Os mortos
não sabem nada?
Um protestante, amigo nosso, põe-nos
diante dos olhos o seguinte trecho bíblico:
"Porque os que estão vivos sabem que hão de morrer, porém os mortos não
sabem mais nada, nem dali por diante êles têm alguma recompensa; porque a sua
memória ficou entregue ao esquecimento." (Ecl., 9:5).
O que ai afirma Salomão não resiste
sequer a uma análise superficial. Senão, vejamos. Que
é que lhe resta então ao Espírito? Se não sabe mais nada, nem tem alguma
recompensa, porque a sua memória ficou entregue ao esquecimento, que é,
portanto, que lhe acontecerá? Ressurgirá? Não pode ser, pois não terá alguma
recompensa, e os protestantes creem que a ressurreição será a sua recompensa.
Ora, se não ressurgir, como, no entender ainda dos protestantes, vai o justo
para o "céu" e o ímpio para as "penas eternas"? Bem razão
tinha o eminente filólogo e ilustre protestante Prof. Otoniel Mota quando disse
que "evitava tratar de coisas
secundárias e obscuras, que a Bíblia deixa na penumbra e que podem escandalizar
mais do que edificar". O versículo
acima é um dos muitos que há na Bíblia, capazes de induzir a erro os
crentes aferrados à sua infalibilidade.
Nosso amigo acha que tal passagem é
uma prova de que os "mortos" não nos podem confortar em nada, por
isso que o espiritista erra quando pensa que recebe uma mensagem "do outro
mundo".
Ao contrário do absurdo, acima
exposto, que consiste em acreditar fique a alma inconsciente após a morte, sem
alcançar recompensa, sem receber o prêmio ou o castigo dos atos bons ou maus
aqui praticados, ensina-nos o Espiritismo que o Espírito, quando se desliga do
corpo, pode, na verdade, achar-se confuso, perturbado, a principio, conforme o
seu desenvolvimento ou a causa da morte. Terá, porém, plena consciência do que
foi na Terra. Receberá
a paga ou a condenação do bem ou do mal que praticou. Sentir-se-á num
verdadeiro paraíso se a sua consciência estiver tranquila pela isenção de
culpa. Julgar-se-á num verdadeiro inferno se o remorso lhe morder e queimar a
mesma consciência pelos crimes e erros cometidos.
A lei de Deus é, apesar de dogmas em
oposição, progredir sempre. Ninguém se perderá, pois "Deus quer que todos os homens se salvem, e que cheguem a ter
conhecimento da verdade." (Paulo, Tim. I. 2:4). E quando Deus quer
quem poderá não querer?
"A Deus tudo é possível." (Mat ., 19: 26). Ao Deus Amor,
revelado pelo Cristo em todos os seus ensinos e parábolas, dado a ver na
própria vida do humilde Nazareno, ao Deus Caridade não é impossível salvar a
todos. Aí temos a doutrina reencarnacionista, pela qual compreendemos
perfeitamente o extremadíssimo, o infinito amor de Deus às suas criaturas, que
terão, de acordo com o próprio merecimento, de acordo com o uso que fizerem dos
seus talentos, tempo suficiente para, nas pegadas do Mestre, atingirem o
desenvolvimento espiritual, a salvação eterna. Não será a morte do Cristo que nos salvará, mas a sua vida, isto é, todos nos
salvaremos seguindo passo a passo a sua doutrina de humildade, de tolerância,
de renúncia, de fé, de amor e de caridade.
O fato de renascer de novo para
entrar no reino de Deus é a maior e a mais sublime bênção do Criador à
criatura, pois lhe permite pagar até "o último centíl", sob as vistas
daquele Pastor bendito capaz de deixar as 99 ovelhas no monte para ir buscar
aqueloutra que se extraviou.
As verdades divinas são a nós
reveladas de conformidade com a nossa condição, o nosso adiantamento moral, o
nosso grau de evolução espiritual. O Espírito Santo, a saber, os Espíritos Superiores,
mensageiros abnegados de Jesus, encarregados de trazer aos homens, de quando em
quando, a luz que não raro lhes falta para encaminharem a vida na prática do
bem, o Espírito Santo não cessa através dos tempos de dizer-nos aquelas muitas
coisas que o Cristo tinha ainda que nos dizer, mas nós não as podíamos
suportar. E assim ainda será, até que Jesus tenha junto de si todas as
"outras ovelhas", até que haja um só rebanho e um só pastor, pois tal
é a Sua vontade e a vontade do Pai.
O que o Espiritismo pede aos seus
crentes e aos seus descrentes é que o estudem e examinem, estudando e
examinando tudo e escolhendo o que for bom, no preceito de Paulo. E ainda com o
grande apóstolo dos gentios, na sua advertência aos romanos (12:1), ele nos
roga - roga-vos, a todos, o Espírito de Verdade, "pela misericórdia de Deus, que ofereçais os vossos corpos como uma hóstia
viva, santa, agradável a Deus, que é o culto racional que lhe deveis."
O Espiritismo não admite a fé cega.
Não dogmatiza, porque sabe que infalível só Deus o é. Aceita a Bíblia no que
ela tem de justo e de bom, sem tomar tudo ao pé da letra, "pois a letra mata e o espírito é que
vivifica".
Julga o nosso amigo que aquele
trechinho do Eclesiastes é um golpe certeiro no Espiritismo. Mas engana-se
redondamente. O Livro dos livros não é infalível. Não acredita? Pois, para
melhor evidenciá-lo com armas que não são nossas, damos a palavra a um grande e
culto teólogo, o Rev. Charles Reynalds
Brown, na sua obra Os Pontos
Principais da Crença Cristã, da qual o nosso ilustre confrade Dr. Romeu do Amaral Camargo cita, em
seu esplêndido livro O Protestantismo e
o Espiritismo à luz do Evangelho, às páginas 101 e 102, o seguinte trecho:
"Pode haver valor, verdade, autoridade, grande; esplendida e útil, sem
infalibilidade (grifos do Dr. Romeu). Os católicos entendem que, se a
Igreja não for infalível, não pode ensinar ao povo. Muitos protestantes rezam
pela mesma cartilha, entendendo que, se a Bíblia não for infalível, não pode
ensinar ao povo. E ambos estão errados: só Deus é infalível, e nem a Igreja nem
a Bíblia é Deus. Mas tanto a Igreja como a Bíblia podem ensinar com autoridade
e proveito se as conclusões morais tiradas da revelação feita por Deus, através
da experiência religiosa de um povo escolhido, forem válidas. Dizem que é
perigoso permitir que os homens façam estas discriminações nas Escrituras
decidindo que esta passagem é a verdade absoluta de
Deus, e que uma outra é devida à circunscrição puramente humana do escritor.
Mas os homens nunca estiveram livres deste perigo. Homens como nós, que só
tinham a direção divina que a todos é facultada, têm decidido muitas questões
vitais. Por exemplo, tiveram de escolher os livros que formam a Bíblia e
rejeitar outros. Levantaram-se graves questões. A Epístola de Barnabé foi tida
por Clemente de Alexandria e por Orígenes, como inspirada. Barnabé é mencionado
com Paulo nos Atos como apóstolo, e é descrito como "um homem bom e cheio
do Espírito Santo". O manuscrito mais antigo que temos da Bíblia, o
Sinaiticus, descoberto por Tischendorf, em 1859, num convento perto do Monte
Sinai, contém a epístola de Barnabé. Mas, mesmo assim, por motivos que julgaram
suficientes, os homens rejeitaram esta epístola, enquanto que outros livros, de
menos inspiração, foram retidos no cânon.
"A maior defesa da autoridade
da Biblia encontra-se na experiência humana. Os homens a têm em grande conta
por causa da obra que tem feito nos campos da vida cristã. Não é de importância
que a Bíblia seja verbalmente ínspirada nem tecnicamente infalível; mas é de
importância que os homens descubram nela e por meio dela o Pai Eterno.
"Aponta-nos (a Bíblia) os
caminhos falsos cujo fim é a morte, mas fala com uma autoridade superior à infalibilidade teológica. Está cheia do
Espírito Santo que é o espírito de verdade, e seu poder não depende das teorias
de inspiração que os homens inventam, mas de sua própria vida imortal, sua
sublime elevação, sua capacidade de trazer homens a Deus e à paz. A Bíblia
contém a palavra de Deus, mas não se pode dizer que todas as suas palavras e
sílabas são a palavra de Deus."
E, para finalizar, mais este (op.
cit., página 118):
"A comunicação da verdade aos
homens não cessou com o último livro da Bíblia.
"A revelação não é só uma
possibilidade eterna, é uma necessidade eterna: não se limita a raça alguma, a
tempo algum, a condições algumas, nem a fase alguma da fé. A promessa não foi
feita a nenhum século nem a qualquer grupo de homens, não foi de uma revelação
instantânea, porém, de um desenvolvimento gradual, progressivo: - "Ele vos
guiará para toda a verdade". Temos grandes problemas que os livros ainda
não resolveram. Para muitos
entre nós, a Igreja não é mais do que um sacerdote, do que um mestre, do que um
dominador. Para que a Igreja seja uma força neste século, claro é que tem de
ser diferente e maior do que agora o é. Não confiamos nos planos sábios até
aqui descobertos, mas na direção do Espírito prometido à Igreja que se dedica à
vontade de Deus. O dia de Pentecostes não foi uma maravilha isolada, que se
operou no início de uma nova dispensação para atrair a atenção. Foi uma amostra
do modo pelo qual as “forças do mundo
invisível" podem ser "invocadas"
para ajudar as nossas próprias forças
morais no estabelecimento do reino de Deus."
Medite sobre isso o nosso amigo, sem
receio de anátemas, atento tão só à voz da sua própria consciência e da sua
própria razão. E há de ver então que a letra mata...
Lavras - Minas. R. C.
Reformador Abril 1946
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