Livre
arbítrio e determinismo
por Luís Gastin
Reformador
(FEB) Novembro 1923
Não
há, cremos, no campo de qualquer filosofia, questão mais debatida e que a
maiores controvérsias tenha dado ensejo, do que a do livre arbítrio,
inteiramente negado pelos deterministas de todos os matizes e diversamente
entendido pelos que lhe sentem a necessidade da existência nos seres espirituais.
Mesmo
entre os espíritas, por menos que isso se entenda, não raro se observa fundo desacordo
de opiniões no tocante a essa matéria.
Por
menos que isso se entenda, dissemos.
E
que, efetivamente, constituindo a lei de responsabilidade integral para cada criatura
um dos fundamentos essenciais da filosofia espírita, por isso mesmo que, sem
embargo das adulterações posteriores, o é da doutrina cristã como a pregou
Jesus, e não podendo haver responsabilidade sem liberdade, não se compreende
bem que haja negadores ou duvidadores do livre arbítrio entre os adeptos
daquela filosofia.
Todavia,
esse é o fato, como inegável também é o de ser ainda, para muitos, obscuro, de
difícil percepção quanto à sua latitude, esse princípio, cuja negação, aliás, não
sabemos de que forma se possa combinar com a ideia de perfeição absoluta da
justiça de Deus.
Ao
nosso ver, tudo, assim a negação do livre arbítrio, como a errônea compreensão
da maneira por que devem ser livres os seres, nasce de uma dificuldade única: a
de conciliar-se aquela faculdade com o inegável determinismo a que se acham
sujeitos os Espíritos, pela razão mesma de estarem subordinados ao conjunto das
leis divinas, estabelecidas com a objetivação de uma finalidade exclusiva - a
perfeição.
Pois
bem: a demonstração clara do modo por que o determinismo e o livre arbítrio, fatores
ambos do aperfeiçoamento espiritual, se conciliam, em cada ser, sob a ação do
terceiro fator que é a Providência, foi o que, removendo a dificuldade que atrás
apontamos, o nosso confrade Luiz Gastin, na atualidade um dos mais esclarecidos
disseminadores dos ensinos do Espiritismo, logrou magnificamente no estudo que
vamos transcrever, publicado em dois números sucessivos da Revue Spirite, que o tem como seu secretário.
Na
exposição que aí faz L. Gastin das suas ideias sobre determinismo e livre
arbítrio se nos deparou, amplamente desenvolvida, a superior concepção que do
assunto tinha o genial filósofo pitagórico, de maravilhosa ilustração, o médium
extraordinário que foi, há pouco mais de um século, Fabre d'Olivet, quando ainda de mediunidade, como a compreendemos
hoje, nada se sabia. Essa concepção, em síntese admirável, d'Olivet a exarou na História
filosófica do gênero humano, magistral obra a que ela serve de eixo
principal.
Não
retardemos, porém, com os nossos comentários o instante do leitor travar
conhecimento com o belo trabalho a que nos referimos. Com o que vimos dizendo,
não pretendemos, por agora, aprecia-lo, senão apenas encomiá-lo (elogia-lo), como se nos afigurou que merecia,
recomendando-o ao apreço dos estudiosos. Ei-lo:
O Snr. Albino
Valabrègue, cuja grande atividade de propagandista todos os espíritas
conhecem, houve por bem propor-me n'O
Bienista quatro questões relativas ao problema da liberdade humana.
Essas questões estão assim formuladas:
1ª) Pois que os homens são livres
(relativamente) porque conservam seus defeitos?
2ª) Pois que, na sua opinião, em a nossa existência
anterior, que vem a ser exatamente a nossa liberdade em face dessa conta a
pagar?
3ª) Pois que, na sua opinião e na nossa, se
pode predizer o futuro, o que é essa liberdade conhecida de antemão?
4ª) A crença no livre arbítrio induz ou não
à pratica dos assassínios por ódio, vingança e talião?
Antes de responder às questões formuladas
pelo Sr. Albino Valabrègue - questões
que evidentemente interessam a toda gente- parece-me indispensável colocar o
problema do livre arbítrio e do determinismo no terreno próprio e precisar,
sobretudo, a distinção que existe entre a teoria filosófica do determinismo
absoluto, à que se acha filiado o nosso velho amigo - quer esse determinismo
seja mecânico, quer seja divino - e a teoria da relatividade, a que se filiam
os espíritas kardecistas e eu próprio, teoria em que a liberdade humana se combinam em proporções variáveis para
cada um de nós - com o determinismo das leis universais, a fim de constituir o
nosso destino.
Esta maneira de proceder me vai obrigar a
redigir talvez um artigo muito longo e a só dar in fine resposta às questões acima. Terá, contudo, a vantagem de
legitimar essa resposta em nome da razão lógica, positivamente a única autoridade,
excluídos os fatos diante da qual me curvo em todas as circunstâncias.
* * *
Em primeiro lugar: que é o Determinismo? É,
essencialmente, um sistema filosófico que nega à Vontade humana a faculdade de agir livremente e que atribui tão só a moveis a causa eficiente dos nossos atos.
Este sistema tem a representa-lo atualmente os positivistas e os materialistas
de todas as escolas; mas é curioso notar-se que a sua origem se encontra na escolástica
religiosa, que subordinava rigorosamente à influência da Providência divina a
determinação da vontade.
Ora, em virtude da lei de reação, real em
todos os planos, a ciência, quando pode libertar-se das cadeias da religião, se
precipitou do lado oposto a esta e mergulhou nos excessos da matéria, por
aversão aos excessos do espírito. Os atos do homem foram tidos então como
determinados por motivos cuja influência, necessária e irresistível, pareceu
suficiente. Assim, o ato surgia como consequência fatal, inelutável, mecânica,
por bem dizer, desses motivos ou móveis
oriundos da educação, do meio, das tendências pessoais do ser, do atavismo, da
hereditariedade, etc.
Mas o determinismo materialista, como o determinismo
religioso, negando o livre arbítrio, suprimia ipso facto a responsabilidade. A tese era perigosa e, em nome da
moral, alguns filósofos se levantaram contra ela. O argumento, entretanto, era
especioso, insuficiente: a moral, muito variável e relativa, não poderia ser
considerada um criterium de verdade.
Fosse como fosse, o livre arbítrio teve
desde então partidários encarniçados, muito encarniçados mesmo, porquanto caíram
assim no excesso da qualidade que os distinguia. O grande erro dos partidários
do livre arbítrio - idêntico ao dos adeptos do determinismo - foi o de o terem
julgado absoluto, quando tudo no homem, ser relativo, é relativo como ele.
Agora, que é o livre arbítrio? É o poder,
atribuído à vontade, de escolher livremente, de se determinar a si mesma.
***
O Determinismo existiu de todos os tempos e
o que, através das idades, se chamou o Destino tomou diversos aspectos e diversas
significações:
a) Foi, primeiramente, o deus da Mitologia:
fatalidade absoluta, cheia de mistérios, tendo em seu poder os homens e as
coisas;
b) Apresenta-nos, em seguida, o seu aspecto
teológico: é a predestinação e a graça eficaz, que traduzem uma exageração da
ideia de Providência;
c) Conhece- se também o aspecto “filosófico”
do Destino, que visa a ordem natural
das coisas e se exprime como sendo o conjunto das leis do Universo produzidas
pela confirmação da Necessidade e da Providência, da inteligência eterna e
das propriedades cegas da matéria (A. Franck);
d) Finalmente, para o materialismo e o
positivismo contemporâneos, o Destino
é
a aplicação mecânica das leis biológicas, manifestando o Determinismo
universal.
A Vontade,
como expressão do livre arbítrio, foi igualmente admitida em todas as épocas,
mas amiúde contestada violentamente.
Desde os primeiros tempos da Igreja, a
querela estalou entre os partidários da graça e os do livre arbítrio. Os filósofos
da idade média e, mais tarde, Clark e
Ried, defenderam o que Fénelon e Bossuet chamaram a “liberdade
de indiferença” - que não passa de uma espécie de determinação sem motivos
- para Deus, tanto quanto para o homem.
Este princípio se opõe rigorosamente ao
muito conhecido princípio da “razão bastante”. Já Pelagio e Celestius
haviam declarado ser o homem senhor do seu destino e afirmado assim o livre arbítrio
absoluto. Santo Agostinho tentou equilibrar
os dois fatores: Vontade e Providência. Por seu lado, Leibnitz fez a afirmação de que a Vontade segue sempre a última
determinação do entendimento. Afinal, Spinosa
pretendeu admitir a liberdade pela consciência, mas apenas chegou a exprimir um
fatalismo absoluto, caracterizado por causas determinantes conhecidas ou
desconhecidas, antigas ou recentes.
Em meio de todas essas controvérsias, dessas
lutas as vezes violentas - e não falo das concepções filosóficas mais modernas -
o espírito fica hesitante, sem mais achar saída, nem solução, porque o
horizonte é escurecido e velado pelas intransigências das teorias opostas.
Allan Kardec foi um dos raros homens que
hão compreendido que a verdade, como sempre sucede, devia estar num justo meio.
(1) Ele admite o livre
arbítrio: “Sem livre arbítrio, diz, o homem seria uma máquina”. Também reconhece a influência dos móveis,
consequências naturais dos atos anteriores, e a influência contingente do meio
onde o Espírito encarnado tem que agir.
É esta, creio, a solução verdadeira, como o
vai talvez provar a exposição, a que agora chego, das minhas concepções pessoais.
***
De tudo o que acabamos de dizer resulta que
o problema posto pelo ato humano
comporta duas soluções extremas, aparentemente
contraditórias:
Vontade Móveis
(+)
(-)
Isto é conforme a grande lei da polaridade:
a Vontade representa o elemento ativo
ou positivo; os Móveis representam o
elemento passivo ou negativo. De novo encontramos assim os eternos polos do
movimento (vontade) e da resistência
(móveis).
Resta-nos descobrir o termo médio que os
une, a forma “equilibrada e mista” que atua ora sobre um, ora sobre o outro
desses dois polos.
Esse terceiro fator é a Providência não, bem entendido, a Providência
dos Pais da Igreja, dos teólogos, a qual, como vimos, pela predestinação e pela
graça eficaz, não constitui, em suma, senão um determinismo religioso, um “fatum” divino, em que apenas os móveis
do determinismo materialista se acham substituídos pelos decretos de um Deus
pessoal e caprichoso.
A Providência,
para nós, é o conjunto das forças inteligentes exteriores ao homem, inteligências
volitivas e conscientes, pertencentes ao que chamamos o mundo espiritual. Neste
sentido, a Providência corrige os
rigores do Destino e modera os
excessos da Vontade, tendo em vista
justamente obter o equilíbrio, a harmonia, que são a essência mesma do progresso.
É a força equilibrante. Os Móveis
constituem a força passiva, correspondente ao polo da resistência; a Vontade constitui a força ativa,
correspondente ao polo do movimento.
Se nos reportarmos ao que precede,
verificaremos que:
1º) O determinismo religioso afirma a ação
única da Providência.
2º) O determinismo materialista afirma a
ação única dos Móveis (Destino).
3º) A tese do livre arbítrio absoluto
afirma a ação única da Vontade.
Cada um destes fatores foi tomado como base
única de um sistema, quando devem ser considerados como realizando, pela sua tríplice
ação convergente, a tendência do Espírito para a perfeição.
O exemplo seguinte nos vai permitir que compreendamos
esquematicamente o mecanismo da intervenção respectiva dos três fatores, nos
diversos atos da vida:
Ides de automóvel por uma estrada cujos
numerosos zig-zags vos impedem de “prever” as particularidades. Correis com uma
velocidade determinada, cuja consequência fatal
há de ser, num momento preciso e em certo lugar - fáceis de deduzirem-se - o
vosso encontro com outro veículo que vem em sentido contrário, ou com um obstáculo
inerte que não podeis ver.
Esse encontro é o Destino, força cega, mecânica, fatal, que um “vidente”, um ser colocado
em lugar alto, donde percebe, com seus pormenores, a cena de que se trata pode
descrever e “predizer”, com mais ou menos exatidão. Porém, antes do encontro “fatal”, delibera diminuir a velocidade
com que íeis, parar, ou, até enveredar por outro caminho. Intervém a vossa Vontade: o destino não se realizará.
Neste caso e no caso seguinte, não se
poderia dizer que o “vidente” se enganou, pois que não lhe é dado prever senão
a parte do Destino no futuro, isto é,
o encadeamento “normal” das causas aos efeitos!
Admitamos que a vossa Vontade não intervenha. Realizar-se-á, por isso, inevitavelmente, o
Destino? Não.
Um transeunte também “vê” a cena, prevê o
encontro e decide intervir. Pode ele:
a) parar o veículo que vem em direção oposta,
ou deslocar o obstáculo contra o qual iríeis esbarrar;
b) fazer “sinais” a fim de que pareis. Esse
transeunte é a Providência (força
inteligente, consciente e volitiva exterior). No primeiro caso acima, pode acontecer
que lhe não percebais a intervenção, que esta se vos conserve ignorada, pois
que se efetuou sem participação vossa. No caso dos “sinais” podeis:
a) ou obedecer e o encontro (Destino) não se verificará;
b) ou prosseguir (por inadvertência ou por
desprezares o aviso) e o encontro se dará.
Somente neste último caso, notareis, porém
já um pouco tarde, a intervenção providencial desprezada.
***
Facilmente se reconhecerá que o exemplo
acima responde, por analogia, a algumas objeções muito importantes dos adversários,
assim da liberdade, como do determinismo e até dos adversários da previsão do
futuro, previsão que não poderia ser infalível nem constante, pois que apenas
pode dizer respeito à ação de um único fator: o Destino, escapando-lhe a intervenção possível dos fatores Vontade e Providência.
De sorte que, quando uma predição - sincera
e verdadeira, bem entendido - não se realiza, isso de modo algum, prova que o
vidente se enganou, mas apenas que a série dos fatos que deviam, normal e
mecanicamente, terminar no acontecimento predito foi interrompida e desviada
pela intervenção imprevista e imprevisível do fator Vontade ou do fator Providência.
Se o determinismo absoluto fosse exato
todas as predições se realizariam infalivelmente... o que seria horrível e
envenenaria literalmente a nossa existência, que somente suportamos porque o
futuro se nos conserva quase sempre desconhecido... e alimentamos a Esperança.
Por outro lado, se aplicarmos o exemplo do
automobilista ao assunto com que nos ocupamos, comprovaremos que:
1º Os deterministas materialistas só vêm o
obstáculo;
2º Os deterministas religiosos só vêm o transeunte;
3º Os partidários exclusivos do livre arbítrio
só vêm o automobilista.
A verdade, como sempre, está num justo meio.
A figura junta nos vai permitir determinar
esse “justo meio”.
Seja um triangulo, cujos vértices
representam, respectivamente:
D - o Destino;
P - a Providência;
L - o Livre
arbítrio;
Cada um destes fatores é uma causa cuja consequência
vamos representar por uma mediana tirada de cada vértice sobre o lado oposto. O
ponto de interseção das três medianas - “O” - representa o fato oriundo
daquelas consequências: é, matematicamente, centro de gravidade do triângulo.
Para que não haja possibilidade de
confusão, vou precisar o sentido que dou a cada um dos termos acima:
O Destino
é o encadeamento normal dos fatos, a partir de uma causa dada, encadeamento
esse operado em virtude das leis naturais que tudo regulam no Universo e lhe
asseguram o funcionamento harmônico.
A Providência,
conforme o indiquei linhas atrás, é aqui um termo genérico, que designa toda ação
inteligente, consciente e volitiva, exercendo-se fora do indivíduo considerado:
aplica-se, todavia, mais particularmente, às noções benéficas que provêm do
mundo espiritual.
O Livre
arbítrio é a faculdade que a Vontade humana possui de escolher entre os
diversos móveis que se lhe oferecem, dentro de um quadro determinado. Pode-se
também defini-lo: “A faculdade de fazer
ou não fazer, segundo a determinação da Vontade.”
Fácil é de compreender-se que, em
semelhante concepção, a Liberdade
humana se reduz a uma simples faculdade de escolha, faculdade limitada pela ação
mecânica do Destino encadeando os
efeitos às causas, segundo leis fixas e imprescritíveis, e, por outro lado, suscetível
de ser influenciado pelas sugestões providenciais.
Não me parece que seja possível negar-se
qualquer dos três fatores, ou dois deles, em proveito de um só: o estudo atento dos fatos psicológicos ou de
herdade de exame e de escolha. O mesmo estudo, com o dos fatos biológicos e das
leis mecânicas, prova que essa escolha não é ilimitada, mas sim restrita, pelas
contingências, a um número determinado e variável de móveis. Doutro lado, a
influência das “vontades estranhas”, quer sejam “encarnadas”, quer puramente
espirituais, é inegável para quem tenha estudado os fenômenos psíquicos e metapsíquicos,
ou espíritas.
Devemos ainda considerar que:
1º) a Providência
nem sempre intervêm, nem sempre a sua intervenção tem a mesma intensidade;
2º) a Vontade
não se acha desenvolvida em todos os homens nas mesmas proporções; assim é que
uns se deixam arrastar pelo Destino
ou pelas sugestões providenciais, por apatia ou abulia, sem tentarem reagir, enquanto
que outros têm a Vontade constantemente
alerta e reduzem ao mínimo ipso facto a influência da fatalidade das sugestões
estranhas;
3º) O Destino,
enfim, não tem idêntico poder de ação em todos os seres; há homens que sofrem
literalmente uma invencível fatalidade.
Somos ainda levados a admitir que o ponto ‘O’
da nossa figura não é imutável e que pode aproximar-se mais ou menos dos pontos
‘D’, ‘P’ ou ‘L’, conforme a preponderância das causas que esses pontos
representam. É ali, creio, que se dá a conciliação das teorias antagonistas do Livre arbítrio e do Determinismo, seja este religioso, seja científico. Não
existe ato inteiramente livre, uma vez que, segundo a nossa fórmula acima, a
determinação da Vontade se efetua em
virtude de móveis cujo número é limitado pelas múltiplas contingências. O ato
mais livre é justamente aquele em cuja determinação entra maior número de móveis,
pois que a Vontade, para firmar a sua
escolha, é obrigado a um trabalho de discriminação e de eliminação mais
complexo e mais preciso (1).
(1) Se, numa dada ocorrência, só me é lícito
escolher entre duas soluções, evidentemente a minha ‘liberdade de agir’ se acha
mais restringida do que grande número de opções se me oferece.
Negar a influência dos móveis fora admitir
que a Vontade pode agir sem motivo
algum, após eliminação de todos os móveis, o que seria absurdo.
Negar a ação determinante da Vontade sobre os móveis seria recusar ao
homem toda responsabilidade e cair na perigosa doutrina do fatalismo. A solução
científica do problema, que vamos agora encarar, nos conduz a repelir
semelhante asserção.
Livre
arbítrio e determinismo (continuação)
por Luís Gastin
Reformador
(FEB) Novembro 1923
Quando os fisiologistas quiseram estudar o
mecanismo cerebral, tiveram que seguir o processo do exame clínico dos fatos
patológicos. Estudando-se clinicamente os casos de afasia e de paralisia, foi
que se pode estabelecer as localizações cerebrais. Comprovando, por exemplo,
que um homem, que sofrera uma lesão traumática do cérebro, perdera o uso da
palavra, da motricidade, do sentido tátil, pode-se estabelecer que os centros
nervosos cerebrais dessas faculdades se encontravam exatamente no ponto onde se
verificara a lesão (1).
(1)
O fato de, em certos casos de destruição mais ou menos importante dos centros
cerebrais, serem conservadas ou poderem ser despertadas novamente as faculdades
correspondentes, não diminui o valor clinico das observações de Déjerine, Grasset,
etc. sobre as localizações.
Os
centros cerebrais não criam as faculdades. São simples através dos quais o
Espírito se manifesta. Em certos casos, pode o Espírito suprir a perda ou a
deterioração desses aparelhos. E isto não destrói aquilo, do mesmo modo que o
fato de poder-se por meio de um ímã, deter uma porção de aço em sua queda para
o solo não destrói a verdade das leis da atração e da gravidade.
Nesta ordem de ideias, a melhor maneira de
provar-se que uma coisa existe é suprimi-la. Para provar cientificamente a existência
do livre arbítrio, vamos, então, suprimi-lo, ou antes - como a sua supressão
poderia ser difícil e perigosa - vamos considerar uma pessoa em quem o livre
arbítrio está aniquilado, destruído patologicamente. Essa pessoa é o neurastênico,
doente conhecido de toda gente e que, assaltado por mil móveis, cujas vantagens
ou inconvenientes respectivos constantemente calcula, se acha na
impossibilidade de proceder a uma escolha entre eles, de se determinar.
É um erro negarem os médicos, na sua
maioria, e até certos psiquiatras à neurastenia o caráter de verdadeira
enfermidade e entenderem de chocar os acometidos dessa doença, limitando-se a
responder-lhes: “Mas o senhor não tem nada! Convença-se a si mesmo de que não
tem nada! Tenha vontade, que diabo!”
Este método, um pouco simplista, de
tratamento, só raríssimas vezes dá bom resultado. Na neurastenia essencial, caracterizada
por uma abulia profunda, penso que não se pode conseguir a cura dizendo ao
doente que tenha vontade, pois que justamente na ausência de energia volitiva e
nervosa, é que está a moléstia.
Seja como for, o neurastênico não pode
tomar uma decisão em presença do afluxo de motivos que o assaltem, não obstante
o número e a intensidade desses motivos. Ah! não lhe faltam os móveis e, se
fosse exata a tese determinista, ele seria precisamente o ser mais “determinado”
mais ativo, mais volitivo que existir pudesse. Ora, exatamente o contrário é o
que sucede.
Os seguintes dados da fisiologia farão
compreender a razão desse fato.
A força nervosa que circula em todo sistema
cérebro-espinhal pode comparar-se à coluna de mercúrio de um termômetro, sendo
a ampola muito bem representada pelo sistema ganglionar (grande simpático). Chamá-la-emos
a coluna neurométrica.
Para completar a imagem, estabeleceremos
como se segue a graduação do termômetro nervoso:
Embaixo, a alguns graus acima da ampola, se
acham os centros medulares, formados de neuronas inferiores (células nervosas
com seus prolongamentos).
Alguns graus acima, os centros mesoencefálicos,
formados pelos neuronas sobressalentes.
Mais alto, os centros corticais (polígono do
automatismo psicológico, domínio das ideias,
formados de neuronas superiores.
Enfim, no ápice, o centro de ideação
(domínio da vontade consciente e do pensamento) hipoteticamente colocado, pelos
modernos fisiologistas, no córtice das circunvoluções pré -frontais.
O centro de ideação (centro ‘O’ de Grasset)
é o aparelho físico sobre que o Espírito atua para dirigir o organismo.
Se compararmos esse centro a um posto
central de telegrafia, o Espírito será o
telegrafista
que o ocupa.
Pois bem: no sono natural, que é devido a
uma diminuição da quantidade de força nervosa normalmente necessária para
manter as relações entre o Espírito e o corpo (2), a coluna neurométrica desce
abaixo do grau “centro de ideação” e, no sono muito profundo, abaixo do grau “polígono
cortical”.
(2)
Bem sei que, nestes últimos tempos, novas hipóteses se apresentaram para
explicar o sono (invasão dos tecidos pelas toxinas, etc.), mas essas diversas
hipóteses só se aplicam a casos particulares e não têm, portanto, o valor
lógico da que optei. As novas concepções sobre o sono são construídas sobre
“casos especiais” e tomam, como causas eficientes, fenômenos fisiológicos
concomitantes que Le Dantec teria chamado “epifenômenos”.
Na embriaguez levada ao extremo, no
indivíduo bêbado-morto, a coluna neurométrica desce ainda mais abaixo e, se a
retirada da força nervosa for muito completa ou muito rápida, poderá sobrevir a
morte.
Na loucura, a coluna neurométrica também
desce abaixo do grau “centro de ideação”, não mais por diminuição da quantidade
de força nervosa, porém por “congestão” de um dos centros automáticos do polígono,
sob a ação brutal de uma surpresa física ou psíquica, ou pela ação lenta e
progressivamente absorvente de uma ideia fixa.
Na neurastenia - e aqui surge nitidamente a
diferença entre este estado patológico e a loucura (ou mesmo a psicastenia) - há,
etimologicamente, astenia, ou, se
preferirdes, anemia: anemia
nervosa, Então, a coluna neurométrica vacila
constantemente entre o grau “centro de ideação” e o grau “polígono cortical”,
sem chegar a manter-se em equilíbrio.
Daí vem que o Espírito, embora continue a
atuar sobre o organismo de um modo geral, não mais pode normalmente exercer sua
ação sobre o polígono (domínio das ideias
e, por conseguinte, dos móveis). Não pode mais determinar-se, escolher
entre os móveis; e estes, entregues a si mesmos, são chamados a dirigir a máquina
sem o “controle” da Vontade, ao
acaso das preponderâncias transitórias, sem a influência determinante do livre
arbítrio, isto é, da livre escolha do Espirito.
Ora, verifica-se que os móveis, assim “entregues
a si mesmos”, se combatem
permanentemente,
sem que intervenha qualquer solução. Faltando a Vontade, causa determinante, o
neurastênico, com toda a sua inteligência, de posse de todas as suas faculdades
de memória e de raciocínio, não pode mais decidir-se.
Este caso patológico precisa claramente o
papel da Vontade na determinação dos atos. Assim é que, isolando o livre
arbítrio, creio ter chegado a demonstrar-lhe a existência.
***
Há uma lei oculta muito interessante que
mostra que tudo procede da ação de um princípio ativo sobre um princípio
passivo e aqui mesmo podemos fazer uma curiosa aplicação dessa lei.
No problema que formulamos, o elemento
ativo primordial é a Vontade; o
elemento passivo, sobre o qual atua o primeiro, é o grupo dos Móveis. Da ação da Vontade
sobre os Móveis nasce a Determinação, que se resolve
praticamente em Ato.
O Ato
se torna então um novo elemento ativo, que vai encontrar, como elemento passivo
o grupo das Contingências.
Realizando-se nas e através das Contingencias,
o Ato dará origem ao Fato.
O Fato
constitui um novo elemento ativo que designaremos pelo termo “Presente”. A simples circunstância da
sua aparição o põe em oposição a um elemento passivo constituído pelo grupo dos
fatos anteriores, que chamamos “Passado”.
Ele atua sobre esses fatos anteriores e desta ação do Presente sobre o Passado
vai nascer o Futuro... Interrompo
aqui a minha exposição.
Interrompo aqui a minha preleção se bem que
ela possa levar-nos muito mais longe; mas o que aí fica me parece suficiente para
que os meus leitores encontrem, meditando, a solução das diversas questões
propostas e das objecções formuladas contra as teorias espíritas
do livre arbítrio relativo, da lei das consequências (lei de causa e efeito ou
lei de causalidade), etc.
Vou concluir.
* * *
Assim, o livre arbítrio, no homem, é a
faculdade de fazer ou não fazer, segundo a determinação da Vontade.
Como é que a Vontade se determina? Incontestavelmente pela comparação dos diversos Móveis
que a incitam, pelo discernimento de
suas consequências ou de suas vantagens e inconvenientes respectivos e pelo
julgamento a favor de um ou de muitos dentre eles.
Pode dizer-se que os Móveis constituem a causa predisponente
do ato em gestação e a Vontade a
causa determinante.
Um exemplo tomado à patologia esclarecerá
este ponto.
Sabe-se que o artritismo - como todas as
diáteses - predispõe a certas afecções: notadamente ao reumatismo. Ora, se um
artrítico tomar todas as precauções dietéticas e outras necessárias, pode muito
bem evitar o reumatismo. Se cometer imprudências, se se expuser, por exemplo,
ao ar úmido, irá imediatamente para a cama.
Pois bem, todo mundo sabe que, em tal caso,
a diátese artrítica constitui a causa predisponente
e a exposição ao frio úmido a causa determinante.
Mas, ao espírito de nenhum médico acudirá a ideia de incriminar uma só dessas
causas, negando a Influência da outra.
O mesmo se dá com os atos humanos,
relativamente aos quais não temos o direito de negar nem a intervenção da causa
predisponente, que são os Móveis, nem a da determinante, que é a Vontade (ou faculdade de escolher
livremente os móveis).
Devemos lembrar aqui que os Móveis podem vir do mundo espiritual
(manifestações providenciais ou determinismo divino) ou do mundo material (instintos
e contingências aturais, ou determinismo científico).
Deste modo é que se conciliam, segundo a fórmula
oculta da harmonia dos contrários, teorias antagônicas, cujo erro consiste
simplesmente no fato de cada uma se julgar absoluta e a única verdadeira.
Somos seres essencialmente relativos e
vivemos no Relativo. O absoluto só em
Deus existe, razão por que me foi possível dizer que Deus é o único Ser
absolutamente livre e, ao mesmo
tempo, absolutamente determinado por
essa mesma liberdade, que se confunde, em extrema Perfeição, com todos os outros atributos do Perfeito absoluto.
Livre
arbítrio e determinismo (conclusão)
por Luís Gastin
Reformador
(FEB) Novembro 1923
Agora que expus as teses do Livre
Arbítrio relativo a que se refere o Espiritismo Kardecista e na qual encontra
seu lugar próprio um determinismo racional, igualmente relativo, mais fácil me
é responder às questões formuladas pelo Sr. Albino Valabrègue. Vou fazê-lo tão
sucintamente quanto possível.
1ª questão: Pois que os homens são livres
(relativamente), porque conservam seus defeitos?
Longínqua é a relação que esta questão
guarda com o problema da Liberdade restringida pelas condições naturais da
evolução. Para verificar-se que assim é, basta se tenha compreendido bem o mecanismo
da tese acima sustentada.
Com efeito, a primeira consequência desse
mecanismo é que o ser humano, ou antes, o Espirito em evolução, livre na
escolha dos atos que tem de praticar, é determinado pelas consequências naturais
de todos os que já anteriormente executou. Ele é livre no passado mas preso
pelo passado, o que forçosamente lhe restringe a liberdade.
Ainda aqui um exemplo analógico pode
ser útil:
Incontestavelmente,
livre era eu de responder ou não às questões propostas, aliás cortesmente, pelo
Sr. Valabrègue.
Respondo,
depois de haver livremente escolhido
a minha resolução. Feito isso, eis-me
dentro de certos limites, preso pelo meu ato, pela minha resposta e - queira ou
não queira - terei que sofrer as consequências naturais deste ato. Essas
consequências constituem, a datar de hoje, uma parte de meu Destino (encadeamento normal dos fatos a
partir de uma dada causa). A influenciação destas consequências pode, teoricamente,
exercer-se sobre a minha vindoura liberdade, no caso em que fosse chamado a
tomar uma decisão mais ou menos diretamente ligada a esta controvérsia. Procedi
livremente, mas, ao mesmo tempo, criei
um certo determinismo para os meus atos futuros.
Se não houvesse respondido, teria do mesmo
modo criado um certo determinismo, porém noutro sentido, eis tudo.
Todavia, este determinismo assim criado pelo meu ato livre não tem e não pode ter influência absoluta e definitiva,
que abala toda liberdade para o futuro: apenas esta, nas suas decisões, terá
que levar em conta aquele determinismo. Aumentei o número dos móveis que ela
terá de defrontar e entre os quais terá que escolher.
Isto vai dito com relação a todas as
questões da mesma ordem e para precisar bem o mecanismo da ação combinada da Vontade e dos Móveis. Um provérbio oriental diz, mais ou menos: “És escravo da palavra que proferiste e
senhor da que não pronunciaste.” Outro tanto se pode dizer do ato.
Quanto à segunda parte da questão do Sr.
Albino Valabrègue, considerada isoladamente, abre novo e muito extenso debate
em que por agora não me quero empenhar. Fora mister, antes de tudo, precisar o
que é um defeito, quais as suas raízes, como terá que ceder o lugar a uma
qualidade, sob a ação lenta e progressiva da evolução redentora.
Há aí, repito, um problema muito diverso,
infinitamente vasto, que, se houver oportunidade, examinaremos doutra feita.
Demais, o problema poderia ser colocado no sentido rigorosamente oposto ao que
o nosso amigo adotou. Ele se admira de que um ser, livre, conserve seus
defeitos. O fato não está provado, mas em todo caso, alguns espiritualistas (e sou do número deles) pensam que o homem tem
defeitos justamente por ser livre e na medida em que o é e que sofre exatamente
porque a sua liberdade lhe permite tomar decisões contrárias às leis harmônicas
que geram o bem sob todos os seus aspectos.
Falível e sofredor, o homem, se estivesse
submetido ao determinismo divino e privado inteiramente da faculdade de
escolher, seria a negação da bondade e da presciência de Deus.
2ª questão: Pois que,
na sua opinião, a nossa existência tem que pagar as faltas de uma existência
anterior, a que fica reduzida exatamente a nossa liberdade, diante dessa nota a
pagar?
Já respondi por diversas vezes a esta questão
e o fiz em começo da resposta precedente. Mostrei que todos os nossos atos
passados, frutos do livre exercício da nossa faculdade de escolher, intervêm de
seguida, por suas consequências, como limitadores da nossa liberdade, constituindo
o que se poderia chamar “o nosso Destino
adquirido”.
É a aplicação rigorosa da palavra do
Cristo: “Cada um colhe o que semeou e
semeia o que colherá.”
A reencarnação nada tem que ver com isto,
porquanto a única diferença que introduz na determinação do futuro, pelos atos
livres do passado, é que, em vez de deixar que ela se exerça nesse pequeníssimo
fragmento do Tempo que se chama uma
existência (e que varia, indo
de alguns minutos apenas a mais de um século), a reencarnação estende essa
determinação a toda a evolução do Espírito, através de uma série indefinida de representações
sensíveis (existências).
Para todo espiritualista, a reencarnação é
uma questão de lógica. Esta lógica se junta à da liberdade relativa, mas de
nenhum modo a condiciona.
Acrescentarei que a expressão: “nota a
pagar”, como estas outras: “julgamento”, “punição”, “recompensa”, etc. me parecem
pertencer ao velho vocabulário teológico e são incompatíveis com as concepções
do espiritualismo científico. Para este, não há “nota a pagar”, nem “julgamento”,
nem “punição”, no fato de um ser, que “feriu com a espada”, perecer “pela
espada” (sentido simbólico), como não há “punição”, nem “julgamento”, nem “nota
a pagar”, no meio de um de nós ficar com a mão queimada, se a expuser ao fogo.
O sobrenatural não existe. Deus governa os
mundos por meio das leis harmônicas e perfeitas que que próprio estabeleceu.
Estas leis se nos impõem e quando as contrariamos - em virtude, exatamente, da
nossa faculdade de escolher (livre arbítrio], elas nos ferem por natural
reação.
Em próximo artigo falarei mais
especialmente da lei de causalidade, ou das consequências - que os Indus chamam
Karma - e mostrarei qual o seu mecanismo e o seu alcance. O Sr. Valabrègue
encontrará nesse artigo uma resposta complementar à sua questão.
Permitir-me-ei observar-lhe muito amistosamente
que, com efeito, suas questões são redigidas de tal maneira que suscitam não só
o problema do livre arbítrio, mas, ao mesmo tempo, um certo número de outros
problemas, cada um dos quais necessitaria desenvolvimento igual no que dei
aqui.
3ª questão: Pois que, na sua opinião e na
nossa, se pode predizer o futuro, o que vem a
ser essa liberdade conhecida de antemão?
Aqui, estamos de acordo sobre um, pelo
menos, dos elementos da questão:
a
possibilidade de predizer-se o futuro.
Contudo, nuns artigos que publiquei outrora
em Le Sphinx, encontrar-se-ão
desenvolvimentos
sobre esta possibilidade de previsão. Sem retomar a questão, igualmente
complexa, basta-me ponderar que, enquanto que é possível predizer-se o futuro,
impossível é predizer-se todo o futuro. Afirmo isto, alto e bom som, sem temor
de que alguém me venha contradizer. De um estudo muito aprofundado que fiz da
questão, examinando sucessivamente todos os modos de previsão, de premonição,
de conjectura etc., resulta de maneira incontestável que a proporção das
predições verdadeiras e sinceras que
se realizam não excede a 30 % ou seja a cerca de um terço do total delas.
Ainda aí, sou obrigado a deferir a questão
para artigo ulterior e especial, a fim de dar explicação suficiente do
mecanismo da previsão do futuro.
Seja como for, essa previsão é indubitavelmente
relativa (como tudo) e limitada. O espanto do Sr. Valabrègue se justificaria,
se o futuro fosse inteiramente e inelutavelmente previsível. Ora, nada nos
permite avançar semelhante asserção. Longe estamos de poder fazê-lo. Os fatos
de previsão são mesmo de tal modo restritos em quantidade e em qualidade, que a
previsão é negada por um mundo de gente que ainda não teve ocasião de comprová-la.
Pois bem: o que é previsível no futuro,
conforme o mostrei em começo deste artigo, no exemplo do automóvel, é
unicamente a porção aferente ao Destino
(encadeamento normal dos fatos a partir de uma dada causa). A intervenção dos
dois outros fatores, que contribuem, com
o Destino, para construir o futuro, a
saber: a Vontade pessoal do ser e as Vontades estranhas (Providência), escapa totalmente à possibilidade de previsão.
Num artigo sobre o “Livre Arbítrio e a
Previsão do Futuro”, que publiquei em 1920, no jornal Le Sphinx, nº 11, pág, 86, escrevi:
“Se
o livre arbítrio não existisse, se a Providência nunca interviesse na nossa
vida, as matrizes do Destino seriam
imutáveis e inevitáveis.
Os
amadores de ciências conjecturais e os videntes, libertos da influência
perturbadora da própria Imaginação, prediriam com segurança:
A
adivinhação teria a precisão de uma matemática...
...E
a vida seria impossível.
Imaginai
por um momento que as menores particularidades da vossa existência pudessem ser
conhecidas e anunciadas, que pudésseis saber quando estareis doentes e quando
morrereis, com a circunstância terrível de que, sendo imutável o Destino, nem o Doutor-Providencia poderá
vos salvar da enfermidade, nem nenhum esforço pessoal vos poderá evitar a morte
na hora predita.
Imaginai
que fosse assim e confessai que a vida seria inaceitável, intolerável,
verdadeiro tormento e que, portanto, o ordenador de todas as coisas obrou
nisto, como em tudo, com sabedoria, inteligência e amor infinitos.”
Em conclusão e para passarmos à quarta
questão proposta pelo nosso amigo: na previsão do futuro, o que se torna “conhecida
de antemão” não é a liberdade, mas apenas o desenrolar, de certo modo, mecânico
do Destino, um só dos três fatores.
4ª questão: A crença no livre arbítrio leva
ou não à prática dos assassínios por ódio, vingança
e talião?
A isso respondemos francamente: NÃO, caro
senhor Valabrègue. Por prova, não
preciso
mais do que o meu exemplo pessoal: estou profundamente convencido da verdade
das ideias que acima expendi a favor do livre arbítrio (relativo, não o
esqueçamos nunca). Ora, eu me sinto formalmente incapaz de nutrir ódio, a tal ponto
que alguns dos nossos amigos chegam a considerar isso em mim excessivo. Nunca
me vinguei e de tal coisa não posso ter ideia senão, apenas, durante o momento
de cólera que se segue imediatamente à ofensa e pelo qual é em grande parte
responsável o meu temperamento sanguíneo. Quanto à pena de talião,
considero-a uma manifestação de selvageria que nivela o homem ao bruto.
Estou persuadido de que a crença filosófica
ou religiosa na liberdade humana ou a submissão do ser ao determinismo de Deus
ou da natureza são rigorosamente estranhas às manifestações de amor ou de ódio,
de perdão, ou de vingança, de talião, etc. Estas manifestações procedem de causas perfeitamente
estranhas às nossas crenças ou mesmo às nossas certezas, que, quando muito,
podem suscitar, em certos casos, uma “vontade” de aperfeiçoamento, que as mais
das vezes se conserva no estado de simples “desejo platônico”.
Nesta ordem de ideias, parece que a crença
no determinismo é que seria nociva à evolução para o amor, à luta contra os maus
instintos, por persuadir o homem da inutilidade de qualquer esforço, em virtude
da dependência rigorosa do ser aos decretos divinos ou às opressões
da natureza.
O Sr. Valabrègue colocou mal a questão;
natural é, portanto, que seja inexata a sua resposta. O ser humano é
fundamentalmente “pessoal”, quando pratica um ato, ou toma uma atitude, fá-lo
muito menos de acordo com a opinião que forme de outrem do que de acordo com as
consequências que esse ato ou essa atitude lhe acarretarão.
Nenhuma importância tem absolutamente que o
marido ultrajado ou a mulher ciumenta considerem livre ou determinado o outro cônjuge;
vingar-se-ão, ou perdoarão, de acordo com as suas naturezas individuais, com
seus temperamentos instintivos, ou, talvez, de acordo com suas crenças
religiosas ou filosófica - pelo que essas crenças lhes interessem ao futuro
espiritual ou ao dever pessoal - nunca, porém, se inspirarão, para vingar-se ou
perdoar, no grau de responsabilidade do ser de quem julguem ter motivo de
queixa.
Aliás, a tese do livre arbítrio relativo
que sustento, concederia sempre, em tais casos, ao acusado as circunstâncias
atenuantes, pois que ela é a tese da responsabilidade limitada.
A crença no determinismo é, ao contrário,
perigosa no mais alto grau para a moral individual e coletiva, em virtude mesmo
dessa tendência que tem o homem para, antes de tudo e quase que unicamente,
considerar-se a si próprio. Se ele se julga livre (relativamente) e, por conseguinte,
responsável (dentro de certos limites), depois de um certo número de experiências
mais ou menos dolorosas, tenderá a melhorar-se, para evitar as consequências de
seus atos responsáveis. É esse o objetivo preciso das experiências sucessivas
que asseguram a evolução. Se, em vez disso, o homem se julga determinado pela
Natureza ou por uma Divindade onipotente, entenderá sem dificuldade que seus
atos, pelos quais nenhuma responsabilidade lhe cabe, são inevitáveis; não se
considerando “livre para escolher”,
não
exercerá nesse sentido a sua Vontade
e se entregará sem relutância ao móvel mais forte que, geralmente, é o instinto
mais inferior e mais perigoso.
Tão patente é o perigo e tão formal, que
mesmo aqueles que, materialistas obstinados por não poderem admitir outra coisa
que não seja o “mecanismo universal” do inelutável Destino, cego e fatal, negaram, como Le Dantec, toda Vontade e, conseguintemente, toda Liberdade, recuaram aterrados ante as consequências
sociais de suas teorias.
Le
Dantec,
depois de haver combatido o espiritualismo e tentado convence-lo de estar em
erro, consagrou páginas inteiras à “necessidade do espiritualismo”, justamente
porque este, dotando o homem de um espírito consciente e volitivo, lhe atribui
a responsabilidade indispensável, fundamento de toda moral social ou
individual.
E isto me leva a recordar aqui, à guisa de
conclusão, o que sustentei há tempos numa conferência, em La Vie Morale:
O determinismo absoluto, outrora adotado
pelo dogmático absolutismo religioso, é rigorosamente o oposto da concepção
espiritualista e já não pode ser sustentado senão por cientistas positivos, em
os quais se fundiram, desaparecendo, os materialistas do século passado.
“Sem livre arbítrio, dizia ALLAN KARDEC, o
homem seria uma máquina.”
É natural que os que entendem que tudo no
universo é mecanismo e que o homem não passa de um órgão mecânico da imensa maquinaria
universal lhe neguem a faculdade de querer, a faculdade de escolher e de se
determinar: semelhante faculdade, introduzida na concepção mecanística do
universo, o destruiria imediatamente e esta é a única e lógica razão pela qual
os “mecanistas” são obrigados a negar, não só a vontade e a liberdade do homem,
mas tambem a vontade e a liberdade de Deus.
No espiritualismo, dá-se exatamente o contrário.
O espiritualismo é essencialmente caracterizado pela independência do Espírito
com relação à matéria (mundo corpóreo). Somente esta se acha submetida às leis
mecânicas e biológicas cuja pressão o Espírito apenas
sofre
nas representações materiais que lhe constituem os corpos carnais. Em sua essência,
o Espírito deve ser considerado livre, sob pena de não passar de uma modalidade
superior da matéria.
A introdução de certas teorias orientais
ocultas deu origem, no Ocidente, a pseudo espiritualismos, que não são mais do
que naturalismos, isto é, materialismos disfarçados. De sorte que, hoje, a
denominação de espiritualista se aplica, tanto a naturalistas que, de boa fé,
se creem espiritualistas, como a verdadeiros representantes do estrito
espiritualismo, cujo carácter essencial acabo de lembrar.
Eis porque a doutrina espírita é, talvez, a
única expressão ainda viva e vivaz da filosofia espiritualista teísta, que coloca,
de um lado, Deus e, do outro, a Criação e que, nesta, distingue nitidamente o
mundo espiritual do mundo corporal.
Ora, o determinismo (divino ou natural) é a
própria lei do mundo corpóreo, é a lei “mecanísticas” da matéria sob infinitas
modalidades. A essência do Espírito é a liberdade e unicamente por se achar
mergulhado na matéria é que, por ela e nela, o Espirito vê a sua liberdade
diminuída e constrangida pelo determinismo da Necessidade.
Mas, à medida que se eleva acima da
matéria, o Espírito escapa à Necessidade
e readquire a sua liberdade. Tende assim para a Redenção e volta à sua verdadeira pátria: o reino de Deus.
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