O ‘Livro dos Espíritos’ entre os selvagens
Prezadíssimo Senhor Allan Kardec,
Frequento há muito mais de dez anos as populações
aborígenes que habitam a vertente oriental dos Andes, em terras da América, nos
confins do Peru. Vosso Livro dos Espíritos, que adquiri em uma viagem a Lima,
acompanha-me nestas solidões; dizer-vos que o li com avidez e que o leio sem
cessar, não vos de admirar; assim, não viria vos interromper por tão pouca
coisa, se não tivesse o desejo de obter de vós alguns conselhos que espero da
vossa bondade, não duvidando que os vossos sentimentos humanos não estejam de
acordo com os sublimes princípios de vosso livro.
Esses povos que chamamos selvagens, não o são tanto
quanto o julgamos geralmente; se se quer dizer que habitam cabanas em lugar de
palácios, que não conhecem nossas artes e nossas ciências, que ignoram as
práticas das pessoas civilizadas, são verdadeiros selvagens; mas quanto ao que
diz respeito à inteligência encontra-se entre eles ideias de uma justeza
maravilhosa, grande finura de observação e sentimentos nobres e elevados. Eles
compreendem com surpreendente facilidade e tem um espírito, sem comparação,
menos pesado que os camponeses da Europa. Desprezam o que lhes parece inútil em
relação à simplicidade suficiente ao seu gênero de vida. A tradição de sua
antiga independência é sempre vivaz neles e por essa razão tem invencível
aversão a seus conquistadores; mas embora odeiem a raça em geral, ligam-se aos
indivíduos que lhes inspiram absoluta confiança...
É a essa confiança que devo viver em sua intimidade e
quando estou no meio deles, estou em maior segurança do que em certas grandes
cidades. Quando os deixo, ficam tristes se não prometo voltar; quando volto
toda tribo está em festa.
Estas explicações eram necessárias pelo que se vai a
seguir. Eu vos disse que tinha comigo “O Livro dos Espíritos’. Tive um dia a
fantasia de lhes traduzir algumas passagens e fiquei muito surpreendido de ver
que eles o compreendiam melhor do que eu pensava, em virtude de certas
observações muito judiciosas que faziam. Eis aqui um exemplo:
A ideia de reviver na Terra lhes parece perfeitamente
normal e um deles me disse um dia: Depois que morremos, poderemos nascer entre
os brancos? – Certamente, respondi-lhes. – Então tu és talvez um de meus parentes?
É possível. É sem dúvida por isso que és bom para nós e que nós te amamos? É ainda
possível. Então, quando encontrarmos um branco, não lhe devemos querer mal, porque
talvez seja um de nossos irmãos.
Admirareis, sem dúvida, como eu, por essa conclusão de um
selvagem e o sentimento de fraternidade que lhe fez aparecer. De mais a ideia
dos Espíritos não é nova para eles: está em suas crenças, e eles estão
persuadidos de que se podem entreter com os seus parentes mortos e que estes
vem visitar os vivos. O ponto importante é que se pode tirar partido disso para
moraliza-los e não creio que seja coisa impossível, porque não possuem eles ainda
os vícios da nossa civilização. É esse o ponto em que tenho necessidade da
vossa experiência. É um erro, na minha opinião, que não se pode influenciar as pessoas
ignorantes senão falando-lhes aos sentidos; penso ao contrário que é
entretê-los em ideias estritas e desenvolver neles a superstição.
Creio que o raciocínio, quando se o sabe colocar ao
alcance das inteligências, tem sempre influencia mui duradoura.
À espera da resposta com a qual tereis a bondade de
favorecer-me, recebei etc.
Don Fernando Guerrero (Da Revue Spirite)
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