Kardecista,
roustainista ou espiritista?
Roberto Macedo
Reformador (FEB) Outubro 1943
Procuremos, preliminarmente, fixar os contornos da palavra
"kardecismo", determinando-lhe o verdadeiro conteúdo. Que é
"kardecismo"? Ao pé da letra, o partido de Kardec. Nesse sentido,
seremos "kardecistas", isto é, partidários religiosos
daquele que se tornou universalmente famoso sob o pseudônimo de Allan Kardec?
Impõe-se a resposta afirmativa. Todo espiritista ou espírita (para usarmos a
expressão que a lei do menor esforço veio tornar usual) é partidário de Kardec,
reconhece-o como codificador da doutrina e pioneiro da sua dialética. A própria
Federação Espírita Brasileira, tão serena em pleno tumulto, realiza, todas as
sextas-feiras, estudos públicos alternados sobre "O Livro dos Espíritos" e "O Livro dos Médiuns". A efígie de Kardec ilumina não só os papéis
oficiais da Federação,
como a capa do "Reformador", seu órgão representativo. Infelizmente,
porém, não é nesse sentido amplo, legitimado pela etimologia, que se costuma
empregar o vocábulo "kardecismo". Em ambiente mais teosofista do que
propriamente espírita já ouvi a definição seguinte: "Kardecismo é a
doutrina que não permite trabalhos práticos." Sem intuito de polêmica,
peço licença para discordar. Kardecismo não é doutrina especifica sobre
trabalhos práticos, restrita aos horizontes da mediunidade. É todo um sistema,
admiravelmente desdobrado através
de vários livros. Seus reflexos se estendem ás fronteiras da filosofia, da ciência,
da religião. Os que assim definem o kardecismo exageram o escrúpulo revelado
por Kardec, em relação aos trabalhos práticos. Exigir cuidados
especiais
não é condenar. Urge apresentar o argumento pelo avesso: tanto Kardec aceitou
os trabalhos práticos, que até procurou rodeá-los de requisitos assecuratórios
da sua utilidade moral. Demais, compreende-se bem que Kardec fosse avaro na
propaganda de intercâmbios particulares entre encarnados e desencarnados, numa
fase por assim dizer infantil do Espiritismo cristão, mal interpretado e mal
praticado ainda hoje, quando adulto.
Não menos prejudicial e inverídico é confundir kardecismo
com a tese da corporeidade material de Jesus.
Em primeiro lugar, tenho dúvidas de que Kardec houvesse
repelido formalmente a corporeidade fluídica de Jesus. Aceitando o fato como
possível, definiu-o como hipótese, parecendo inclinar-se pela sua inviabilidade
e inoportunidade, naquela época.
Em segundo lugar, dando de barato que Kardec houvesse
rejeitado in totum a corporeidade
fluídica, nem por isso estaríamos autorizados a simbolizar nesse acidente todo
o conjunto da sua obra. Suponhamos - para aventar um exemplo, perante o qual a
ninguém será licito subterfugir - que se tenha em vista definir
"getulismo"; ora, o Sr. Getúlio Vargas afirmou algures que o maior
poeta do Brasil é
Gonçalves Dias; logo, estaria autorizada a definição: "getulista é aquele
que admite Gonçalves Dias como o maior poeta do Brasil" . .. Não. A obra
do Sr. Getúlio Vargas é profunda demais para caber nesse juízo rasteiro; a
opinião sobre
Gonçalves Dias não passa de acidente topográfico no panorama do conjunto.
E, em terceiro lugar, lembremo-nos do caráter evolutivo do
Espiritismo, proclamada por Kardec, Roustaing e outros bandeirantes da ideia
nova. Kardec vacilou a respeito da fluidicidade, faz quase um século; outros
vacilam agora, impressionados com o arrojo aparente do fenômeno. Porque seremos
tolerantes para com estes e não para com o missionário, em cuja boa vontade
encontraram os Espíritos terreno propício à veiculação do Espiritismo? Se
Roustaing "sempre considerou a
Kardec o verdadeiro fundador da Doutrina Espírita." ("Os Quatro
Evangelhos", vol. I, pag. 79), se o mesmo Roustaing encontrou em "O
Livro dos Espíritos" - ''uma moral
pura, uma doutrina racional, de harmonia com o espírito e o progresso dos
tempos modernos" ("Os Quatro Evangelhos", vol. I. pag. 8), isso não empresta a Kardec o dom da infalibilidade ou da
imprescritibilidade.
Quanto aos discípulos de Roustaing e de Kardec, talvez nem
sempre tão cordatos entre si quanto deveriam, creio que se sentiram empolgados
por esse grandioso estado de consciência que é a posse da verdade, mesmo
contingente.
Criaturas
humanas... O Cristo perdoou a Pedro faltas mais graves e nem por ter sido
faltoso sentiu o apóstolo lhe minguarem as forças, no momento supremo, para a
gloriosa humilhação do madeiro. Tais discípulos voltarão - se já não voltaram
alguns - aliados naturais da evangelização, fraternalmente ligados pelo vínculo
superior do Espiritismo, quer dizer do Cristianismo moderno.
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