quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Kardecista, roustainista ou espiritista?




Kardecista, roustainista ou espiritista?
Roberto Macedo
Reformador (FEB) Outubro 1943


Procuremos, preliminarmente, fixar os contornos da palavra "kardecismo", determinando-lhe o verdadeiro conteúdo. Que é "kardecismo"? Ao pé da letra, o partido de Kardec. Nesse sentido, seremos "kardecistas", isto é, partidários religiosos daquele que se tornou universalmente famoso sob o pseudônimo de Allan Kardec? Impõe-se a resposta afirmativa. Todo espiritista ou espírita (para usarmos a expressão que a lei do menor esforço veio tornar usual) é partidário de Kardec, reconhece-o como codificador da doutrina e pioneiro da sua dialética. A própria Federação Espírita Brasileira, tão serena em pleno tumulto, realiza, todas as sextas-feiras, estudos públicos alternados sobre "O Livro dos Espíritos" e "O Livro dos Médiuns". A efígie de Kardec ilumina não só os papéis oficiais da Federação, como a capa do "Reformador", seu órgão representativo. Infelizmente, porém, não é nesse sentido amplo, legitimado pela etimologia, que se costuma empregar o vocábulo "kardecismo". Em ambiente mais teosofista do que propriamente espírita já ouvi a definição seguinte: "Kardecismo é a doutrina que não permite trabalhos práticos." Sem intuito de polêmica, peço licença para discordar. Kardecismo não é doutrina especifica sobre trabalhos práticos, restrita aos horizontes da mediunidade. É todo um sistema, admiravelmente desdobrado através de vários livros. Seus reflexos se estendem ás fronteiras da filosofia, da ciência, da religião. Os que assim definem o kardecismo exageram o escrúpulo revelado por Kardec, em relação aos trabalhos práticos. Exigir cuidados
especiais não é condenar. Urge apresentar o argumento pelo avesso: tanto Kardec aceitou os trabalhos práticos, que até procurou rodeá-los de requisitos assecuratórios da sua utilidade moral. Demais, compreende-se bem que Kardec fosse avaro na propaganda de intercâmbios particulares entre encarnados e desencarnados, numa fase por assim dizer infantil do Espiritismo cristão, mal interpretado e mal praticado ainda hoje, quando adulto.

Não menos prejudicial e inverídico é confundir kardecismo com a tese da corporeidade material de Jesus.

Em primeiro lugar, tenho dúvidas de que Kardec houvesse repelido formalmente a corporeidade fluídica de Jesus. Aceitando o fato como possível, definiu-o como hipótese, parecendo inclinar-se pela sua inviabilidade e inoportunidade, naquela época.

Em segundo lugar, dando de barato que Kardec houvesse rejeitado in totum a corporeidade fluídica, nem por isso estaríamos autorizados a simbolizar nesse acidente todo o conjunto da sua obra. Suponhamos - para aventar um exemplo, perante o qual a ninguém será licito subterfugir - que se tenha em vista definir "getulismo"; ora, o Sr. Getúlio Vargas afirmou algures que o maior poeta do Brasil é Gonçalves Dias; logo, estaria autorizada a definição: "getulista é aquele que admite Gonçalves Dias como o maior poeta do Brasil" . .. Não. A obra do Sr. Getúlio Vargas é profunda demais para caber nesse juízo rasteiro; a opinião sobre Gonçalves Dias não passa de acidente topográfico no panorama do conjunto.

E, em terceiro lugar, lembremo-nos do caráter evolutivo do Espiritismo, proclamada por Kardec, Roustaing e outros bandeirantes da ideia nova. Kardec vacilou a respeito da fluidicidade, faz quase um século; outros vacilam agora, impressionados com o arrojo aparente do fenômeno. Porque seremos tolerantes para com estes e não para com o missionário, em cuja boa vontade encontraram os Espíritos terreno propício à veiculação do Espiritismo? Se Roustaing "sempre considerou a Kardec o verdadeiro fundador da Doutrina Espírita." ("Os Quatro Evangelhos", vol. I, pag. 79), se o mesmo Roustaing encontrou em "O Livro dos Espíritos" - ''uma moral pura, uma doutrina racional, de harmonia com o espírito e o progresso dos tempos modernos" ("Os Quatro Evangelhos", vol. I. pag. 8), isso não empresta a Kardec o dom da infalibilidade ou da imprescritibilidade.

Quanto aos discípulos de Roustaing e de Kardec, talvez nem sempre tão cordatos entre si quanto deveriam, creio que se sentiram empolgados por esse grandioso estado de consciência que é a posse da verdade, mesmo contingente.


Criaturas humanas... O Cristo perdoou a Pedro faltas mais graves e nem por ter sido faltoso sentiu o apóstolo lhe minguarem as forças, no momento supremo, para a gloriosa humilhação do madeiro. Tais discípulos voltarão - se já não voltaram alguns - aliados naturais da evangelização, fraternalmente ligados pelo vínculo superior do Espiritismo, quer dizer do Cristianismo moderno. 

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