As indulgências
por Henri Constant
Reformador (FEB) Novembro
1917
O catolicismo mais e mais tende a materializar a
religião, a fazer consistir a virtude nas práticas externas, e concentrar as
faculdades do espirito na observância de ritos múltiplos, na veneração de
grande número de amuletos, ao quais liga importância capital, a ressuscitar, em
suma, o paganismo no que ele tinha de mais baixo e grosseiro. Podemos formar um
juízo a respeito, examinando o enxame de livrinhos de piedade, que parecem destinados
a rebaixar a inteligência e falsear o senso moral.
Citemos, por exemplo, O
Memorial das indulgências, do abade ***, aprovado por sua Eminência o
cardeal Dupont, arcebispo de Bourges.
O espírito do livro revela-se de todo na epígrafe “Para ser um santo basta ganhar o maior número
possível de indulgências.” (S. Afonso Liguori).
Assim, para merecer a apoteose, para figurar na categoria
dos eleitos, que a igreja venera e nos propõe como insignes modelos, não é mister
que o homem desenvolva as suas faculdades, prime pelas qualidades do espírito e
do coração, dedique-se à humanidade, concorra para o progresso social, trabalhando
em benefício de seus semelhantes, como poderiam fazê-lo os heróis do paganismo.
Para atingir a perfeição, deve o católico romano cumprir as cerimônias minuciosas
que a igreja exige afim de livra-lo das penas do purgatório. Deve ocupar-se,
exclusivamente, de si, ganhar bons pontos para alcançar o céu, de modo que, ao
terminar a peregrinação terrestre, possa apresentar-se ante o juiz supremo com
isenções equivalentes aos castigos que lhe poderiam ser infligidos.
Tal é o fim único da vida.
– Que importa os grandes interesses da humanidade: Para que servem as artes, as
ciências, as indústrias?
Misérias? Podem ser objetos de suas cogitações a pátria e
a família?
O devoto não se incomoda com essas ninharias.
A sua grande preocupação, a preocupação máxima é fugir ao
fogo expiatório, evita-lo, com previdência e meticuloso cuidado, estabelecendo
o balanço com débito e crédito para encerra-lo, ficando o seu Deus como devedor.
Aí está a sublimidade da perfeição, a quintessência da virtude, o grande esforço de beatice.
Para que o devoto possa alcançar esse magnífico fim, foram
postos à sua disposição muitos meios e expedientes engenhosos. Cumpre-lhe
recitar fórmulas, dotadas de virtudes cabalísticas, e trazer consigo certos
objetos que operam para a salvação.
É incalculável o número de processos mecânicos que o
poder eclesiástico inventou para que o devoto consiga chegar a esse grão de
perfeição. As horas do dia são insuficientes para a realização das cerimônias
exigidas.
Lancemos um rápido golpe de vista sobre o material da
devoção.
Há o esculápio apostólico, bento pelo papa. Este esculápio,
as cruzes, medalhas bentas pelo papa. Este esculápio, as cruzes, medalhas e
estatuetas trazem numerosas indulgências.
Há o esculápio ordinário ou de S. Domingos, composto de
cinco dezenas. É necessário que o devoto o carregue e recite, quando funciona, 15
‘pater’ e 15 ‘ave’. Existe também o esculápio brigitté,
pardo e largo. Convém usar de todos eles acumulando destarte os respectivos
benefícios.
O esculápio pardo foi trazido do céu pela Virgem, que o
entregou S. Simão Stoek, dizendo-lhe: “Quem
morrer, revestido deste hábito, não sofrerá as chamas eternas.”
O papa João XII, usando do seu poder infalível, decidiu
pela bula sabatina: 1º que não irá para o inferno o confrade que falecer com o
esculápio; 2º que, se tiver de passar pelo purgatório, Maria dele o livrará, ao
primeiro sábado seguinte à morte.
Graças,
pois, a esse maravilhoso talismã, a estadia no purgatório reduzida ao prazo
máximo de seis dias. Será como uma viagem de recreio... Dizem que os Brâmanes prometem
o céu aos fiéis que segurarem, na ocasião da morte, um rabo de vaca. Esses idolatras
ignoram que a salvação depende, não da cauda de um bovino, mas da posse de esculápio.
É deste que depende sim, o destino transmundano.
Tem certo mérito o esculápio vermelho, que foi descoberto
por um religioso anônimo; mas desmaiam as suas virtudes em face do azul, que pode
ser considerado como o rei do esculápios.
“Quem possuir o e esculápio azul, todas as vezes que recitar
(sejam cem vezes por dia) seis pater,
ave e gloria, quer em repouso, quer trabalhando, ganhará todas as indulgências
da terra santa, das sete basílicas de Roma, da Porciúncula e do apóstolo S. Tiago
de Compostela, na Galícia.”
É o que consta de um Breve do Papa Pio IX, datado de 14 de
Abril de 1854.
“Essas indulgências
são prodigiosas (sic).”
Calculando-as, afirmou S. Afonso de Liguori que as plenárias
atingem a 533 e a parciais são inumeráveis. Assim, pondo à margem a últimas,
basta a recitação de seis pater, ave
e gloria para a libertação de 533 almas do purgatório inclusive a do rezador, porque,
está claro, a caridade bem entendida começa por casa.
Eis aí um meio fácil, que fica ao alcance de toda gente, ameaçando
o purgatório de ser transformado em deserto.
Alguns doentes, usando de específicos, que curam pela
certa, segundo os rótulos dos frascos, empregam, não obstante, por cautela, outras
drogas terapêuticas.
Os devotos procedem de modo um pouco semelhante.
Apesar da multidão de rosários, de medalhas e esculápios,
ainda recorrem, por segurança ao cinto ou cordão de Thomas de Aquino, fabricado
de fio branco com quinze nós e benzido por frade dominicano, sob pena de nulidade.
Deve ser conservado, dia e noite, preso à cintura.
São também afamados pela prodigiosa eficácia os cordões
de Francisco e de S. José, principalmente o último com os sete nós que simbolizam
as sete dores e as sete alegrias do santo.
Eis aí o fiel devoto ajaezado da cabeça aos pés,
carregado de bugigangas, defendido por uma completa armadura para desafiar, resistir
e vencer os poderes infernais.
Ainda
há mais.
O citado memorial, que é um resumo de volumosas obras
dadas à publicidade sobre o assunto, contém preciosas indicações para uso da beatice.
Ensina as fórmulas, que devem ser recitadas nas diferentes
horas do dia, nos dias de cada ano e em circunstâncias ocasionais. As
recitações trazem, estas, quarenta, aquelas, cem dias de indulgências. Perfazem
assim importante soma levada a crédito do devoto. Compenetrado do valor dessas
práticas, não omitirá nenhuma, cumprirá, pontualmente, as prescrições das bulas
e indultos.
Toda a sua existência será consagrada a este duplo
trabalho: munir-se de amuletos e recitar literalmente, as fórmulas das rezas. Escrupuloso
discípulo de Liguori supõe que a existência lhe foi concedida para ganhar
indulgência.
Podemos facilmente prever o resultado de tais práticas habituais
e prolongadas. Atrofiam-se os mais
nobres sentimentos, a inteligência declina e o homem se embrutece. Estranho às
coisas da vida, desprezando os deveres sociais, só se preocupa com purgatório.
Esse ente degradado, profundamente egoísta, nos é,
entretanto, apresentado como o tipo modelar do fiel católico romano...
(Extraído de “Le
Christ, le Christianisme et la Religion de L”Avenir” por Henri Constani)
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