quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Livre-Arbítrio e Determinismo



Livre arbítrio e determinismo
 por Luís Gastin
Reformador (FEB) Novembro 1923

Não há, cremos, no campo de qualquer filosofia, questão mais debatida e que a maiores controvérsias tenha dado ensejo, do que a do livre arbítrio, inteiramente negado pelos deterministas de todos os matizes e diversamente entendido pelos que lhe sentem a necessidade da existência nos seres espirituais.

Mesmo entre os espíritas, por menos que isso se entenda, não raro se observa fundo desacordo de opiniões no tocante a essa matéria.

Por menos que isso se entenda, dissemos.

E que, efetivamente, constituindo a lei de responsabilidade integral para cada criatura um dos fundamentos essenciais da filosofia espírita, por isso mesmo que, sem embargo das adulterações posteriores, o é da doutrina cristã como a pregou Jesus, e não podendo haver responsabilidade sem liberdade, não se compreende bem que haja negadores ou duvidadores do livre arbítrio entre os adeptos daquela filosofia.

Todavia, esse é o fato, como inegável também é o de ser ainda, para muitos, obscuro, de difícil percepção quanto à sua latitude, esse princípio, cuja negação, aliás, não sabemos de que forma se possa combinar com a ideia de perfeição absoluta da justiça de Deus.

Ao nosso ver, tudo, assim a negação do livre arbítrio, como a errônea compreensão da maneira por que devem ser livres os seres, nasce de uma dificuldade única: a de conciliar-se aquela faculdade com o inegável determinismo a que se acham sujeitos os Espíritos, pela razão mesma de estarem subordinados ao conjunto das leis divinas, estabelecidas com a objetivação de uma finalidade exclusiva - a perfeição.

Pois bem: a demonstração clara do modo por que o determinismo e o livre arbítrio, fatores ambos do aperfeiçoamento espiritual, se conciliam, em cada ser, sob a ação do terceiro fator que é a Providência, foi o que, removendo a dificuldade que atrás apontamos, o nosso confrade Luiz Gastin, na atualidade um dos mais esclarecidos disseminadores dos ensinos do Espiritismo, logrou magnificamente no estudo que vamos transcrever, publicado em dois números sucessivos da Revue Spirite, que o tem como seu secretário.

Na exposição que aí faz L. Gastin das suas ideias sobre determinismo e livre arbítrio se nos deparou, amplamente desenvolvida, a superior concepção que do assunto tinha o genial filósofo pitagórico, de maravilhosa ilustração, o médium extraordinário que foi, há pouco mais de um século, Fabre d'Olivet, quando ainda de mediunidade, como a compreendemos hoje, nada se sabia. Essa concepção, em síntese admirável, d'Olivet a exarou na História filosófica do gênero humano, magistral obra a que ela serve de eixo principal.

Não retardemos, porém, com os nossos comentários o instante do leitor travar conhecimento com o belo trabalho a que nos referimos. Com o que vimos dizendo, não pretendemos, por agora, aprecia-lo, senão apenas encomiá-lo (elogia-lo), como se nos afigurou que merecia, recomendando-o ao apreço dos estudiosos. Ei-lo:

O Snr. Albino Valabrègue, cuja grande atividade de propagandista todos os espíritas conhecem, houve por bem propor-me n'O Bienista quatro questões relativas ao problema da liberdade humana.

Essas questões estão assim formuladas:

1ª) Pois que os homens são livres (relativamente) porque conservam seus defeitos?

2ª) Pois que, na sua opinião, em a nossa existência anterior, que vem a ser exatamente a nossa liberdade em face dessa conta a pagar?

3ª) Pois que, na sua opinião e na nossa, se pode predizer o futuro, o que é essa liberdade conhecida de antemão?
           
4ª) A crença no livre arbítrio induz ou não à pratica dos assassínios por ódio, vingança e talião?

Antes de responder às questões formuladas pelo Sr. Albino Valabrègue - questões que evidentemente interessam a toda gente- parece-me indispensável colocar o problema do livre arbítrio e do determinismo no terreno próprio e precisar, sobretudo, a distinção que existe entre a teoria filosófica do determinismo absoluto, à que se acha filiado o nosso velho amigo - quer esse determinismo seja mecânico, quer seja divino - e a teoria da relatividade, a que se filiam os espíritas kardecistas e eu próprio, teoria em que a liberdade  humana se combinam em proporções variáveis para cada um de nós - com o determinismo das leis universais, a fim de constituir o nosso destino.

Esta maneira de proceder me vai obrigar a redigir talvez um artigo muito longo e a só dar in fine resposta às questões acima. Terá, contudo, a vantagem de legitimar essa resposta em nome da razão lógica, positivamente a única autoridade, excluídos os fatos diante da qual me curvo em todas as circunstâncias.

* * *

Em primeiro lugar: que é o Determinismo? É, essencialmente, um sistema filosófico que nega à Vontade humana a faculdade de agir livremente e que atribui tão só a moveis a causa eficiente dos nossos atos. Este sistema tem a representa-lo atualmente os positivistas e os materialistas de todas as escolas; mas é curioso notar-se que a sua origem se encontra na escolástica religiosa, que subordinava rigorosamente à influência da Providência divina a determinação da vontade.

Ora, em virtude da lei de reação, real em todos os planos, a ciência, quando pode libertar-se das cadeias da religião, se precipitou do lado oposto a esta e mergulhou nos excessos da matéria, por aversão aos excessos do espírito. Os atos do homem foram tidos então como determinados por motivos cuja influência, necessária e irresistível, pareceu suficiente. Assim, o ato surgia como consequência fatal, inelutável, mecânica, por bem dizer, desses motivos ou móveis oriundos da educação, do meio, das tendências pessoais do ser, do atavismo, da hereditariedade, etc.

Mas o determinismo materialista, como o determinismo religioso, negando o livre arbítrio, suprimia ipso facto a responsabilidade. A tese era perigosa e, em nome da moral, alguns filósofos se levantaram contra ela. O argumento, entretanto, era especioso, insuficiente: a moral, muito variável e relativa, não poderia ser considerada um criterium de verdade.

Fosse como fosse, o livre arbítrio teve desde então partidários encarniçados, muito encarniçados mesmo, porquanto caíram assim no excesso da qualidade que os distinguia. O grande erro dos partidários do livre arbítrio - idêntico ao dos adeptos do determinismo - foi o de o terem julgado absoluto, quando tudo no homem, ser relativo, é relativo como ele.

Agora, que é o livre arbítrio? É o poder, atribuído à vontade, de escolher livremente, de se determinar a si mesma.

***

O Determinismo existiu de todos os tempos e o que, através das idades, se chamou o Destino tomou diversos aspectos e diversas significações:

a) Foi, primeiramente, o deus da Mitologia: fatalidade absoluta, cheia de mistérios, tendo em seu poder os homens e as coisas;

b) Apresenta-nos, em seguida, o seu aspecto teológico: é a predestinação e a graça eficaz, que traduzem uma exageração da ideia de Providência;

c) Conhece- se também o aspecto “filosófico” do Destino, que visa a ordem natural das coisas e se exprime como sendo o conjunto das leis do Universo produzidas pela confirmação da Necessidade e da Providência, da inteligência eterna e das propriedades cegas da matéria (A. Franck); 

d) Finalmente, para o materialismo e o positivismo contemporâneos, o Destino
é a aplicação mecânica das leis biológicas, manifestando o Determinismo universal.

A Vontade, como expressão do livre arbítrio, foi igualmente admitida em todas as épocas, mas amiúde contestada violentamente.

Desde os primeiros tempos da Igreja, a querela estalou entre os partidários da graça e os do livre arbítrio. Os filósofos da idade média e, mais tarde, Clark e Ried, defenderam o que Fénelon e Bossuet chamaram a “liberdade de indiferença” - que não passa de uma espécie de determinação sem motivos - para Deus, tanto quanto para o homem.

Este princípio se opõe rigorosamente ao muito conhecido princípio da “razão bastante”. Já Pelagio e Celestius haviam declarado ser o homem senhor do seu destino e afirmado assim o livre arbítrio absoluto. Santo Agostinho tentou equilibrar os dois fatores: Vontade e Providência. Por seu lado, Leibnitz fez a afirmação de que a Vontade segue sempre a última determinação do entendimento. Afinal, Spinosa pretendeu admitir a liberdade pela consciência, mas apenas chegou a exprimir um fatalismo absoluto, caracterizado por causas determinantes conhecidas ou desconhecidas, antigas ou recentes.

Em meio de todas essas controvérsias, dessas lutas as vezes violentas - e não falo das concepções filosóficas mais modernas - o espírito fica hesitante, sem mais achar saída, nem solução, porque o horizonte é escurecido e velado pelas intransigências das teorias opostas.

Allan Kardec foi um dos raros homens que hão compreendido que a verdade, como sempre sucede, devia estar num justo meio. (1) Ele admite o livre arbítrio: “Sem livre arbítrio, diz, o homem seria uma máquina”.  Também reconhece a influência dos móveis, consequências naturais dos atos anteriores, e a influência contingente do meio onde o Espírito encarnado tem que agir.

É esta, creio, a solução verdadeira, como o vai talvez provar a exposição, a que agora chego, das minhas concepções pessoais.

***

De tudo o que acabamos de dizer resulta que o problema posto pelo ato humano comporta duas soluções extremas, aparentemente contraditórias:
           
      Vontade                    Móveis
                                                                       (+)                  (-)

Isto é conforme a grande lei da polaridade: a Vontade representa o elemento ativo ou positivo; os Móveis representam o elemento passivo ou negativo. De novo encontramos assim os eternos polos do movimento (vontade) e da resistência (móveis).

Resta-nos descobrir o termo médio que os une, a forma “equilibrada e mista” que atua ora sobre um, ora sobre o outro desses dois polos.

Esse terceiro fator é a Providência não, bem entendido, a Providência dos Pais da Igreja, dos teólogos, a qual, como vimos, pela predestinação e pela graça eficaz, não constitui, em suma, senão um determinismo religioso, um “fatum” divino, em que apenas os móveis do determinismo materialista se acham substituídos pelos decretos de um Deus pessoal e caprichoso.

A Providência, para nós, é o conjunto das forças inteligentes exteriores ao homem, inteligências volitivas e conscientes, pertencentes ao que chamamos o mundo espiritual. Neste sentido, a Providência corrige os rigores do Destino e modera os excessos da Vontade, tendo em vista justamente obter o equilíbrio, a harmonia, que são a essência mesma do progresso. É a força equilibrante. Os Móveis constituem a força passiva, correspondente ao polo da resistência; a Vontade constitui a força ativa, correspondente ao polo do movimento.

Se nos reportarmos ao que precede, verificaremos que:
           
1º) O determinismo religioso afirma a ação única da Providência.

2º) O determinismo materialista afirma a ação única dos Móveis (Destino).

3º) A tese do livre arbítrio absoluto afirma a ação única da Vontade.

Cada um destes fatores foi tomado como base única de um sistema, quando devem ser considerados como realizando, pela sua tríplice ação convergente, a tendência do Espírito para a perfeição.

O exemplo seguinte nos vai permitir que compreendamos esquematicamente o mecanismo da intervenção respectiva dos três fatores, nos diversos atos da vida:

Ides de automóvel por uma estrada cujos numerosos zig-zags vos impedem de “prever” as particularidades. Correis com uma velocidade determinada, cuja consequência fatal há de ser, num momento preciso e em certo lugar - fáceis de deduzirem-se - o vosso encontro com outro veículo que vem em sentido contrário, ou com um obstáculo inerte que não podeis ver.

Esse encontro é o Destino, força cega, mecânica, fatal, que um “vidente”, um ser colocado em lugar alto, donde percebe, com seus pormenores, a cena de que se trata pode descrever e “predizer”, com mais ou menos exatidão. Porém, antes do encontro “fatal”, delibera diminuir a velocidade com que íeis, parar, ou, até enveredar por outro caminho. Intervém a vossa Vontade: o destino não se realizará.

Neste caso e no caso seguinte, não se poderia dizer que o “vidente” se enganou, pois que não lhe é dado prever senão a parte do Destino no futuro, isto é, o encadeamento “normal” das causas aos efeitos!

Admitamos que a vossa Vontade não intervenha. Realizar-se-á, por isso, inevitavelmente, o Destino? Não.

Um transeunte também “vê” a cena, prevê o encontro e decide intervir. Pode ele:

a) parar o veículo que vem em direção oposta, ou deslocar o obstáculo contra o qual iríeis esbarrar;

b) fazer “sinais” a fim de que pareis. Esse transeunte é a Providência (força inteligente, consciente e volitiva exterior). No primeiro caso acima, pode acontecer que lhe não percebais a intervenção, que esta se vos conserve ignorada, pois que se efetuou sem participação vossa. No caso dos “sinais” podeis:

a) ou obedecer e o encontro (Destino) não se verificará;

b) ou prosseguir (por inadvertência ou por desprezares o aviso) e o encontro se dará.

Somente neste último caso, notareis, porém já um pouco tarde, a intervenção providencial desprezada.

***

Facilmente se reconhecerá que o exemplo acima responde, por analogia, a algumas objeções muito importantes dos adversários, assim da liberdade, como do determinismo e até dos adversários da previsão do futuro, previsão que não poderia ser infalível nem constante, pois que apenas pode dizer respeito à ação de um único fator: o Destino, escapando-lhe a intervenção possível dos fatores Vontade e Providência.

De sorte que, quando uma predição - sincera e verdadeira, bem entendido - não se realiza, isso de modo algum, prova que o vidente se enganou, mas apenas que a série dos fatos que deviam, normal e mecanicamente, terminar no acontecimento predito foi interrompida e desviada pela intervenção imprevista e imprevisível do fator Vontade ou do fator Providência.

Se o determinismo absoluto fosse exato todas as predições se realizariam infalivelmente... o que seria horrível e envenenaria literalmente a nossa existência, que somente suportamos porque o futuro se nos conserva quase sempre desconhecido... e alimentamos a Esperança.  

Por outro lado, se aplicarmos o exemplo do automobilista ao assunto com que nos ocupamos, comprovaremos que:

1º Os deterministas materialistas só vêm o obstáculo;

2º Os deterministas religiosos só vêm o transeunte;

3º Os partidários exclusivos do livre arbítrio só vêm o automobilista.

A verdade, como sempre, está num justo meio.  
           
A figura junta nos vai permitir determinar esse “justo meio”.

Seja um triangulo, cujos vértices representam, respectivamente:
           
D - o Destino;
P - a Providência;
L - o Livre arbítrio;
           
Cada um destes fatores é uma causa cuja consequência vamos representar por uma mediana tirada de cada vértice sobre o lado oposto. O ponto de interseção das três medianas - “O” - representa o fato oriundo daquelas consequências: é, matematicamente, centro de gravidade do triângulo.

Para que não haja possibilidade de confusão, vou precisar o sentido que dou a cada um dos termos acima:

O Destino é o encadeamento normal dos fatos, a partir de uma causa dada, encadeamento esse operado em virtude das leis naturais que tudo regulam no Universo e lhe asseguram o funcionamento harmônico.

A Providência, conforme o indiquei linhas atrás, é aqui um termo genérico, que designa toda ação inteligente, consciente e volitiva, exercendo-se fora do indivíduo considerado: aplica-se, todavia, mais particularmente, às noções benéficas que provêm do mundo espiritual.

O Livre arbítrio é a faculdade que a Vontade humana possui de escolher entre os diversos móveis que se lhe oferecem, dentro de um quadro determinado. Pode-se também defini-lo: “A faculdade de fazer ou não fazer, segundo a determinação da Vontade.”

Fácil é de compreender-se que, em semelhante concepção, a Liberdade humana se reduz a uma simples faculdade de escolha, faculdade limitada pela ação mecânica do Destino encadeando os efeitos às causas, segundo leis fixas e imprescritíveis, e, por outro lado, suscetível de ser influenciado pelas sugestões providenciais.  

Não me parece que seja possível negar-se qualquer dos três fatores, ou dois deles, em proveito de um só:  o estudo atento dos fatos psicológicos ou de herdade de exame e de escolha. O mesmo estudo, com o dos fatos biológicos e das leis mecânicas, prova que essa escolha não é ilimitada, mas sim restrita, pelas contingências, a um número determinado e variável de móveis. Doutro lado, a influência das “vontades estranhas”, quer sejam “encarnadas”, quer puramente espirituais, é inegável para quem tenha estudado os fenômenos psíquicos e metapsíquicos, ou espíritas.

Devemos ainda considerar que:

1º) a Providência nem sempre intervêm, nem sempre a sua intervenção tem a mesma intensidade;

2º) a Vontade não se acha desenvolvida em todos os homens nas mesmas proporções; assim é que uns se deixam arrastar pelo Destino ou pelas sugestões providenciais, por apatia ou abulia, sem tentarem reagir, enquanto que outros têm a Vontade constantemente alerta e reduzem ao mínimo ipso facto a influência da fatalidade das sugestões estranhas;

3º) O Destino, enfim, não tem idêntico poder de ação em todos os seres; há homens que sofrem literalmente uma invencível fatalidade.

Somos ainda levados a admitir que o ponto ‘O’ da nossa figura não é imutável e que pode aproximar-se mais ou menos dos pontos ‘D’, ‘P’ ou ‘L’, conforme a preponderância das causas que esses pontos representam. É ali, creio, que se dá a conciliação das teorias antagonistas do Livre arbítrio e do Determinismo, seja este religioso, seja científico. Não existe ato inteiramente livre, uma vez que, segundo a nossa fórmula acima, a determinação da Vontade se efetua em virtude de móveis cujo número é limitado pelas múltiplas contingências. O ato mais livre é justamente aquele em cuja determinação entra maior número de móveis, pois que a Vontade, para firmar a sua escolha, é obrigado a um trabalho de discriminação e de eliminação mais complexo e mais preciso (1).

(1) Se, numa dada ocorrência, só me é lícito escolher entre duas soluções, evidentemente a minha ‘liberdade de agir’ se acha mais restringida do que grande número de opções se me oferece.

Negar a influência dos móveis fora admitir que a Vontade pode agir sem motivo algum, após eliminação de todos os móveis, o que seria absurdo.

Negar a ação determinante da Vontade sobre os móveis seria recusar ao homem toda responsabilidade e cair na perigosa doutrina do fatalismo. A solução científica do problema, que vamos agora encarar, nos conduz a repelir semelhante asserção. 

Livre arbítrio e determinismo (continuação)
 por Luís Gastin
Reformador (FEB) Novembro 1923
Quando os fisiologistas quiseram estudar o mecanismo cerebral, tiveram que seguir o processo do exame clínico dos fatos patológicos. Estudando-se clinicamente os casos de afasia e de paralisia, foi que se pode estabelecer as localizações cerebrais. Comprovando, por exemplo, que um homem, que sofrera uma lesão traumática do cérebro, perdera o uso da palavra, da motricidade, do sentido tátil, pode-se estabelecer que os centros nervosos cerebrais dessas faculdades se encontravam exatamente no ponto onde se verificara a lesão (1).

(1) O fato de, em certos casos de destruição mais ou menos importante dos centros cerebrais, serem conservadas ou poderem ser despertadas novamente as faculdades correspondentes, não diminui o valor clinico das observações de Déjerine, Grasset, etc. sobre as localizações.  
Os centros cerebrais não criam as faculdades. São simples através dos quais o Espírito se manifesta. Em certos casos, pode o Espírito suprir a perda ou a deterioração desses aparelhos. E isto não destrói aquilo, do mesmo modo que o fato de poder-se por meio de um ímã, deter uma porção de aço em sua queda para o solo não destrói a verdade das leis da atração e da gravidade.  

Nesta ordem de ideias, a melhor maneira de provar-se que uma coisa existe é suprimi-la. Para provar cientificamente a existência do livre arbítrio, vamos, então, suprimi-lo, ou antes - como a sua supressão poderia ser difícil e perigosa - vamos considerar uma pessoa em quem o livre arbítrio está aniquilado, destruído patologicamente. Essa pessoa é o neurastênico, doente conhecido de toda gente e que, assaltado por mil móveis, cujas vantagens ou inconvenientes respectivos constantemente calcula, se acha na impossibilidade de proceder a uma escolha entre eles, de se determinar.

É um erro negarem os médicos, na sua maioria, e até certos psiquiatras à neurastenia o caráter de verdadeira enfermidade e entenderem de chocar os acometidos dessa doença, limitando-se a responder-lhes: “Mas o senhor não tem nada! Convença-se a si mesmo de que não tem nada! Tenha vontade, que diabo!”

Este método, um pouco simplista, de tratamento, só raríssimas vezes dá bom resultado. Na neurastenia essencial, caracterizada por uma abulia profunda, penso que não se pode conseguir a cura dizendo ao doente que tenha vontade, pois que justamente na ausência de energia volitiva e nervosa, é que está a moléstia.

Seja como for, o neurastênico não pode tomar uma decisão em presença do afluxo de motivos que o assaltem, não obstante o número e a intensidade desses motivos. Ah! não lhe faltam os móveis e, se fosse exata a tese determinista, ele seria precisamente o ser mais “determinado” mais ativo, mais volitivo que existir pudesse. Ora, exatamente o contrário é o que sucede.

Os seguintes dados da fisiologia farão compreender a razão desse fato.

A força nervosa que circula em todo sistema cérebro-espinhal pode comparar-se à coluna de mercúrio de um termômetro, sendo a ampola muito bem representada pelo sistema ganglionar (grande simpático). Chamá-la-emos a coluna neurométrica.

Para completar a imagem, estabeleceremos como se segue a graduação do termômetro nervoso:

Embaixo, a alguns graus acima da ampola, se acham os centros medulares, formados de neuronas inferiores (células nervosas com seus prolongamentos).

Alguns graus acima, os centros mesoencefálicos, formados pelos neuronas sobressalentes.

Mais alto, os centros corticais (polígono do automatismo psicológico, domínio das ideias, formados de neuronas superiores.

Enfim, no ápice, o centro de ideação (domínio da vontade consciente e do pensamento) hipoteticamente colocado, pelos modernos fisiologistas, no córtice das circunvoluções pré -frontais.

O centro de ideação (centro ‘O’ de Grasset) é o aparelho físico sobre que o Espírito atua para dirigir o organismo.

Se compararmos esse centro a um posto central de telegrafia, o Espírito será o
telegrafista que o ocupa.

Pois bem: no sono natural, que é devido a uma diminuição da quantidade de força nervosa normalmente necessária para manter as relações entre o Espírito e o corpo (2), a coluna neurométrica desce abaixo do grau “centro de ideação” e, no sono muito profundo, abaixo do grau “polígono cortical”.

(2) Bem sei que, nestes últimos tempos, novas hipóteses se apresentaram para explicar o sono (invasão dos tecidos pelas toxinas, etc.), mas essas diversas hipóteses só se aplicam a casos particulares e não têm, portanto, o valor lógico da que optei. As novas concepções sobre o sono são construídas sobre “casos especiais” e tomam, como causas eficientes, fenômenos fisiológicos concomitantes que Le Dantec teria chamado “epifenômenos”.

Na embriaguez levada ao extremo, no indivíduo bêbado-morto, a coluna neurométrica desce ainda mais abaixo e, se a retirada da força nervosa for muito completa ou muito rápida, poderá sobrevir a morte.

Na loucura, a coluna neurométrica também desce abaixo do grau “centro de ideação”, não mais por diminuição da quantidade de força nervosa, porém por “congestão” de um dos centros automáticos do polígono, sob a ação brutal de uma surpresa física ou psíquica, ou pela ação lenta e progressivamente absorvente de uma ideia fixa.

Na neurastenia - e aqui surge nitidamente a diferença entre este estado patológico e a loucura (ou mesmo a psicastenia) - há, etimologicamente, astenia, ou, se preferirdes, anemia: anemia nervosa, Então, a coluna neurométrica vacila constantemente entre o grau “centro de ideação” e o grau “polígono cortical”, sem chegar a manter-se em equilíbrio.

Daí vem que o Espírito, embora continue a atuar sobre o organismo de um modo geral, não mais pode normalmente exercer sua ação sobre o polígono (domínio das ideias e, por conseguinte, dos móveis). Não pode mais determinar-se, escolher entre os móveis; e estes, entregues a si mesmos, são chamados a dirigir a máquina sem o “controle” da Vontade, ao acaso das preponderâncias transitórias, sem a influência determinante do livre arbítrio, isto é, da livre escolha do Espirito.

Ora, verifica-se que os móveis, assim “entregues a si mesmos”, se combatem
permanentemente, sem que intervenha qualquer solução. Faltando a Vontade, causa determinante, o neurastênico, com toda a sua inteligência, de posse de todas as suas faculdades de memória e de raciocínio, não pode mais decidir-se.

Este caso patológico precisa claramente o papel da Vontade na determinação dos atos. Assim é que, isolando o livre arbítrio, creio ter chegado a demonstrar-lhe a existência.

***

Há uma lei oculta muito interessante que mostra que tudo procede da ação de um princípio ativo sobre um princípio passivo e aqui mesmo podemos fazer uma curiosa aplicação dessa lei.

No problema que formulamos, o elemento ativo primordial é a Vontade; o elemento passivo, sobre o qual atua o primeiro, é o grupo dos Móveis. Da ação da Vontade sobre os Móveis nasce a Determinação, que se resolve praticamente em Ato.

O Ato se torna então um novo elemento ativo, que vai encontrar, como elemento passivo o grupo das Contingências. Realizando-se nas e através das Contingencias, o Ato dará origem ao Fato.

O Fato constitui um novo elemento ativo que designaremos pelo termo “Presente”. A simples circunstância da sua aparição o põe em oposição a um elemento passivo constituído pelo grupo dos fatos anteriores, que chamamos “Passado”. Ele atua sobre esses fatos anteriores e desta ação do Presente sobre o Passado vai nascer o Futuro... Interrompo aqui a minha exposição.
           
Interrompo aqui a minha preleção se bem que ela possa levar-nos muito mais longe; mas o que aí fica me parece suficiente para que os meus leitores encontrem, meditando, a solução das diversas questões propostas e das objecções formuladas contra as teorias espíritas do livre arbítrio relativo, da lei das consequências (lei de causa e efeito ou lei de causalidade), etc.

Vou concluir.

* * *

Assim, o livre arbítrio, no homem, é a faculdade de fazer ou não fazer, segundo a determinação da Vontade.

Como é que a Vontade se determina? Incontestavelmente pela comparação dos diversos Móveis que a incitam, pelo discernimento de suas consequências ou de suas vantagens e inconvenientes respectivos e pelo julgamento a favor de um ou de muitos dentre eles.

Pode dizer-se que os Móveis constituem a causa predisponente do ato em gestação e a Vontade a causa determinante.

Um exemplo tomado à patologia esclarecerá este ponto.

Sabe-se que o artritismo - como todas as diáteses - predispõe a certas afecções: notadamente ao reumatismo. Ora, se um artrítico tomar todas as precauções dietéticas e outras necessárias, pode muito bem evitar o reumatismo. Se cometer imprudências, se se expuser, por exemplo, ao ar úmido, irá imediatamente para a cama.

Pois bem, todo mundo sabe que, em tal caso, a diátese artrítica constitui a causa predisponente e a exposição ao frio úmido a causa determinante. Mas, ao espírito de nenhum médico acudirá a ideia de incriminar uma só dessas causas, negando a Influência da outra.

O mesmo se dá com os atos humanos, relativamente aos quais não temos o direito de negar nem a intervenção da causa predisponente, que são os Móveis, nem a da determinante, que é a Vontade (ou faculdade de escolher livremente os móveis).

Devemos lembrar aqui que os Móveis podem vir do mundo espiritual (manifestações providenciais ou determinismo divino) ou do mundo material (instintos e contingências aturais, ou determinismo científico).

Deste modo é que se conciliam, segundo a fórmula oculta da harmonia dos contrários, teorias antagônicas, cujo erro consiste simplesmente no fato de cada uma se julgar absoluta e a única verdadeira.

Somos seres essencialmente relativos e vivemos no Relativo. O absoluto só em Deus existe, razão por que me foi possível dizer que Deus é o único Ser absolutamente livre e, ao mesmo tempo, absolutamente determinado por essa mesma liberdade, que se confunde, em extrema Perfeição, com todos os outros atributos do Perfeito absoluto.


Livre arbítrio e determinismo (conclusão)
 por Luís Gastin
Reformador (FEB) Novembro 1923

            Agora que expus as teses do Livre Arbítrio relativo a que se refere o Espiritismo Kardecista e na qual encontra seu lugar próprio um determinismo racional, igualmente relativo, mais fácil me é responder às questões formuladas pelo Sr. Albino Valabrègue. Vou fazê-lo tão sucintamente quanto possível.

1ª questão: Pois que os homens são livres (relativamente), porque conservam seus defeitos?

Longínqua é a relação que esta questão guarda com o problema da Liberdade restringida pelas condições naturais da evolução. Para verificar-se que assim é, basta se tenha compreendido bem o mecanismo da tese acima sustentada.

Com efeito, a primeira consequência desse mecanismo é que o ser humano, ou antes, o Espirito em evolução, livre na escolha dos atos que tem de praticar, é determinado pelas consequências naturais de todos os que já anteriormente executou. Ele é livre no passado mas preso pelo passado, o que forçosamente lhe restringe a liberdade.

            Ainda aqui um exemplo analógico pode ser útil:

            Incontestavelmente, livre era eu de responder ou não às questões propostas, aliás cortesmente, pelo Sr. Valabrègue.

            Respondo, depois de haver livremente escolhido a minha resolução.  Feito isso, eis-me dentro de certos limites, preso pelo meu ato, pela minha resposta e - queira ou não queira - terei que sofrer as consequências naturais deste ato. Essas consequências constituem, a datar de hoje, uma parte de meu Destino (encadeamento normal dos fatos a partir de uma dada causa). A influenciação destas consequências pode, teoricamente, exercer-se sobre a minha vindoura liberdade, no caso em que fosse chamado a tomar uma decisão mais ou menos diretamente ligada a esta controvérsia. Procedi livremente, mas, ao mesmo tempo, criei um certo determinismo para os meus atos futuros.

Se não houvesse respondido, teria do mesmo modo criado um certo determinismo, porém noutro sentido, eis tudo.

Todavia, este determinismo assim criado pelo meu ato livre não tem e não pode ter influência absoluta e definitiva, que abala toda liberdade para o futuro: apenas esta, nas suas decisões, terá que levar em conta aquele determinismo. Aumentei o número dos móveis que ela terá de defrontar e entre os quais terá que escolher.

Isto vai dito com relação a todas as questões da mesma ordem e para precisar bem o mecanismo da ação combinada da Vontade e dos Móveis. Um provérbio oriental diz, mais ou menos: “És escravo da palavra que proferiste e senhor da que não pronunciaste.” Outro tanto se pode dizer do ato. 

Quanto à segunda parte da questão do Sr. Albino Valabrègue, considerada isoladamente, abre novo e muito extenso debate em que por agora não me quero empenhar. Fora mister, antes de tudo, precisar o que é um defeito, quais as suas raízes, como terá que ceder o lugar a uma qualidade, sob a ação lenta e progressiva da evolução redentora.

Há aí, repito, um problema muito diverso, infinitamente vasto, que, se houver oportunidade, examinaremos doutra feita. Demais, o problema poderia ser colocado no sentido rigorosamente oposto ao que o nosso amigo adotou. Ele se admira de que um ser, livre, conserve seus defeitos. O fato não está provado, mas em todo caso, alguns espiritualistas  (e sou do número deles) pensam que o homem tem defeitos justamente por ser livre e na medida em que o é e que sofre exatamente porque a sua liberdade lhe permite tomar decisões contrárias às leis harmônicas que geram o bem sob todos os seus aspectos.

Falível e sofredor, o homem, se estivesse submetido ao determinismo divino e privado inteiramente da faculdade de escolher, seria a negação da bondade e da presciência de Deus.

2ª questão: Pois que, na sua opinião, a nossa existência tem que pagar as faltas de uma existência anterior, a que fica reduzida exatamente a nossa liberdade, diante dessa nota a pagar?

Já respondi por diversas vezes a esta questão e o fiz em começo da resposta precedente. Mostrei que todos os nossos atos passados, frutos do livre exercício da nossa faculdade de escolher, intervêm de seguida, por suas consequências, como limitadores da nossa liberdade, constituindo o que se poderia chamar “o nosso Destino adquirido”.

É a aplicação rigorosa da palavra do Cristo: “Cada um colhe o que semeou e semeia o que colherá.

A reencarnação nada tem que ver com isto, porquanto a única diferença que introduz na determinação do futuro, pelos atos livres do passado, é que, em vez de deixar que ela se exerça nesse pequeníssimo fragmento do Tempo que se chama uma existência (e que varia, indo de alguns minutos apenas a mais de um século), a reencarnação estende essa determinação a toda a evolução do Espírito, através de uma série indefinida de representações sensíveis (existências).

Para todo espiritualista, a reencarnação é uma questão de lógica. Esta lógica se junta à da liberdade relativa, mas de nenhum modo a condiciona.

Acrescentarei que a expressão: “nota a pagar”, como estas outras: “julgamento”, “punição”, “recompensa”, etc. me parecem pertencer ao velho vocabulário teológico e são incompatíveis com as concepções do espiritualismo científico. Para este, não há “nota a pagar”, nem “julgamento”, nem “punição”, no fato de um ser, que “feriu com a espada”, perecer “pela espada” (sentido simbólico), como não há “punição”, nem “julgamento”, nem “nota a pagar”, no meio de um de nós ficar com a mão queimada, se a expuser ao fogo.

O sobrenatural não existe. Deus governa os mundos por meio das leis harmônicas e perfeitas que que próprio estabeleceu. Estas leis se nos impõem e quando as contrariamos - em virtude, exatamente, da nossa faculdade de escolher (livre arbítrio], elas nos ferem por natural reação.

Em próximo artigo falarei mais especialmente da lei de causalidade, ou das consequências - que os Indus chamam Karma - e mostrarei qual o seu mecanismo e o seu alcance. O Sr. Valabrègue encontrará nesse artigo uma resposta complementar à sua questão.        
Permitir-me-ei observar-lhe muito amistosamente que, com efeito, suas questões são redigidas de tal maneira que suscitam não só o problema do livre arbítrio, mas, ao mesmo tempo, um certo número de outros problemas, cada um dos quais necessitaria desenvolvimento igual no que dei aqui.

3ª questão: Pois que, na sua opinião e na nossa, se pode predizer o futuro, o que vem a ser essa liberdade conhecida de antemão?

Aqui, estamos de acordo sobre um, pelo menos, dos elementos da questão:
a possibilidade de predizer-se o futuro.

Contudo, nuns artigos que publiquei outrora em Le Sphinx, encontrar-se-ão
desenvolvimentos sobre esta possibilidade de previsão. Sem retomar a questão, igualmente complexa, basta-me ponderar que, enquanto que é possível predizer-se o futuro, impossível é predizer-se todo o futuro. Afirmo isto, alto e bom som, sem temor de que alguém me venha contradizer. De um estudo muito aprofundado que fiz da questão, examinando sucessivamente todos os modos de previsão, de premonição, de conjectura etc., resulta de maneira incontestável que a proporção das predições verdadeiras e sinceras que se realizam não excede a 30 % ou seja a cerca de um terço do total delas.

Ainda aí, sou obrigado a deferir a questão para artigo ulterior e especial, a fim de dar explicação suficiente do mecanismo da previsão do futuro.

Seja como for, essa previsão é indubitavelmente relativa (como tudo) e limitada. O espanto do Sr. Valabrègue se justificaria, se o futuro fosse inteiramente e inelutavelmente previsível. Ora, nada nos permite avançar semelhante asserção. Longe estamos de poder fazê-lo. Os fatos de previsão são mesmo de tal modo restritos em quantidade e em qualidade, que a previsão é negada por um mundo de gente que ainda não teve ocasião de comprová-la.

Pois bem: o que é previsível no futuro, conforme o mostrei em começo deste artigo, no exemplo do automóvel, é unicamente a porção aferente ao Destino (encadeamento normal dos fatos a partir de uma dada causa). A intervenção dos dois outros fatores, que contribuem, com o Destino, para construir o futuro, a saber: a Vontade pessoal do ser e as Vontades estranhas (Providência), escapa totalmente à possibilidade de previsão.

Num artigo sobre o “Livre Arbítrio e a Previsão do Futuro”, que publiquei em 1920, no jornal Le Sphinx, nº 11, pág, 86, escrevi:

“Se o livre arbítrio não existisse, se a Providência nunca interviesse na nossa vida, as matrizes do Destino seriam imutáveis e inevitáveis.

Os amadores de ciências conjecturais e os videntes, libertos da influência perturbadora da própria Imaginação, prediriam com segurança:

A adivinhação teria a precisão de uma matemática...

...E a vida seria impossível.

Imaginai por um momento que as menores particularidades da vossa existência pudessem ser conhecidas e anunciadas, que pudésseis saber quando estareis doentes e quando morrereis, com a circunstância terrível de que, sendo imutável o Destino, nem o Doutor-Providencia poderá vos salvar da enfermidade, nem nenhum esforço pessoal vos poderá evitar a morte na hora predita.

Imaginai que fosse assim e confessai que a vida seria inaceitável, intolerável, verdadeiro tormento e que, portanto, o ordenador de todas as coisas obrou nisto, como em tudo, com sabedoria, inteligência e amor infinitos.”

Em conclusão e para passarmos à quarta questão proposta pelo nosso amigo: na previsão do futuro, o que se torna “conhecida de antemão” não é a liberdade, mas apenas o desenrolar, de certo modo, mecânico do Destino, um só dos três fatores.

4ª questão: A crença no livre arbítrio leva ou não à prática dos assassínios por ódio, vingança e talião?

A isso respondemos francamente: NÃO, caro senhor Valabrègue. Por prova, não
preciso mais do que o meu exemplo pessoal: estou profundamente convencido da verdade das ideias que acima expendi a favor do livre arbítrio (relativo, não o esqueçamos nunca). Ora, eu me sinto formalmente incapaz de nutrir ódio, a tal ponto que alguns dos nossos amigos chegam a considerar isso em mim excessivo. Nunca me vinguei e de tal coisa não posso ter ideia senão, apenas, durante o momento de cólera que se segue imediatamente à ofensa e pelo qual é em grande parte responsável o meu temperamento sanguíneo. Quanto à pena de talião, considero-a uma manifestação de selvageria que nivela o homem ao bruto.

Estou persuadido de que a crença filosófica ou religiosa na liberdade humana ou a submissão do ser ao determinismo de Deus ou da natureza são rigorosamente estranhas às manifestações de amor ou de ódio, de perdão, ou de vingança, de talião, etc. Estas  manifestações procedem de causas perfeitamente estranhas às nossas crenças ou mesmo às nossas certezas, que, quando muito, podem suscitar, em certos casos, uma “vontade” de aperfeiçoamento, que as mais das vezes se conserva no estado de simples “desejo platônico”.

Nesta ordem de ideias, parece que a crença no determinismo é que seria nociva à evolução para o amor, à luta contra os maus instintos, por persuadir o homem da inutilidade de qualquer esforço, em virtude da dependência rigorosa do ser aos decretos divinos ou às opressões da natureza.

O Sr. Valabrègue colocou mal a questão; natural é, portanto, que seja inexata a sua resposta. O ser humano é fundamentalmente “pessoal”, quando pratica um ato, ou toma uma atitude, fá-lo muito menos de acordo com a opinião que forme de outrem do que de acordo com as consequências que esse ato ou essa atitude lhe acarretarão.

Nenhuma importância tem absolutamente que o marido ultrajado ou a mulher ciumenta considerem livre ou determinado o outro cônjuge; vingar-se-ão, ou perdoarão, de acordo com as suas naturezas individuais, com seus temperamentos instintivos, ou, talvez, de acordo com suas crenças religiosas ou filosófica - pelo que essas crenças lhes interessem ao futuro espiritual ou ao dever pessoal - nunca, porém, se inspirarão, para vingar-se ou perdoar, no grau de responsabilidade do ser de quem julguem ter motivo de queixa.

Aliás, a tese do livre arbítrio relativo que sustento, concederia sempre, em tais casos, ao acusado as circunstâncias atenuantes, pois que ela é a tese da responsabilidade limitada.

A crença no determinismo é, ao contrário, perigosa no mais alto grau para a moral individual e coletiva, em virtude mesmo dessa tendência que tem o homem para, antes de tudo e quase que unicamente, considerar-se a si próprio. Se ele se julga livre (relativamente) e, por conseguinte, responsável (dentro de certos limites), depois de um certo número de experiências mais ou menos dolorosas, tenderá a melhorar-se, para evitar as consequências de seus atos responsáveis. É esse o objetivo preciso das experiências sucessivas que asseguram a evolução. Se, em vez disso, o homem se julga determinado pela Natureza ou por uma Divindade onipotente, entenderá sem dificuldade que seus atos, pelos quais nenhuma responsabilidade lhe cabe, são inevitáveis; não se considerando “livre para escolher”,
não exercerá nesse sentido a sua Vontade e se entregará sem relutância ao móvel mais forte que, geralmente, é o instinto mais inferior e mais perigoso.

Tão patente é o perigo e tão formal, que mesmo aqueles que, materialistas obstinados por não poderem admitir outra coisa que não seja o “mecanismo universal” do inelutável Destino, cego e fatal, negaram, como Le Dantec, toda Vontade e, conseguintemente, toda Liberdade, recuaram aterrados ante as consequências sociais de suas teorias.

Le Dantec, depois de haver combatido o espiritualismo e tentado convence-lo de estar em erro, consagrou páginas inteiras à “necessidade do espiritualismo”, justamente porque este, dotando o homem de um espírito consciente e volitivo, lhe atribui a responsabilidade indispensável, fundamento de toda moral social ou individual.

E isto me leva a recordar aqui, à guisa de conclusão, o que sustentei há tempos numa conferência, em La Vie Morale:

O determinismo absoluto, outrora adotado pelo dogmático absolutismo religioso, é rigorosamente o oposto da concepção espiritualista e já não pode ser sustentado senão por cientistas positivos, em os quais se fundiram, desaparecendo, os materialistas do século passado.

“Sem livre arbítrio, dizia ALLAN KARDEC, o homem seria uma máquina.”

É natural que os que entendem que tudo no universo é mecanismo e que o homem não passa de um órgão mecânico da imensa maquinaria universal lhe neguem a faculdade de querer, a faculdade de escolher e de se determinar: semelhante faculdade, introduzida na concepção mecanística do universo, o destruiria imediatamente e esta é a única e lógica razão pela qual os “mecanistas” são obrigados a negar, não só a vontade e a liberdade do homem, mas tambem a vontade e a liberdade de Deus.

No espiritualismo, dá-se exatamente o contrário. O espiritualismo é essencialmente caracterizado pela independência do Espírito com relação à matéria (mundo corpóreo). Somente esta se acha submetida às leis mecânicas e biológicas cuja pressão o Espírito apenas
sofre nas representações materiais que lhe constituem os corpos carnais. Em sua essência, o Espírito deve ser considerado livre, sob pena de não passar de uma modalidade superior da matéria.

A introdução de certas teorias orientais ocultas deu origem, no Ocidente, a pseudo espiritualismos, que não são mais do que naturalismos, isto é, materialismos disfarçados. De sorte que, hoje, a denominação de espiritualista se aplica, tanto a naturalistas que, de boa fé, se creem espiritualistas, como a verdadeiros representantes do estrito espiritualismo, cujo carácter essencial acabo de lembrar.

Eis porque a doutrina espírita é, talvez, a única expressão ainda viva e vivaz da filosofia espiritualista teísta, que coloca, de um lado, Deus e, do outro, a Criação e que, nesta, distingue nitidamente o mundo espiritual do mundo corporal.

Ora, o determinismo (divino ou natural) é a própria lei do mundo corpóreo, é a lei “mecanísticas” da matéria sob infinitas modalidades. A essência do Espírito é a liberdade e unicamente por se achar mergulhado na matéria é que, por ela e nela, o Espirito vê a sua liberdade diminuída e constrangida pelo determinismo da Necessidade.

Mas, à medida que se eleva acima da matéria, o Espírito escapa à Necessidade e readquire a sua liberdade. Tende assim para a Redenção e volta à sua verdadeira pátria: o reino de Deus.


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