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quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Cinzas do meu cinzeiro...



Cinzas do meu cinzeiro...
Manoel Quintão
Reformador (FEB) Fevereiro 1943


Mãos coladas ao gradil do portão, aquele sujeito galgaz e caveiroso, solenemente metido na lustrosa sobrecasaca preta, deu-me a impressão de um exótico faquir indiano.

Do alto da escada, por atender-lhe as palmas nervosas, toadas no ambiente da manhã clara, eu estaria, de manifesto, a falar com os olhos, da minha surpresa, porque o homem foi logo dizendo:

- O Sr. Quintão não me conhece ... mas eu o conheço muito bem.

- Felicito-o, então, porque a verdade é que eu mesmo não me conheço muito bem...

- Da Federação Espírita.

- Pois queira entrar.

*

Depois, na sala de visitas, assentando-se, algo impressionado com um retrato de Bezerra:

- Desculpe-me procura-lo tão cedo; mas, venho de há muito adiando esta visita que representa mais que uma visita, porque é antes fraternal confidência e resgate de uma velha dívida de gratidão. Sim, eu precisava dizer-lhe, de viva voz, que o senhor Quintão me salvou a vida.

Não me contive que lhe não repicasse com uma pontinha de humorismo:
- Pois olhe, meu caro senhor, que nunca tive vocação para surdista (tocador de surdo) ...
- Por quem é, não graceje; ouça a minha história e depois me dará razão.
- Neste caso, fale e que Deus nos ouça.

Perfilou-se na cadeira, limpou os óculos de míope, e depois de olhar-me fixa e demoradamente, assim começou:

*

- Chamo-me Francelio Moura (1), tenho 56 anos de idade e sou funcionário público, aposentado. Minha vida social de burocrata nada oferece de interessante. Cedo atrelado à zorra da vida pela vida, procurei viver como toda gente, sem maiores aspirações de glória ou de fortuna. Cético por índole e quiçá por deficiência de educação religiosa, não cheguei nunca a considerar a hipótese de uma outra existência, além da que me tocava os sentidos. O mundo era uma fatalidade e a vida uma incógnita, a resolver-se noutra incógnita - a morte. Meu ideal se resumia então, unicamente, na constituição de um lar de uma família amorável e amorosa, que me compensasse a íntima aridez d’alma, oriunda, quiçá, de uma prematura orfandade. Porque a verdade é que perdi pai aos 6 anos e minha mãe, viúva pobre, aos 9, quando já internado num colégio, a expensas de um tio único, e celibatário. Não tive, pois, a bem dizer, lar paterno, nem amigos da infância. Coração cardoso (cardo - tipo de planta com espinhos), vazio de ressonâncias carinhosas, espírito misantropo (que sente aversão às pessoas), assim adolesci.

1) Nome aqui suposto.

Falecido, também, o tio generoso, não pude galgar o curso acadêmico e, do primeiro concurso a que me atirei, veio a nomeação de amanuense (escrevente). Auspiciado ao funcionalismo público, vinguei, à custa de muito trabalho e não poucas decepções, graduar-me na carreira, até que pudesse realizar o casamento. Este foi, ainda hoje o digo, o maior quinhão de alegria, por não dizer único sonho da minha vida. Mas, foi igualmente a minha odisseia...

A essa altura, tremia-lhe a voz, estava evidentemente comovido. Pediu um copo d’água, tirou do lenço e dos óculos por enxutar (secar) os olhos úmidos, e depois de suspirar profundamente, continuou:

- Em minha vida conjugal haveria de encontrar o índice de redenção. Não direi que a mulher a quem me consagrei no altar do coração, antes que no da Igreja, na qual não cria, fosse má e sim que era um gênio incompatível com o meu, vítima, a seu turno, de viciosa educação. Ainda assim, fomos mascarando a vida conjugal de preconceituosa harmonia. Louco pelas duas filhinhas, eu tudo sacrificava ao futuro delas, e rigoroso na escolha das relações sociais, posso dizer que apenas tive um amigo afeito a intimidades domesticas. E foi ele, esse amigo único, médico da família, o meu único algoz...

- Perdão: - diga antes instrumento do escândalo necessário...

- Sim, mas isso à luz de uma verdade que eu estava longe de imaginar. Ouça ainda o leigo, para julgar depois o crente. O leigo, o homem do século, tentou desafrontar a honra enxovalhada, mediante um desquite legal. As leis humanas, porém, não atingem o foro íntimo, não extinguem as chagas do coração. Alquebrado, enfermo, desiludido, agarrei-me à última esperança, que seria o aconchego carinhoso das filhinhas idolatradas. A esperança falhou, as filhinhas preferiram o coração materno, sob a proteção do meu algoz.

- Porque não Cireneu na ascensão do seu Calvário?

É ainda o cego que fala, deixe-me concluir. Não direi dos meus tormentos, dos intentos sinistros, ultrizes (vingativos), que me assaltaram nesse período decisivo da prova, senão que acabei optando pelo suicídio. Mas, ainda nisso, quero dar identificação do orgulho que me cancerava a alma: eu maquinava um suicídio que pudesse parecer acidental, subtraindo-me à pecha de covardia. Não queria que pudessem rir da minha derrota. Nesse transe angustioso de precito (maldito) inveterado, muita vez troquei dias por noites, perambulando a esmo pelas ruas e praças desertas. A miséria que notivagava e comigo parelhava na sombra com esgares (caretas) de fome, ou de crimes, deixava-me estarrecido, latejantes as têmporas e a iluminura do céu, a silhueta dos montes, aulido (uivo) dos cães, a plangência (choro) das ondas e o próprio dealbar (clarear) da aurora, me pareciam estigmas de escárnio e maldição. Eu odiava o mundo, a natureza, tudo...

*

Uma noite, eu que tantos anos trabalhei próximo da Federação sem lhe atentar na existência, ao cruzar-lhe a portada detive-me curioso e lá entrei não sei como. Eu devia ter um semblante idiota, mas creio que ninguém reparou em mim. Surpreendi-me assentado no vasto salão do 2º andar, e a primeira insólita impressão foi a atitude do compacto auditório, porque de profunda religiosidade; a segunda foi a prece, como jamais ouvira, isenta de formalismo, ditada de coração por entrar-me no coração; a terceira foi a mensagem psicográfica, tão condizente ao meu estado de alma que até parecia adrede preparada; a quarta, finalmente, foi quando o Sr. Quintão abrindo um livro, disse: “vamos estudar o suicídio e suas consequências no plano espiritual”! Era a conta, meu amigo: descendo aquelas escadas, mal recobrado do assombro, eu era outro homem, criara alma nova, como diz o vulgo. Como por encanto, desterrou-se me da mente o sinistro intento e procurei conhecer, sentir, viver uma outra vida. Nunca mais faltei às sessões da Federação e hoje, se me não considero feliz, na acepção comum do homem comum, julgo-me no entanto, felicitado pela misericórdia divina, porque, na compreensão do próprio infortúnio condicional, deparo-me forte para vence-la.

- Volto então a dizer: o Sr. Francelio nada me deveria agradecer, e muito menos a vida... Que, esta, só pertence a Deus e é de si mesma imperecível.

- Sim, o Sr. Quintão fala como crente e como crente aceito o seu veredito. Todos somos instrumentos da Providencia e o Sr., no seu posto, foi o de que ela se utilizou para sobrestar-me (interromper) no cairel (borda) do abismo.

- Neste caso, instrumento inciente, sem valor próprio que justifique menção. O que caracteriza e qualifica o ato é a intenção e esta, a seu respeito, não me movia concientemente: logo, portanto, o que só nos compete é tudo atribuir a Deus e agradecer aos nossos Mentores do Além o não relaxarem a hora da propiciação (louvor, agradecimento).

- Pois seja. Mas, como sei que há muita gente que subestima essas tertúlias (palestras) doutrinárias atribuindo-lhes apenas cediço misticismo e verbiagem  (palavreado) inútil, talvez conviesse divulgar estes fatos.

- Entretanto, Jesus mandava ocultar o benefício: não saiba a esquerda o que a direita faz. De resto, a hostilidade à Federação é tradicional. A tática, os métodos, os argumentos, são sempre os mesmos; variam as bocas, mas não as línguas nem a baba que destilam... Amanhã, proclamada a sua esmola, não faltariam tunos (vadios) feirantes que verberassem o... reclame...(publicidade)

Francelio despediu-se. Ainda o avistei e nos falamos algumas vezes, na "Casa de Ismael". Um dia, desapareceu. Isto foi há tantos anos, 20 ou 30 talvez. Desencarnado? É possível, é quase certo. Hoje lembrei-me dele, da visita, do
pedido que me fez.

Timbrando (marcar com timbre) então a pena no cinzeiro, aqui lhe sopro esta carusma (cinza) esponjada (lavada com esponja) de muita saudade...


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