quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Obsessão desconhecida




🔃  Obsessão desconhecida
Humberto de Campos (Espírito)
por Chico Xavier
Reformador (FEB) Fevereiro 1943


Os pais de Isolina Faria aproximaram-se do grupo espiritista, ansiosos de curar a filha.

Desde muito, vivia a jovem sob o império de singulares manifestações. Olhos cerrados, a denunciar profunda insensibilidade na expressão fisionômica, gestos rudes, Isolina contorcia-se estranhamente e dava guarida a uma entidade ignorante e sofredora, que a tornava possessa. O Espírito perturbado que parecia ter-se lhe agarrado, prorrompia então em blasfêmias, lágrimas, soluços. Lastimava-se, praguejava, acusando pessoas e envenenando circunstâncias, à maneira de louco, que força alguma conseguia deter. Esgotados os recursos vulgares, a família deliberou apelar para o Espiritismo, antes de qualquer providência referente ao hospício. Vizinhos e amigos não cessavam de dar definições. Aquilo deveria ser obsessão cruel. Tanta gente não se havia curado, em trabalhos da consoladora doutrina dos Espíritos? Porque não tentar as melhoras de lsolina através dos mesmos recursos? Quando o chefe da casa se inclinou à decisão, o generoso Nolasco Borges, velho conhecido de infância, prontificou-se aos serviços iniciais.

- Sossegue, meu amigo, - esclareceu ao companheiro inquieto, - em nossas reuniões, a doente encontrará as melhoras precisas. Hoje mesmo, começaremos na atividade de doutrinação do infeliz e, a breve tempo, Isolina será restituída à saúde e à alegria, a que sua mocidade tem direito.

De fato, na noite que se seguiu, pequena caravana, com o Nolasco à frente, penetrava o modesto salão dos Pacheco, onde se efetuavam sessões íntimas.

O velho Araújo, doutrinador carinhoso e esclarecido, organizou a reduzida assembleia, cônscio da responsabilidade que lhe competia.

Logo após a oração de abertura, a moça doente caía em contorções estranhas. Palidíssima, boca espumejante, gritava dolorosamente, reproduzindo emoções da entidade desconhecida.

- Oh! meu irmão, - exortava Araújo bondosamente, - porque violentar desta maneira uma pobre criança, necessitada de equilíbrio, por atender aos próprios deveres? Por quem és, meu amigo, olvida o mal e ouve a lição de Jesus. Estamos aqui votados à prática do bem. Somo imperfeitos, inferiores. Tateamos nas sombras da ignorância e não te desejamos impor ensinamentos. Sabemos que a obra de redenção final pertence ao Mestre Divino; entretanto, creio que podemos advertir o teu coração, pois aqueles que caíram, como nós outros neste mundo, estão habilitados a comentar os próprios males e evitar que outros incidam nos mesmos erros. Por vezes, poderá parecer que somos excessivamente ousados, tentando estabelecer normas aos que vivem na esfera indevassável aos nossos olhos; contudo, este esforço obedece ao amor fraternal que Jesus abençoa. Volta, amigo! Abandona a tarefa ingrata de subjugação desta jovem que deve enriquecer-se com as experiências da vida terrestre. Solicitamos a tua boa vontade, por amor de Deus!..

A voz do generoso doutrinador sofria ligeiro estacato. Araújo, emotivo e bondoso, enxugava os olhos húmidos, enquanto a reduzida assistência permanecia sob forte impressão. O Espírito ignorante demonstrava-se aflito. A palavra do orientador da reunião tocava-o profundamente; mas, como se estivesse preso à inflexíveis algemas, soluçava mais fortemente e bradava:
           
- Ai de mim! Não posso... não posso...

- Não podes? - tornava Araújo dedicado, - quando temos vontade, Jesus nos confere o poder. Anima-te. Porque perseverar no sofrimento do mal, quando o bem nos oferta alegrias eternas? Levantemo-nos para Deus, edificando-nos na própria dor. Se guardas reminiscências amargas, sacode as de ti, desfaze-te do vinagre amontoado no coração. Se foste ofendido, perdoa! Se as feridas te reclamam vingança, aplica-lhes o bálsamo do amor que sabe viver na esperança em Cristo.

O corpo frágil da jovem contorcia-se violentamente, ao passo que o sofredor murmurava em pranto:

- Sou infame, desventurado! Não posso... não posso...

As reuniões de esclarecimento prosseguiam sem alteração. Duas vezes por semana, agrupavam-se os companheiros, repetindo-se as mesmas cenas.

Araújo não podia ser mais generoso. Ensinava bondosamente, como quem sabe corrigir amando. A entidade perturbadora, porém, não correspondia ao esforço, senão com gritos, protestos e soluços de meter compaixão.

Decorridos alguns meses, a pequena assembleia começou a impacientar-se. Tão logo se manifestava o infeliz, formavam-se pensamentos contrários à simpatia fraternal. Na opinião da maioria, aquele Espírito requisitava punições e conselhos ásperos. Isolina era tida como vítima infortunada, nas mãos de audacioso algoz da esfera invisível. Admirava-se a paciência do dedicado orientador das sessões, que punha todos os recursos afetivos em ação.

Nolasco, porém, à certa altura dos serviços espirituais, não se conteve e, depois de tumultuosa reunião, interpelou Araújo, amigavelmente:

- Não julga você necessário e conveniente punir esse perseguidor implacável? Creio tratar-se de perverso bandido das trevas.

O velho diretor doutrinário percebeu as dúvidas que pairavam no ambiente geral e acrescentou:

- Desde muito, trabalho por compreender que cada coisa permanece no lugar que lhe é próprio. Em nossa apreciação fragmentaria, o perturbador de Isolina é um Espírito diabólico; entretanto, é imprescindível não esquecer que as nossas definições são incompletas. Há oito meses trabalhamos por levantar-lhe as energias, sem resultados satisfatórios. A primeira vista, estamos fracassados no serviço de socorro espiritual. Mas, como firmar o nosso ponto de vista, neste sentido, se desconhecemos as causas profundas?

Nolasco e os demais companheiros respeitaram-lhe os pareceres, mantendo-se em silêncio expressivo.

- Esgotadas as nossas possibilidades de compreensão, - prosseguiu o amoráveI velhinho, - não será justo apelar para o plano superior? Nós, que desejamos socorrer, precisamos igualmente ser socorridos. Peçamos a Melânio, amoroso guia de nossos trabalhos, que se pronuncie. É possível que a sua bondade fraterna nos conceda a chave do enigma.

Ninguém discordou da sugestão criteriosa.

Na noite seguinte, a reunião em casa dos Pacheco foi mais intima. Compareceu Melânio gentilmente e depois de recomendar a paralisação temporária dos trabalhos de doutrinação, prometeu chamaria o desventurado a esclarecimentos. Examinaria o problema com atenção, a fim de tentar providências justas. Em seguida, voltaria a notificar aos irmãos, relativamente às tarefas que se impunham.

Dias decorreram antes que o emissário generoso regressasse com as instruções espirituais. Após três semanas de expectativa, em sessão comum do agrupamento, eis que Melânio se manifesta e, depois das carinhosas saudações usuais, expõe bondosamente, ante a surpresa geral:

- Quanto ao caso de nossa irmã Isolina Faria, devo esclarecer preliminarmente que os aprendizes da Terra conhecem a obsessão somente em sentido unilateral. O infeliz perturbador, que atende pelo nome de Juliano Portela, conforme a última experiência que viveu neste mundo, não foi encontrado por mim facilmente. Precisei reunir-me a companheiros da espiritualidade, a fim de chama-lo a explicações diretas. Verificais, nas nossas sessões, a presença do enfermo encarnado, ao passo que nas nossas, examinamos os doentes invisíveis a vós outros. Entreguei-me à solução do assunto, com a maior boa vontade. Entretanto, o perturbador de Isolina queixa-se amargamente do assédio de que é vítima, na esfera onde se encontra. Declara-se perseguido, atormentado por ela. Não tem paz, nem rumo certo. A mente da jovem, com o seu grande poder magnético, requisita-o em toda parte. O pobrezinho não consegue progredir, nem furtar-se ao ambiente de inquietação a que ela o sujeita. Se ao vosso olhar permanece a nossa amiga assediada, à nossa vista surge o infortunado Juliano, em terrível desespero do coração, como quem se sente prisioneiro de garras inflexíveis. Face ao que observamos, o verdadeiro obsessor é a médium obstinada. A vigorosa potencialidade magnética de Isolina é a gaiola. Juliano é o pássaro cativo. É preciso restabelecer o equilíbrio da verdadeira situação. Tanto existem perseguidores na esfera invisível, quanto nos círculos de vossa atividade comum. Aclarai a próprio espirito, amigos meus. Expulsemos a sombra de nossa região interior. Desencarnados e encarnados não significamos duas grandes raças diferente e irreconciliáveis. Somos semelhantes uns aos outros na vida eterna, com as mesmas possibilidades, deveres e obrigações. Nos dramas pungentes dos obsidiados, lembrai que, se para a justiça humana não existem processos absolutamente iguais nos detalhes, no resgate divino cada situação apresenta características diferentes. Guardai o brilho do cristal e refletireis a luz na sua pureza, retende o mel do bem e as abelhas da sabedoria cercar-vos-ão as pétalas interiores! ...

Melânio calara-se, enquanto a assembleia chorava comovida. O bondoso Araújo agradeceu em lágrimas de alegria:

- Obrigado, meu irmão!

O mensageiro orou ainda, emocionadamente, e declarou ao despedir-se:

- Em vista do que observamos, queridos companheiros, não bastará espantar as moscas do mal. É indispensável, antes de tudo, curar as feridas da imperfeição.


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