...
Uma estrela que se apaga ...
por José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador
(FEB) Setembro 1947
Naquela tarde morna, quando ia em meio o
crepúsculo, a prece do muezim (aquele
que do alto dos minaretes conclama os muçulmanos à oração) Habhallad, com o coro dos crentes, era levada
pelos ventos através das calcinadas terras da Arábia... Estranho encantamento
provinha de suas palavras. Lá em baixo, na praça estreita e mal calçada, os
fiéis, contritos, a face lavada por sentidas lágrimas, prosternavam-se diante
da mesquita e erguiam os braços ao céu, tartamudeando os salmos.
O Sol agonizava ao longe, lentamente, como
que buscando ocultar-se atrás dos inumeráveis lençóis de areia do deserto
imenso. Seus últimos reflexos se perdiam no horizonte longínquo, pintalgando o
firmamento de rubros e violáceos tons. Os instantes finais da prece foram
comovedores, levando aos crentes ali reunidos as puras e fortes emoções daquela
hora inolvidável.
O muezim também chorava ... Ao render
graças ao Todo Poderoso Alá (*) sentira-se transfigurado, presa de místicos
arroubos. Sua voz se dulcificara, como se nela repercutissem sonoridades divinas.
O muezim também chorava ...
Dentre os fiéis, um havia, o jovem
Afhir-al-Baghid, cujo rosto triste denotava a preocupação que íntimos problemas
alimentavam. Erguendo-se, Afhir--al-Baghid enxugou os olhos avermelhados pelo
pranto, saudou Alá e Maomé, e encaminhou-se para o minarete, onde o muezim se
aprestava para recolher. Ao avistá-Io, Afhir arrojou-se ao chão, de joelhos, e,
reverente, deprecou-lhe pronta ajuda na crise espiritual em que se debatia. O
sacerdote ouviu em silêncio sua história. Afhir-al-Baghid esvaziou o coração
dolorido, depositando suas mágoas aos pés do generoso servo do Profeta. Em seu
olhar refletia-se a ansiedade da alma aflita. Que lhe diria
Habhallad
? Que remédio lhe indicaria para a inquietude que o consumia?
Por fim, o muezim falou, o rosto esquálido
espelhando singulares fulgores:
“Filho: A bondade de Alá é maior que a sua
sabedoria, mas a sua sabedoria é muitas vezes maior que os grandes desertos do
leste... Toda a sua glória é cantada na Cidade Santa, a Meca dos crentes, terra
eleita do Profeta... De Riad a Adém, de Adém a Hofuf, os fiéis celebram a
glória eterna de Alá. Ouça, filho: Só Alá é amigo. Abre teu coração a ele, mas nunca te esqueças de que o homem nada mais
é, na face da Terra, do que um pobre proscrito. Sua maldade exilou-o das regiões de bem-aventurança. Se estás aqui,
carregando o pesado fardo de tuas dores, é porque - tu também - és um egresso
do paraíso ... "
Habhallad emudeceu por instantes. Fechou os
olhos e inclinou a cabeça para a frente. Assim permaneceu alguns segundos.
Depois, prosseguiu, voz pausada e meiga:
- "Ouvi tuas queixas, Afhir. Se teu amigo não te compreendeu, paciência;
não te revoltes contra ele. É mais
digno de tua piedade do que de tua reprovação. A tolerância bem usada é um bálsamo que multiplica as forças de quem a
utiliza. Cada amigo que trai outro amigo, é um ídolo que tomba, um vácuo
que se abre em nossa alma. Aproveita esse vácuo: enche-o de perdão. Assim tua
alma será salva... Quando vires uma noite escura, um céu sem estrelas, procura
a solidão, faze tua prece, ungindo-a, porém, com o mais puro sentimento de amor
de que sejas capaz. Um amigo que trai
outro amigo, podes crer, é uma estrela que se apaga no céu... Mas Alá é
magnânimo em toda a sua onipotência e onisciência, porque enfeita de esperanças
novas a alma dos crentes. Quando uma
ilusão fenece, sufocada pela ingratidão, a esperança renasce para curar as
chagas causadas pelo sofrimento..."
Afhir-al-Baghid soluçava baixinho, não mais
de dor, porém de comovido reconhecimento ao bem que lhe prodigalizava
Habhallad. Agarrou-lhe nervosamente a destra macilenta e, osculando-a com
indizível respeito, murmurou, ofegante:
- "Alá falou pela vossa boca, mestre!"
E silenciou de novo.
Então, erguendo-se, o muezim despediu Afhir
com estas últimas palavras de conforto:
- "Vai, filho, vai! Aprende a receber o sofrimento com serenidade e
paciência. Aprende a dominá-lo pela resignação consciente. E perdoa, perdoa
sempre, porque nenhum de nós sabe até onde vai a nossa culpa e a daqueles que
nos magoam. Alá é sábio e nada ocorre sem estar conforme às suas leis. Vai,
filho, vai! Não te esqueças, entretanto, do que te digo: aprende a receber o sofrimento com corajosa serenidade. Habitua-te a dominar a dor pelo cultivo da
resignação fortalecida com prece sincera. Sofre corajosamente, perdoa
humildemente, recolhido sempre no santuário do teu coração. Não te apartes do amigo infiel: ele precisa
mais de ti do que supões. Lembra-te do sândalo: quando recebe um golpe,
deixa escapar pela chaga aberta o mais suave perfume que Alá já derramou sobre
a Terra... Ora pelo amigo que te traiu: pede a Alá que o proteja, mas que não
te desampare a ti..."
Afhir-al-Baghíd tinha os olhos rasos de
pranto. Compreendeu que o amigo infiel é um desgraçado. Está sem guia, perdido
no meio de ideias fragmentadas que sua mente não pôde concatenar. Não deve
ficar ao abandono, mas assistido e orientado. Afhir deixou o minarete,
dirigindo-se vagarosamente para os lados do sul. Caminhou alguns passos,
estacou e, pela vez derradeira, voltou-se para olhar a mesquita distante,
semi-esbatida (de
tom ou colorido pálido)
na noite que já descia sobre a cidade velha. Ergueu o braço e passou a manga da
túnica amarfanhada nos olhos molhados.
E num suspiro extenso, recordou as palavras
de HahhaIlad:
- "O amigo infiel é um ídolo que tomba... um vácuo que se abre em nossa
alma ... Aproveita esse vácuo: enche-o de perdão... Perdoa, perdoa sempre... Um
amigo que trai outro amigo, podes crer, é uma estrela que se apaga no céu..."
E esta última frase foi-lhe bimbalhando (soando) nos ouvidos: - Uma estrela que se apaga no céu ... uma
estrela que se apaga ... uma estrela que se apaga..."
Nenhum comentário:
Postar um comentário