Ernesto Bozzano
A
Direção
Reformador
(FEB) Novembro 1943
Dolorosíssima notícia foi para a família
espírita, a do falecimento de Ernesto Bozzano.
Custamos a dar-lhe crédito, visto que estavam
cortadas as nossas comunicações com o Velho Mundo. Depois que estalou a guerra,
foram diminuindo a pouco e pouco as correspondências com os nossos amigos de
além-mar, principalmente com a França em mão dos alemães, e com a Itália, até
então em guerra com a nossa pátria.
Profundo foi o abalo em nossos corações, aliás
já tão experimentados ultimamente, desde que a catástrofe hedionda da guerra se
abateu sobre o mundo inteiro.
Bozzano, só por só, valia uma legião de
pugnadores. Foi o maior polemista no campo do psiquismo. Defensor destemeroso e
intemerato da doutrina espiritista, nunca deixou de pé um único argumento
contra essa doutrina.
Esgrimiu, cortesmente, com todos os grandes
adversários do Espiritismo. Entre as suas réplicas célebres contam-se as que
deu ao professor Morselli, atualmente traduzida pela Federação Espirita
Brasileira, sob- o título - A propósito da obra "Psicologia e Espiritismo",
do professor Henrique MorseIli; a que fez por motivo da campanha promovida pelo
Sr. René Sudre, e que se acha também traduzida pela Federação sob o título – “A propósito da Introdução à Metapsíquica
Humana"; a elegante e incisiva, dada ao seu eminente amigo Charles
Richet, vulto assás conhecido de todos os que se dedicam à meta psíquica.
Muitas de suas monografias e grande número de artigos, publicados na Revue Spirite,
na Revue Metapsychique, na “Luce e Ombro” e, posteriormente, na Ricerca Psichica, eram artigos de
polêmica, que tinham por objetivo demonstrar o erro flagrante em que incidiam
os propugnadores de várias teorias, mais ou menos científicas, e que procuravam
com elas afugentar o espantalho da comunicabilidade dos mortos.
Bozzano não os poupava. A sua linguagem era
sempre elevada; nunca descaiu da linha impecável de um cavalheiro; os seus
argumentos, porém, se tornavam arrasadores. Ninguém lhe resistia; raríssimos
tinham a coragem de voltar à peleja para os afrontar. Ele foi a maior clava
lançada contra o sofisma os artifícios, as construções
engenhosas, o jogo de palavras, a má fé, o conservantismo.
Por vezes, sua pena era enérgica; entretanto,
nunca foi contundente. Pelejou contra os maiores adversários do Espiritismo,
sem que descesse jamais do terreno sereno, honesto, da argumentação. Enfrentou
o mais temível contraditor, o Dr. Eugene Osty, diretor do Instituto
Metapsíquico Internacional, médico de inestimável valor, com grande poder de lógica,
mas que não perdia a oportunidade de mostrar que os fenômenos supranormais
tinham outras causas, que não aquelas apresentadas pelos espiritistas. E
navegara este, desassombrado, durante vários anos nesse oceano tão do gosto dos
antagonistas das "almas do outro mundo", quando Bozzano lhe surgiu
pela frente e deixou patente a inanidade do seu raciocínio e do seu esforço anti-espírita.
Foi um gigante nas letras psíquicas. Possuía
todos os nobres requisitos de um polemista de escol inteligência, conhecimento,
lógica, linguagem, polidez.
O professor Bragadini desejou um dia saber
como Bozzano, filósofo materialista que era, se havia interessado pelas
ciências psíquicas. E o mestre respondeu-lhe de bom grado, visto que, dizia ele,
"as conversões filosóficas contém sempre ensinos preciosos". E dizia bem, - conversões filosóficas,
- porque, no seu caso, "tratava-se
de uma conversão, em toda a acepção do termo".
Nascido em Genova, em 1862, teve uma vida vazia
de acontecimentos sensacionais. Estudava sempre. Já na adolescência, sentia que
os ramos do saber humano tinham sobre seu espírito fascinação irresistível.
Desde cedo, procurou penetrar no mistério do ser humano, e isto se tornou para ele
uma paixão absorvente. Aos 15 anos, sua razão rebelava-se contra toda à crença
proveniente de um ato de fé. Procurou penetrar no pensamento dos grandes
filósofos como Platão, Hegel, Descartes, Lotze, Rosmini, Giobertl.
Tomava-o o abismo da dúvida, e os postulados
da metafísica lhe pareciam outros tantos fatos de fé; voltou-se para a
filosofia científica e releu Buchner, Moleschott, Vogt, Feuerbach, Haeckel, Conte, Taine, Guyau, Le Dantec, Morselli,
- com quem viria contender mais tarde, - Sergi, Ardigo, Herbert Spencer e
outros.
Este último empolgou-o; pareceu-lhe que o positivismo
mecanicista de Spencer continha toda a verdade que ele sofregamente buscava. Tornou-se
um positivista, e discutia com os que ousavam contestar os postulados mecanicistas.
Parecia-lhe impossível houvesse pessoas de senso, medianamente cultivadas,
capazes de crer na
sobrevivência da alma, E não só assim pensava, como o dizia e escrevia.
Esse passado filosófico, em que mergulhou durante
10 anos - diz Bozzano - tornou-o indulgente e tolerante para uma classe
especial de adversários que supõem poder refutar as conclusões rigorosamente
experimentais extraídas dos fatos estudados pelos espiritistas de hoje, lhes
opondo os preceitos da biologia, da fisiologia,
da psicologia e a sua pretendida eficácia demonstrativa, na qual também ele
acreditara, e o acreditaria ainda, "se no horizonte do saber humano não
tivesse surgido a aurora de uma ciência nova, que dominava as demais, - a
metapsíquica, denominada pelo prof. Richet - a "Rainha das Ciências" mas
que a posteridade chamará - a "Ciência da Alma".
Ribot lhe enviou certa vez uns números dos Anais das Ciências Psíquicas; os
primeiros fascículos produziram-lhe desastrosa impressão; mais tarde vira um
artigo do prof. Rosembach, que se revoltava contra a intrusão, na ciência, de
um novo misticismo, e explicava êle os novos fatos pela hipótese alucinatória,
combinada com as coincidências
fortuitas, as imaginações exaltadas e assim por diante.
Tão insustentável lhe pareceu essa refutação,
que produziu no filósofo o efeito contrário a que se propunha o refutador.
Começou, então, a interessar-se pelo psiquismo,
"e, sem disso ter consciência,
estava na estrada de Damasco."
O volume de Aksakoff foi a primeira obra a, abalar
profundamente a solidez da sua fé positivista; seguiram-se outras; foi uma
época penosa de perturbação moral, "porque
ele assistia, desencorajado, ao desabamento dum sistema de convicções
filosóficas adquiridas à custa de longas meditações, e às quais a adaptação
psicológica e ética do seu espírito já se tinha afeito."
Procurou remontar às origens do movimento
espírita. Pediu as principais obras, nos grandes centros. Catalogava, então, o
conteúdo das obras por meio de um repertório alfabético com a intenção de se
servir desses índices para a análise sintética comparada dos fatos e dos
quadros sintéticos, os quais deveriam conduzi-lo à convergência das provas, -
critério superior de qualquer inquérito científico.
E foi nessa base que ele assentou suas novas
convicções espiritualistas.
Estabelecida uma sólida cultura no assunto, entregou-se
às pesquisas experimentais. Fundou Com Venzano, Peretti e Arnaldo Vassalo, em Genova,
a Sociedade de Estudos Psíquicos, mais tarde Centro Científico Minerva. Eram 70
os
membros e não foi difícil descobrir que, entre eles, havia poderosos médiuns.
Vieram depois as experiências com Eusapia Paladino, onde foram obtidos, em onze
meses, "o que a médium pode oferecer de melhor em sua vida". O resultado
desses trabalhos expô-los Bozzano na sua obra A Hipótese espírita e as
teorias científicas.
Chegou Bozzano, finalmente e firmemente, à
seguinte conclusão:
"Todo aquele que, em lugar de perder-se em discussões
ociosas, empreender pesquisas sistemáticas e nelas perseverar, acabará por se
convencer que os fenômenos supranormais constituem um complexo de provas
animistas e espiritistas, que todas convergem para uma demonstração
rigorosamente científica da existência e da sobrevivência da alma humana."
Tal é, em resumo, a resposta de Bozzano ao seu
inquiridor, espécie de autobiografia, que foi publicada em Milão, no Ali del Pensiero, e em Paris, na Revue Spirite, em 1939.
*
O poder mágico da argumentação do pranteado
filósofo deriva precisamente dessa "convergência de provas",
verdadeira catapulta, contra a qual faziam risível figura as fragilíssimas razões
que costumam apresentar os opositores. Bozzano, durante mais de 40 anos,
acumulara os fitos do psiquismo e neles é que assentava sua
vigorosa construção. Era sulla base dei
fatti, como se exprimia, que repousava a sua crença, e daquela base
inexpugnável não havia forças capazes de o desalojarem"
Durante sua vida, acumulou e classificou as
provas que constituem hoje o alicerce de sua obra monumental. Ele deixou para
mais de 70 monografias e cada uma delas constitui demonstração irrecusável da
sobrevivência. Todas reunidas formam um feixe irresistível, uma documentação
cerrada, um desses trabalhos imperecíveis, que atravessam os séculos, lançando
o mesmo brilho que as estrelas fulgurantes lançam através do espaço, muitos milênios
depois de sua morte.
Poucos lutadores tiveram o fôlego de Bozano,
sua capacidade de trabalho, seu poder de indução e dedução, sua paciência de
pesquisador, sua dedicação ao estudo, seu amor à boa causa, sua fé de apóstolo.
Queremos tratar, ainda, de um feitio especial
de seu espírito: - o desinteresse, o desprendimento dos bens materiais. Poderia
ganhar uma fortuna com seus escritos.
Era conhecido em todas as partes do mundo; todos
os espíritas o estimavam e admiravam; os adversários reverenciavam-no; os inimigos
da doutrina temiam-no. Teria, se quisesse, auferido grandes lucros. Mas tudo ele
dava. Concedia direitos de tradução e impressão do inesgotável documentário que
eram os seus livros sem nada pedir em troca. Era a cessão gratuita, era o
desprendimento evangélico, era o altruísmo que leva as almas ao Senhor. Seu trabalho
mental, seu esforço intelectual, o labor ininterrupto de vários decênios
tornou-se patrimônio da humanidade.
*
Seu amor aos fatos, seu apego às provas, seu
espírito científico, sua atividade no terreno exaustivo da documentação,
levaram muitos a supor que ele era pouco dado à feição religiosa do
Espiritismo, ou a ela nenhuma simpatia votava.
Nada menos certo. Ele apenas se opunha a que o
Espiritismo se confinasse numa única religião, ou dela adotasse os princípios
formalísticos. O que ele achava e até foi motivo de uma tese, é que era tal a
amplitude do Espiritismo, que abrangia todas as religiões, sendo como um imenso
vestíbulo por onde podiam entrar os grandes princípios e as leis imutáveis do
Criador, qualquer que fosse a doutrina religiosa donde emanassem.
*
Havia um gênero de oponentes, para os quais
Bozzano tinha muita complacência e não discutia: eram os homens de fé. Estes se
assemelhavam a uns tantos grupos, em que ele classificava os escritores de
assuntos psíquicos. E
assim
referia:
"O menos esclarecido dos grupos em questão é, indubitavelmente,
o dos negadores Irredutíveis, que não se detêm nunca na ideia de que possam estar
errados. Assiste-se, então, a um fenômeno curioso e é que, quando os defensores
da hipótese espírita os refutam, baseando-se nos fatos, eles nada respondem,
porque nada podem responder, mas continuam, imperturbáveis, a sustentar a
doutrina materialista, tal como se tivessem respondido ao contraditor e
pulverizado-o." (Revue Spirite, 1929).
É realmente fato comum e a que estamos habituados
por uma convivência continua, diuturna.
Finalizando este artigo, conviria lembrar um
rápido esboço da obra de Bozzano, e umas rápidas vistas sobre o autor, feita
por IsmaeI Gomes Braga na Luz del Porvenir, em Maio de 1934.
Dizia esse nosso confrade e amigo:
"Todas as objeções, por melhor formuladas, todos os sofismas
engenhosos, todo o fanatismo cego, esmaecem inteiramente diante dos livros de
Bozzano, diante dos fatos inteligentemente acumulados e expostos com paciente
habilidade pelo velho Mestre.
Autêntico homem de ciência, incansável compilador e classificador
de fatos, nada parece indigno de estudo meticuloso, de análise atenta ao espírito
perspicaz do campeão da tese - O animismo
prova o Espiritismo.
Vemo-Io reunir fatos tomados aos povos primitivos, aos animais, às
coisas mais desconcertantes: psicometria, licantropia, precognição, obsessão e
assombração, pensamento e vontade, como forças modeladoras e organizadoras da
matéria, profecias.
Simultaneamente, refuta, de maneiro definitiva, as obras dos
inimigos do Espiritismo, em todos os domínios do pensamento, e sempre com admirável
generosidade. Sabe reconhecer o mérito dos adversários, característica dos
grandes espíritos que entrevem horizontes Insuspeitos do homem vulgar.
Vemo-lo reconhecer, ainda, a probidade do negativista obstinado
René Sudre, admirar a profundeza de Morselli, reconhecer a erudição de Alfano, encantar-se
com a filosofia de Spencer. Ele vê em tudo uma parte do belo, como acontece aos
que se elevam acima da mediocridade.
A Inteligência prodigiosa de que é dotado permite-lhe ter em mãos
a mais espantosa classificação de fatos produzidos no mundo inteiro, durante mais
de 80 anos, e poder com eles responder a todos os ataques contra o Espiritismo,
venham de onde vier."
Assim se referia ao Mestre, Ismael Braga, quando
ainda vivia ele no seu castelo da Itália, nesse estudo que nunca abandonou e
que, certamente não abandonará, apesar de transpostos os umbrais que nos conduzem
à outra vida.
- Deixa em língua portuguesa, além das monografias
citadas, Os Fenômenos de Bilocação, A Crise da Morte, Xenoglossia, Os Fenômenos Psíquicos
no momento da morte, todos traduzidos pela Federação, além de outros
trabalhos traduzidos por diversos confrades.
A morte de Bozzano causou sincera tristeza
entre os espíritas brasileiros, que não cansavam de admirá-lo como trabalhador,
de segui-lo como mestre, de estimá-lo como confrade.
Conforta-nos a certeza de que ele continuará
no Espaço a gloriosa missão que tão bem manteve na Terra, mas o seu
desaparecimento produz em nossos olhos uma espécie de escuridão, como aquela
que nos é deixada depois da visão deslumbrante de um meteoro.
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