O
Dois de Novembro
por Almerindo
Martins de Castro
Reformador
(FEB) Julho 1950
Caminhando por entre os paradoxos da
vida social, a criaturas vão, a cada ano, em dois de Novembro, aos cemitérios,
visitar os mortos, deslembrados de que, naquele chão, jazem apenas os mesmos
rígidos cadáveres para ali conduzidos num esquife, e ali deixados para a
incoercível transformação, na química silente da Terra, que destrói a carne e
faz das amadas, formosas criaturas uma caveira, tétrica em seu rir sinistro,
apavorante, muda porque sem boca, com os dentes sem a vestimenta dos lábios,
através dos quais fluíam outrora expressões de amor e de carinho.
Olhos e pensamentos voltados para o
chão, onde inutilmente buscam ressonâncias com os túmulos, que não permitem
rever os corpos já desfeitos pela desagregação da matéria, as criaturas não se
voltam para o Alto, que é a pátria dos verdadeiros vivos - em Espírito, e não
podem, por isso, suspeitar sequer o maior paradoxo expresso nessa pretensa
“comemoração dos mortos”. Às necrópoles, em verdade, vão os mortos, Espíritos
amortalhados nos sepulcros do corpo, em visita aos que reviveram para a
imortalidade no Espaço, onde se entrecruzilham as estrelas da vida eterna,
palmilhadas nos vários rumos do aperfeiçoamento redentor.
Se pudessem desvendar os
esplendores da vida espiritual, perceberiam a vibração daqueles chamados -
mortos, que estão cumprindo, nos cimos siderais, as leis eternas que regem os
mundos. Na materialidade das flores espargidas e nas velas acesas em torno das
sepulturas, os visitantes obedecem a esse automatismo a que, cada vez mais, se
reduzem as coisas do Espírito, nas arbitrárias criações dos credos e ritos
meramente humanos.
O verdadeiro cristão não necessita
de dia certo, nem de recinto funerário para orar pelos seus entes queridos:
ante Deus e em favor dos seres, o Espírito sobe, em espiral de preces, sem
complementos materiais.
Os monumentos marmóreos e as coroas
de flores, vidro ou porcelana são apenas homenagens do egoísmo vaidoso e
perdulário, oferecidas aos olhares dos que não conhecem o recôndito ritual da
alma que deve ser praticado sem exterioridades, nem obediências a
convencionalismos e preconceitos.
O vero espiritualista não deve
desfazer em prantos e lamentos a mágoa
dessa incoercível separação que, sendo - morte, é condição da - vida. A memória
é um altar no qual se entronizam todas as lembranças meigas e suaves, puras e
castas. Nesse deve ser acesa a pira da saudade, que é o incenso da alma
sublimada, pela prece, até junto dos mensageiros de Deus. Esta deve ser a
“comemoração dos mortos” para os espíritas, porque feita - do Espírito para
Espíritos, e não a do convencionarismo adotado pelo comum das criaturas, todo
ele alicerçado em exterioridades mais ou menos mercantilizadas.
O “dia de finados” não tem origem
em ensinamentos dos Espíritos. Derivou da festa católica - romana de 1º de
Novembro - “dia de todos os santos”.
Quando da destruição dos templos
pagãos, em Roma, um que entre todos foi poupado, porque constituía obra prima
de arquitetura e riqueza. Construído por Marco Agripa, denominava-se - Panteão
e nele, a 1º de Novembro, era celebrada, pelos pagãos, com excessos, a “festa
de todos os Deuses”. O papa Bonifácio IV obteve-o, por doação do imperador
Focas e fê-lo purificar, recolhendo a ele os tesouros e despojos mortais das
catacumbas dos cristãos, e consagrou-o a Santa Maria dos Mártires. Nesse templo
(que estivera fechado durante dois séculos), Gregório IV, em 835, instituiu (em
antítese da “festa de todos os deuses”) a “festa de todos os santos” em
homenagem aos santos que não tinham culto em dia destacado no calendário,
universalizada depois para todo o orbe católico. Mas, para que não ficassem
esquecidos ante Deus os fiéis da Igreja e os pecadores, foi estabelecido que no
dia seguinte, 2 de Novembro, se fizessem no templo orações em intenção desses
mortos.
Só em 998, dez séculos depois do
Cristo, o Abade da Ordem dos Beneditinos, em Cluny, instituiu, em todos os
mosteiros da Ordem, na França, a “comemoração dos mortos”, o “dia dos finados”,
nesse 2 de novembro, culto que a Santa Sé aplaudiu e oficializou para todo o
ocidente. Assim foi o mundo profano levado a cultuar os seus mortos (outrora
enterrados nas Igrejas e em “campo santo”
num dia determinado, quiçá na ingênua, ilusória esperança de que os
Espíritos desencarnados fruiriam venturas celestiais, recebendo, nas covas das
necrópoles, as flores e as luzes das velas, que, não raro, exalam hipocrisia e
iluminam a treva das maldades e rancores de quem as acende.
O tempo decerto conseguirá esculpir
nos corações o ensinamento dos mestres da espiritualidade, fazendo com que as
criaturas regressem à sincera e modesta maneira de encarar e reverenciar o
nascimento e o decesso dos seres na face da Terra, práticas desvirtuadas pelas
deturpações dos interessados e dos ignorantes. Os antigos tinham intuição ou
ensinamentos bem mais aproximados do verdadeiro modo de interpretar o sentido
da vida e da morte dos seres humanos.
Heródoto (o denominado - Pai da
História) diz que, na Trácia remota (território cujas fronteiras estão
hodiernamente diluídas numa das províncias da Turquia), o nascimento de uma
criança em uma família em torno do berço para, por entre lágrimas e tristezas,
lamentar as provações a que viera o recém-nascido; enquanto que o falecimento
de um ente querido era saudado jubilosamente, na antevisão de que o Espírito
liberto iria fruir as venturas e galardões do Além.
O Espiritismo contemporâneo veio
encontrar o automatismo dos costumes e estipulações seitistas,
consuetudinárias, que obscurecem de algum modo o lídimo sentido espiritual da
vida e da morte; mas, suavemente, sem confundir a sinceridade dos que ainda não
evoluíram para a integral espiritualidade, irá encaminhando as Almas para a
verdadeira comunhão com os chamados mortos.
Não está nos cemitérios o mundo dos Espíritos.
Ali apenas podem permanecer transitoriamente os cegos desesperados, cujo
passamento não os pode desligar da matéria em decomposição. Fora dali, no
indefinível templo de nosso coração é onde devemos orar pela paz e pelo
esclarecimento dos Espíritos liberados do corpo. Mas, principalmente, pelos
sofredores.
Os Espíritos de Luz, aqueles que,
misericordiosamente ajudam os grilhetas da Terra, descem pela escada espiritual
das nossas preces, dos nossos pensamentos de abnegada solidariedade com os
chagados da alma, que gemem nos ergástulos da dor e do remorso, com os surdos e
cegos, que ainda não ouviram, nem lobrigaram as harmonias iluminadas da Verdade
que as “vozes dos silêncio” entoam para a glória de Deus e bênção dos
arrependidos. Em cada dia da existência, nas horas de recolhimento, oremos
pelos tristes, pelos abandonados que, na desolada noite de sua provação, não
conheceram amor, caridade, consolo, bálsamo para as suas dores de alma.
Deixemos os cemitérios onde se dissociam as
moléculas da carcaça humana e pensemos no Mundo Alto, de onde tudo vem para a
Terra e aonde sobem, de regresso, as refrações de todos os diferentes mundos
dispersos no Infinito.
Espiritualizemos os estágios da
existência terrestre, mantendo o recôndito do nosso ser em ressonância com o
mundo espiritual de amanhã, vivendo esta harmonia com os imperativos naturais
da matéria, conservando, porém, o Espírito alertado para a devida obediência às
leis que o regem, nas trajetórias das vidas sucessivas.
Ante a morte do corpo, não nos
impressionemos com o fogo-fátuo, que é a luz da matéria e que não pode ficar
dentro da cova; busquemos o santelmo, a luz do Alto, que se acende no cimo dos
montes, na vastidão dos mares, com as fosforescência que tem contato nas
rutilâncias das claridades celestiais.
Não façamos treva onde a vida se
ilumina; não choremos ante o corpo inerte, porque o Espírito se está movendo no
júbilo da libertação. Os espíritas não podem esquecer o simbólico ensinamento
do Mestre: “... deixai que os mortos enterrem os seus mortos.” (Mt 8:22).
A comemoração que, rotineiramente
se celebra, a dois de novembro, deve ser substituída pela permanente
comemoração dos - vivos verdadeiros - porque a noite da morte do corpo é a
alvorada esplêndida do Espírito, despido da negra libré do cárcere, imergindo
nas suaves, eternas claridades da aurora redentora...
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