeiem a raça em geral, ligam-se aos indivíduos que lhes inspiram absoluta confiança...

            É a essa confiança que devo viver em sua intimidade e quando estou no meio deles, estou em maior segurança do que em certas grandes cidades. Quando os deixo, ficam tristes se não prometo voltar; quando volto toda tribo está em festa.

            Estas explicações eram necessárias pelo que se vai a seguir. Eu vos disse que tinha comigo “O Livro dos Espíritos’. Tive um dia a fantasia de lhes traduzir algumas passagens e fiquei muito surpreendido de ver que eles o compreendiam melhor do que eu pensava, em virtude de certas observações muito judiciosas que faziam. Eis aqui um exemplo:

            A ideia de reviver na Terra lhes parece perfeitamente normal e um deles me disse um dia: Depois que morremos, poderemos nascer entre os brancos? – Certamente, respondi-lhes. – Então tu és talvez um de meus parentes? É possível. É sem dúvida por isso que és bom para nós e que nós te amamos? É ainda possível. Então, quando encontrarmos um branco, não lhe devemos querer mal, porque talvez seja um de nossos irmãos.  

            Admirareis, sem dúvida, como eu, por essa conclusão de um selvagem e o sentimento de fraternidade que lhe fez aparecer. De mais a ideia dos Espíritos não é nova para eles: está em suas crenças, e eles estão persuadidos de que se podem entreter com os seus parentes mortos e que estes vem visitar os vivos. O ponto importante é que se pode tirar partido disso para moraliza-los e não creio que seja coisa impossível, porque não possuem eles ainda os vícios da nossa civilização. É esse o ponto em que tenho necessidade da vossa experiência. É um erro, na minha opinião, que não se pode influenciar as pessoas ignorantes senão falando-lhes aos sentidos; penso ao contrário que é entretê-los em ideias estritas e desenvolver neles a superstição.

            Creio que o raciocínio, quando se o sabe colocar ao alcance das inteligências, tem sempre influencia mui duradoura.

            À espera da resposta com a qual tereis a bondade de favorecer-me, recebei etc.

                         Don Fernando Guerrero (Da Revue Spirite)  


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