Os
que ignoram que estão mortos
por Amado Nervo (tradução)
Reformador
(FEB) Dezembro 1919
“Os mortos”, havia-me dito várias
vezes o meu amigo, um velhinho espirita, vindo de encontro ao que, de minha
parte, já havia encontrado várias vezes em minhas leituras – “os mortos, senhor
meu, ignoram que tenham morrido. Ignoram-no até certo tempo, até quando um espírito
caritativo os desperta, para se desvencilharem definitivamente das misérias
deste mundo."
Geralmente se creem afetados ainda da
enfermidade que lhes motivou a morte; lamentam-se, pedem remédio, permanecem
numa espécie de adormecimento geral, de bruma, do qual se vai desprendendo
pouco a pouco a divina crisálida da alma.
Os menos puros, os que morrem mais apegados
a terra, vagam em derredor de nós, presos de um desconcerto e de uma desorientação
supremamente angustiosa.
Sentem dores, fome, sede, exatamente
como si vivessem, pois que o amputado sente possuir e ainda lhe doer o membro
segregado.
Não falam, interpõem-se em nosso
caminho e desesperam ao presumirem que os vemos e e não lhes fazemos caso. Creem-se
então vítimas de um pesadelo e desejam despertar.
Porém, a impressão mais poderosa - como
também a mais próxima - é a de que eles acompanham, doentes, aquele que os
matou.
E, com efeito, uma tarde em que, por
curiosidade, assisti certa sessão espirita, pude comprová-lo.
O médium era falante (sabe você que há
médiuns auditivos, videntes, materializadores, etc.). As almas dos mortos se
servem da boca do médium para conversar com os presentes, ou, por outra, falam
por “boca de ganso” (dizer o que
outros sugerem).
Deram início à sessão sem apagarem
as luzes e a médium caiu em transe.
Momentos depois exclamava:
- Estou ferido; socorram-me! - e
apertava com ambas as mãos o flanco direito.
- Quem é você? Interrogou o que presidia
a sessão.
“Sou Valente Martinez, e me feriram aqui
na Praça de Carmen; feriram-me a traição. Estou tombado; venham levantar-me”!
E o semblante da médium demonstram
sinais de dor e de agonia.
Eu e muitos dos ali presentes experimentávamos
grande surpresa porque os periódicos da última semana haviam noticiado e comentado
o assassinato de Valente Martinez, cometido traiçoeiramente por um celoso (invejoso). Assim,
pois, a sessão se tornava interessante.
-Você está equivocado - insinuou
então o presidente da sessão - e presume estar ferido e abandonado na rua;
porém, na realidade, você está morto!
- Morto, eu? Exclamou surpreendida a
médium, digo-lhe que estou apenas ferido!
E continuava apertando o flanco direito.
-Está você morto e bem morto. Morreu
em consequência de uma punhalada, na sexta-feira última, no hospital de São Lucas...
A médium se impacientava: - É uma
falta absoluta de caridade deixar-me atirado à rua como um cão! Como um cão sim,
abandonado em meio da rua!
E retorcia-se em seu assento.
-De sorte que, continuou o presidente
- você insiste em que está vivo?
-Sim, e ferido! Ajudem-me, quero
levantar-me. Não sejam maus!
- Pois vou provar-lhe que está morto.
Qual o seu sexo?' Homem ou mulher?
-Eis uma pergunta tola... Sou homem!
-Você está seguro?
A médium fez um movimento de contrariedade.
- Que? Se estou seguro? Que pergunta!
-Bem, pois toque no seu peito e no rosto.
A médium levou a mão direita ao
queixo e uma expressão indecisa de pasmo anuviou lhe o rosto. Valente Martinez (que,
segundo os retratos estampados nos periódicos, era barbado) encontrava-se agora
imberbe...
A sua mão, trêmula, pousou em seguida
no lábio superior à procura do farto bigode, mas passou pela decepção de não
encontra-lo. Depois, mais trêmula ainda, desceu ao peito e, no sentir a carne turgida
dos seios, a médium deixou escapar um grito agudo, horrível, enquanto frios
suores lhe molhavam a fronte, lívida de tortura, em que se lia o supremo espanto
da convicção!
Seguia-se então largo e imperturbável
silêncio, durante o qual a médium, imóvel, murmurava não sei o quê, com os lábios convulsos.
Por fim, o presidente lhe disse:
- Veja bem como está bem morto!
Tirei-o da ilusão, para que não penses
mais em coisas da terra e procure, doravante, elevar seu espírito a Deus.
-Tem razão, murmurou penosamente a
médium.
Depois, após pequena pausa,
suspirou:
Graças!
E não proferiu mais palavra até sair
do transe.
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