🔃 Obsessão desconhecida
Humberto de Campos (Espírito)
por Chico Xavier
Reformador (FEB)
Fevereiro 1943
Os pais de Isolina Faria aproximaram-se do grupo espiritista,
ansiosos de curar a filha.
Desde muito, vivia a jovem sob o império de singulares
manifestações. Olhos cerrados, a denunciar profunda insensibilidade na
expressão fisionômica, gestos rudes, Isolina contorcia-se estranhamente e dava
guarida a uma entidade ignorante e sofredora, que a tornava possessa. O Espírito
perturbado que parecia ter-se lhe agarrado, prorrompia então em blasfêmias, lágrimas,
soluços. Lastimava-se, praguejava, acusando pessoas e envenenando circunstâncias,
à maneira de louco, que força alguma conseguia deter. Esgotados os recursos
vulgares, a família deliberou apelar para o Espiritismo, antes de qualquer
providência referente ao hospício. Vizinhos e amigos não cessavam de dar
definições. Aquilo deveria ser obsessão cruel. Tanta gente não se havia curado,
em trabalhos da consoladora doutrina dos Espíritos? Porque não tentar as
melhoras de lsolina através dos mesmos recursos? Quando o chefe da casa se
inclinou à decisão, o generoso Nolasco Borges, velho conhecido de infância, prontificou-se
aos serviços iniciais.
- Sossegue, meu amigo, - esclareceu ao companheiro
inquieto, - em nossas reuniões, a doente encontrará as melhoras precisas. Hoje
mesmo, começaremos na atividade de doutrinação do infeliz e, a breve tempo,
Isolina será restituída à saúde e à alegria, a que sua mocidade tem direito.
De fato, na noite que se seguiu, pequena caravana, com o
Nolasco à frente, penetrava o modesto salão dos Pacheco, onde se efetuavam
sessões íntimas.
O velho Araújo, doutrinador carinhoso e esclarecido,
organizou a reduzida assembleia, cônscio da responsabilidade que lhe competia.
Logo após a oração de abertura, a moça doente caía em contorções
estranhas. Palidíssima, boca espumejante, gritava dolorosamente, reproduzindo
emoções da entidade desconhecida.
- Oh! meu irmão, - exortava Araújo bondosamente, - porque
violentar desta maneira uma pobre criança, necessitada de equilíbrio, por
atender aos próprios deveres? Por quem és, meu amigo, olvida o mal e ouve a
lição de Jesus. Estamos aqui votados à prática do bem. Somo imperfeitos,
inferiores. Tateamos nas sombras da ignorância e não te desejamos impor
ensinamentos. Sabemos que a obra de redenção final pertence ao Mestre Divino;
entretanto, creio que podemos advertir o teu coração, pois aqueles que caíram,
como nós outros neste mundo, estão habilitados a comentar os próprios males e
evitar que outros incidam nos mesmos erros. Por vezes, poderá parecer que somos
excessivamente ousados, tentando estabelecer normas aos que vivem na esfera
indevassável aos nossos olhos; contudo, este esforço obedece ao amor fraternal
que Jesus abençoa. Volta, amigo! Abandona a tarefa ingrata de subjugação desta
jovem que deve enriquecer-se com as experiências da vida terrestre. Solicitamos
a tua boa vontade, por amor de Deus!..
A voz do generoso doutrinador sofria ligeiro estacato.
Araújo, emotivo e bondoso, enxugava os olhos húmidos, enquanto a reduzida assistência
permanecia sob forte impressão. O Espírito ignorante demonstrava-se aflito. A
palavra do orientador da reunião tocava-o profundamente; mas, como se estivesse
preso à inflexíveis algemas, soluçava mais fortemente e bradava:
- Ai de mim! Não posso... não posso...
- Não podes? - tornava Araújo dedicado, - quando temos
vontade, Jesus nos confere o poder. Anima-te. Porque perseverar no sofrimento
do mal, quando o bem nos oferta alegrias eternas? Levantemo-nos para Deus,
edificando-nos na própria dor. Se guardas reminiscências amargas, sacode as de
ti, desfaze-te do vinagre amontoado no coração. Se foste ofendido, perdoa! Se
as feridas te reclamam vingança, aplica-lhes o bálsamo do amor que sabe viver
na esperança em Cristo.
O corpo frágil da jovem contorcia-se violentamente, ao
passo que o sofredor murmurava em pranto:
- Sou infame, desventurado! Não posso... não posso...
As reuniões de esclarecimento prosseguiam sem alteração.
Duas vezes por semana, agrupavam-se os companheiros, repetindo-se as mesmas
cenas.
Araújo não podia ser mais generoso. Ensinava
bondosamente, como quem sabe corrigir amando. A entidade perturbadora, porém,
não correspondia ao esforço, senão com gritos, protestos e soluços de meter
compaixão.
Decorridos alguns meses, a pequena assembleia começou a
impacientar-se. Tão logo se manifestava o infeliz, formavam-se pensamentos
contrários à simpatia fraternal. Na opinião da maioria, aquele Espírito
requisitava punições e conselhos ásperos. Isolina era tida como vítima
infortunada, nas mãos de audacioso algoz da esfera invisível. Admirava-se a
paciência do dedicado orientador das sessões, que punha todos os recursos
afetivos em ação.
Nolasco, porém, à certa altura dos serviços espirituais,
não se conteve e, depois de tumultuosa reunião, interpelou Araújo,
amigavelmente:
- Não julga você necessário e conveniente punir esse
perseguidor implacável? Creio tratar-se de perverso bandido das trevas.
O velho diretor doutrinário percebeu as dúvidas que
pairavam no ambiente geral e acrescentou:
- Desde muito, trabalho por compreender que cada coisa
permanece no lugar que lhe é próprio. Em nossa apreciação fragmentaria, o
perturbador de Isolina é um Espírito diabólico; entretanto, é imprescindível
não esquecer que as nossas definições são incompletas. Há oito meses
trabalhamos por levantar-lhe as energias, sem resultados satisfatórios. A
primeira vista, estamos fracassados no serviço de socorro espiritual. Mas, como
firmar o nosso ponto de vista, neste sentido, se desconhecemos as causas
profundas?
Nolasco e os demais companheiros respeitaram-lhe os
pareceres, mantendo-se em silêncio expressivo.
- Esgotadas as nossas possibilidades de compreensão, -
prosseguiu o amoráveI velhinho, - não será justo apelar para o plano superior?
Nós, que desejamos socorrer, precisamos igualmente ser socorridos. Peçamos a Melânio,
amoroso guia de nossos trabalhos, que se pronuncie. É possível que a sua
bondade fraterna nos conceda a chave do enigma.
Ninguém discordou da sugestão criteriosa.
Na noite seguinte, a reunião em casa dos Pacheco foi mais
intima. Compareceu Melânio gentilmente e depois de recomendar a paralisação
temporária dos trabalhos de doutrinação, prometeu chamaria o desventurado a
esclarecimentos. Examinaria o problema com atenção, a fim de tentar providências
justas. Em seguida, voltaria a notificar aos irmãos, relativamente às tarefas
que se impunham.
Dias decorreram antes que o emissário generoso
regressasse com as instruções espirituais. Após três semanas de expectativa, em
sessão comum do agrupamento, eis que Melânio se manifesta e, depois das
carinhosas saudações usuais, expõe bondosamente, ante a surpresa geral:
- Quanto ao caso de nossa irmã Isolina Faria, devo
esclarecer preliminarmente que os aprendizes da Terra conhecem a obsessão
somente em sentido unilateral. O infeliz perturbador, que atende pelo nome de
Juliano Portela, conforme a última experiência que viveu neste mundo, não foi
encontrado por mim facilmente. Precisei reunir-me a companheiros da espiritualidade,
a fim de chama-lo a explicações diretas. Verificais, nas nossas sessões, a
presença do enfermo encarnado, ao passo que nas nossas, examinamos os doentes
invisíveis a vós outros. Entreguei-me à solução do assunto, com a maior boa
vontade. Entretanto, o perturbador de Isolina queixa-se amargamente do assédio
de que é vítima, na esfera onde se encontra. Declara-se perseguido, atormentado
por ela. Não tem paz, nem rumo certo. A mente da jovem, com o seu grande poder
magnético, requisita-o em toda parte. O pobrezinho não consegue progredir, nem
furtar-se ao ambiente de inquietação a que ela o sujeita. Se ao vosso olhar
permanece a nossa amiga assediada, à nossa vista surge o infortunado Juliano,
em terrível desespero do coração, como quem se sente prisioneiro de garras
inflexíveis. Face ao que observamos, o verdadeiro obsessor é a médium
obstinada. A vigorosa potencialidade magnética de Isolina é a gaiola. Juliano é
o pássaro cativo. É preciso restabelecer o equilíbrio da verdadeira situação. Tanto
existem perseguidores na esfera invisível, quanto nos círculos de vossa
atividade comum. Aclarai a próprio espirito, amigos meus. Expulsemos a sombra
de nossa região interior. Desencarnados e encarnados não significamos duas
grandes raças diferente e irreconciliáveis. Somos semelhantes uns aos outros na
vida eterna, com as mesmas possibilidades, deveres e obrigações. Nos dramas
pungentes dos obsidiados, lembrai que, se para a justiça humana não existem
processos absolutamente iguais nos detalhes, no resgate divino cada situação
apresenta características diferentes. Guardai o brilho do cristal e refletireis
a luz na sua pureza, retende o mel do bem e as abelhas da sabedoria
cercar-vos-ão as pétalas interiores! ...
Melânio calara-se, enquanto a assembleia chorava
comovida. O bondoso Araújo agradeceu em lágrimas de alegria:
- Obrigado, meu irmão!
O mensageiro orou ainda, emocionadamente, e declarou ao
despedir-se:
- Em vista do que observamos, queridos companheiros, não
bastará espantar as moscas do mal. É indispensável, antes de tudo, curar as
feridas da imperfeição.
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