Cinzas do meu
cinzeiro...
Manoel Quintão
Reformador (FEB)
Fevereiro 1943
Mãos coladas ao gradil do portão, aquele sujeito galgaz e
caveiroso, solenemente metido na lustrosa sobrecasaca preta, deu-me a impressão
de um exótico faquir indiano.
Do alto da escada, por atender-lhe as palmas nervosas,
toadas no ambiente da manhã clara, eu estaria, de manifesto, a falar com os
olhos, da minha surpresa, porque o homem foi logo dizendo:
- O Sr. Quintão não me conhece ... mas eu o conheço muito
bem.
- Felicito-o, então, porque a verdade é que eu mesmo não
me conheço muito bem...
- Da Federação Espírita.
- Pois queira entrar.
*
Depois, na sala de
visitas, assentando-se, algo impressionado com um retrato de Bezerra:
- Desculpe-me procura-lo tão cedo; mas, venho de há muito
adiando esta visita que representa mais que uma visita, porque é antes
fraternal confidência e resgate de uma velha dívida de gratidão. Sim, eu
precisava dizer-lhe, de viva voz, que o senhor Quintão me salvou a vida.
Não me contive que lhe não repicasse com uma pontinha de
humorismo:
- Pois olhe, meu caro senhor, que nunca tive vocação para
surdista (tocador de surdo)
...
- Por quem é, não graceje; ouça a minha história e depois
me dará razão.
- Neste caso, fale
e que Deus nos ouça.
Perfilou-se na cadeira, limpou os óculos de míope, e
depois de olhar-me fixa e demoradamente, assim começou:
*
- Chamo-me Francelio Moura (1), tenho 56 anos de
idade e sou funcionário público, aposentado. Minha vida social de burocrata
nada oferece de interessante. Cedo atrelado à zorra da vida pela vida, procurei
viver como toda gente, sem maiores aspirações de glória ou de fortuna. Cético
por índole e quiçá por deficiência de educação religiosa, não cheguei nunca a
considerar a hipótese de uma outra existência, além da que me tocava os sentidos.
O mundo era uma fatalidade e a vida uma incógnita, a resolver-se noutra incógnita
- a morte. Meu ideal se resumia então, unicamente, na constituição de um lar de
uma família amorável e amorosa, que me compensasse a íntima aridez d’alma,
oriunda, quiçá, de uma prematura orfandade. Porque a verdade é que perdi pai
aos 6 anos e minha mãe, viúva pobre, aos 9, quando já internado num colégio, a
expensas de um tio único, e celibatário. Não tive, pois, a bem dizer, lar
paterno, nem amigos da infância. Coração cardoso (cardo - tipo de planta com espinhos), vazio de ressonâncias carinhosas,
espírito misantropo (que sente aversão
às pessoas), assim adolesci.
1) Nome aqui suposto.
Falecido, também, o tio generoso, não pude galgar o curso
acadêmico e, do primeiro concurso a que me atirei, veio a nomeação de amanuense
(escrevente). Auspiciado ao funcionalismo público, vinguei,
à custa de muito trabalho e não poucas decepções, graduar-me na carreira, até
que pudesse realizar o casamento. Este foi, ainda hoje o digo, o maior quinhão
de alegria, por não dizer único sonho da minha vida. Mas, foi igualmente a
minha odisseia...
A essa altura, tremia-lhe a voz, estava evidentemente
comovido. Pediu um copo d’água, tirou do lenço e dos óculos por enxutar (secar) os olhos úmidos, e depois de suspirar profundamente,
continuou:
- Em minha vida conjugal haveria de encontrar o índice de
redenção. Não direi que a mulher a quem me consagrei no altar do coração, antes
que no da Igreja, na qual não cria, fosse má e sim que era um gênio incompatível
com o meu, vítima, a seu turno, de viciosa educação. Ainda assim, fomos
mascarando a vida conjugal de preconceituosa harmonia. Louco pelas duas
filhinhas, eu tudo sacrificava ao futuro delas, e rigoroso na escolha das
relações sociais, posso dizer que apenas tive um amigo afeito a intimidades
domesticas. E foi ele, esse amigo único, médico da
família, o meu único algoz...
- Perdão: - diga antes instrumento do escândalo necessário...
- Sim, mas isso à luz de uma verdade que eu estava longe
de imaginar. Ouça ainda o leigo, para julgar depois o crente. O leigo, o homem
do século, tentou desafrontar a honra enxovalhada, mediante um desquite legal.
As leis humanas, porém, não atingem o foro íntimo, não extinguem as chagas do
coração. Alquebrado, enfermo, desiludido, agarrei-me à última esperança, que seria
o aconchego carinhoso das filhinhas idolatradas. A esperança falhou, as filhinhas
preferiram o coração materno, sob a proteção do meu algoz.
- Porque não Cireneu na ascensão do seu Calvário?
É ainda o cego que fala, deixe-me concluir. Não direi dos
meus tormentos, dos intentos sinistros, ultrizes (vingativos), que me assaltaram nesse período decisivo da prova,
senão que acabei optando pelo suicídio. Mas, ainda nisso, quero dar
identificação do orgulho que me cancerava a alma: eu maquinava um suicídio que
pudesse parecer acidental, subtraindo-me à pecha de covardia. Não queria que
pudessem rir da minha derrota. Nesse transe angustioso de precito (maldito) inveterado, muita vez troquei dias por noites, perambulando
a esmo pelas ruas e praças desertas. A miséria que notivagava e comigo
parelhava na sombra com esgares (caretas) de fome, ou de crimes, deixava-me estarrecido, latejantes as têmporas e a
iluminura do céu, a silhueta dos montes, aulido (uivo) dos cães, a plangência (choro) das ondas e o próprio
dealbar (clarear) da aurora, me pareciam estigmas de escárnio
e maldição. Eu odiava o mundo, a natureza, tudo...
*
Uma noite, eu que tantos anos trabalhei próximo da
Federação sem lhe atentar na existência, ao cruzar-lhe a portada detive-me
curioso e lá entrei não sei como. Eu devia ter um semblante idiota, mas creio
que ninguém reparou em mim. Surpreendi-me assentado no vasto salão do 2º andar,
e a primeira insólita impressão foi a atitude do compacto auditório, porque de
profunda religiosidade; a segunda foi a prece, como jamais ouvira, isenta de
formalismo, ditada de coração por entrar-me no coração; a terceira foi a mensagem
psicográfica, tão condizente ao meu estado de alma que até parecia adrede
preparada; a quarta, finalmente, foi quando o Sr. Quintão abrindo um livro,
disse: “vamos estudar o suicídio e
suas consequências no plano espiritual”! Era a conta, meu amigo: descendo
aquelas escadas, mal recobrado do assombro, eu era outro homem, criara alma
nova, como diz o vulgo. Como por encanto, desterrou-se me da mente o sinistro
intento e procurei conhecer, sentir, viver uma outra vida. Nunca mais faltei às
sessões da Federação e hoje, se me não considero feliz, na acepção comum do
homem comum, julgo-me no entanto, felicitado pela misericórdia divina, porque,
na compreensão do próprio infortúnio condicional, deparo-me forte para vence-la.
- Volto então a dizer: o Sr. Francelio nada me deveria
agradecer, e muito menos a vida... Que, esta, só pertence a Deus e é de si
mesma imperecível.
- Sim, o Sr. Quintão fala como crente e como crente
aceito o seu veredito. Todos somos instrumentos da Providencia e o Sr., no seu
posto, foi o de que ela se utilizou para sobrestar-me (interromper) no cairel (borda) do abismo.
- Neste caso, instrumento inciente, sem valor próprio que
justifique menção. O que caracteriza e qualifica o ato é a intenção e esta, a
seu respeito, não me movia concientemente: logo, portanto, o que só nos compete
é tudo atribuir a Deus e agradecer aos nossos Mentores do Além o não relaxarem
a hora da propiciação (louvor,
agradecimento).
- Pois seja. Mas, como sei que há muita gente que
subestima essas tertúlias (palestras) doutrinárias atribuindo-lhes
apenas cediço misticismo e verbiagem (palavreado) inútil, talvez conviesse divulgar
estes fatos.
- Entretanto, Jesus mandava ocultar o benefício: não
saiba a esquerda o que a direita faz. De resto, a hostilidade à Federação é
tradicional. A tática, os métodos, os argumentos, são sempre os mesmos; variam
as bocas, mas não as línguas nem a baba que destilam... Amanhã, proclamada a
sua esmola, não faltariam tunos (vadios) feirantes que verberassem o... reclame...(publicidade)
Francelio despediu-se. Ainda o avistei e nos falamos
algumas vezes, na "Casa de Ismael". Um dia, desapareceu. Isto foi há
tantos anos, 20 ou 30 talvez. Desencarnado? É possível, é quase certo. Hoje
lembrei-me dele, da visita, do
pedido que me fez.
Timbrando (marcar com timbre) então a pena no cinzeiro, aqui lhe sopro esta carusma (cinza) esponjada (lavada com esponja) de muita saudade...
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