II.
Significação emblemática da Páscoa - Primórdios do Cristianismo - Organização
comunista da primeira geração cristã - Trajeto da Boa Nova, da Palestina a
Roma. - Heroicidade dos mártires cristãos.
Retrocedamos um pouco.
Refere um dos três evangelhos sinóticos
- o de Lucas - que, ao sentar-se o Senhor Jesus à mesa com os seus apóstolos,
para celebrarem juntos a cerimônia da Ceia pascoal, começou
por estas comovedoras expressões o seu discurso, em que se sente, como o exalar
de um perfume divino, toda a ternura que transbordava de seu amantíssimo
coração:
"Tenho desejado ansiosamente comer convosco
esta páscoa antes da minha paixão. Porque vos declaro que a não tornarei mais a
comer, até que ela se cumpra no reino de Deus."
Que alcance e que significação
teriam, no pensamento do Mestre, essas palavras, que envolvem, evidentemente,
uma promessa?
A páscoa dos judeus, como é sabido,
era celebrada em rememoração de sua retirada do Egito, notabilizada pela
travessia do Mar Vermelho a pé enxuto, rumo à Terra da Promissão,
denominada Canaã. Esse trânsito significava a libertação do cativeiro civil e,
tendo como decalque o episódio humano, valia por um símbolo. Símbolo cuja
significação espiritual corresponde à egressão não apenas de um povo, mas da humanidade,
por ele representada emblematicamente, das esferas do mal, que a aprisiona, e
sua laboriosa e acidentada ascensão às regiões da liberdade e da luz, isto é,
do bem, que é seu destino. Daí a sua celebração, menos como festa cívica da
nacionalidade proscrita e, enfim, dispersa e perdida para sempre em seu enquistamento
fragmentário no seio de todos os outros povos, do que como cerimônia religiosa,
e do máximo relevo.
Assim também a páscoa dos cristãos,
que a veio substituir e tende a cada vez mais universalizar-se. Como tantos
outros episódios e parábolas referidos no Evangelho, o gesto do Senhor Jesus, a
pretexto da magna solenidade anual do povo hebreu, reunindo em orno do ágape rememorativo
os apóstolos, para lhes transmitir suas derradeiras, inolvidáveis instruções,
envolveu, de par com o novo testemunho de amor que lhes queria dar, a intenção
de erigir para a posteridade o emblema coletivo da futura raça humana, redimida
pela aceitação e consequente prática de sua doutrina e assim congregada em
torno de sua excelsa figura, celebrando, pelos séculos em fora, o banquete da
fraternidade. Símbolo
hebraico, por então, que - afirmou - nunca mais tornaria a honrar com sua
presença em forma visível e humana, até que o símbolo cristão venha a exprimir-se
em realidade objetiva, sob a direção de seu Espirito, presente no reino de
Deus, a que se terá então, na Terra, convertido a humanidade.
Pouco importa que a extrema lentidão
com que, no sentido moral, se efetua o progresso humano, mesmo em consequência
dos embaraços obstinadamente suscitados pelas forças reacionárias do invisível,
autorize a previsão de que milênios hão de porventura ainda transcorrer, antes
que seja atingido tal desiderato. As palavras de Jesus, hauridas nos conselhos
do Altíssimo, "não passarão, ainda que passem céus e terra". Poderão
aquelas forças tenebrosas, na órbita de ação que lhes é permitida pelo Criador,
tolher, parcial e temporariamente, o surto da obra cristã em nosso mundo. Mas
não impedirão que a sua marcha, por natureza e por necessidade, acidentada, se
encaminhe à realização do plano evolutivo na Mente Divina traçado em relação à
Terra e sua humanidade. Mais ainda, as próprias manobras adversas, consoante a
lei do ritmo, a que obedecem os fenômenos da evolução e da vida no universo,
longe de constituírem irremovíveis obstáculos, vêm, sobretudo nos períodos de
transição que, por assinaladas perturbações, caracterizam o termo e a renovação
dos grandes ciclos históricos, a contribuir como poderosos estimulantes para
mais acentuado surto de progresso.
Vimos que a conjuração das trevas,
levando o Cristo a imolação na cruz, visou indubitavelmente aniquilar, ou pelo
menos reprimir o surto da doutrina, com a violenta supressão de seu excelso
Instituidor. Em lugar disso, porém, o que resultou do sacrifício do Filho de
Deus, que de resto Ele mesmo previra e antecipadamente aceitara como uma fatalidade
propícia à fecundação da Boa Nova, foi uma irresistível e deslumbrante eclosão
de fé naqueles mesmos que, apavorados e dispersos, na hora suprema da consumação do
inominável atentado, não tardaram em
reunir-se e organizar um plano de ação realizadora, tão depressa as sucessivas
aparições do Crucificado redivivo lhes transfundiram no ânimo, assim
retemperado, a radiosa convicção da Imortalidade, de que entraram a ser os
invictos arautos pelo mundo a fora.
A primeira delas verificou-se no próprio
dia da Ressurreição, segundo o testemunho do evangelista João, unicamente a
Maria Madalena, segundo Lucas, todavia, não somente às
piedosas mulheres que haviam, pela madrugada acorrido ao túmulo deserto, a
"buscar entre os mortos ao que vive", mas, na tarde desse mesmo dia,
a dois discípulos, que se encaminhavam para a aldeia de Emaús, os quais,
entretanto, só "ao partir do pão"
é que o reconheceram. Dualidade de narrativa que se não exclui mutuamente,
antes se completa e explica sem dificuldade pela posição dos respectivos
historiógrafos em face dos sucessos.
De todo modo, o que ressalta
evidente é que, desaparecido do sepulcro o corpo de Jesus e desse fato procurou
em todos os tempos a incredulidade obstinada tirar pretexto para forjar lendas
de subtração pelos apóstolos, sem lograr jamais indicar o sítio em que por último
teria sido, e ninguém sabe quando (1), inumado o Mestre
- mostrou-se este, por quarenta dias, aos discípulos maravilhados,
"falando-lhes do reino de Deus" e edificando-os com o testemunho vivo
da ressurreição. E tão positivo e substancialmente necessário se
impôs esse fato à consciência dos apóstolos, incorporando-se à tradição de seus
contemporâneos e transmitindo-se à de seus imediatos sucessores, como pedra
angular do novo credo, que Paulo, o grande convertido de Damasco e o mais ativo
organizador da Igreja Cristã, numa de suas epístolas aos Coríntios resolutamente
clama: "Se o Cristo não ressuscitou,
é vã a nossa pregação".
(1) Todas as objeções, com efeito, opostas ao
assombroso fato se dissipam ante a consideração de que ninguém mais que os
inimigos visíveis de Jesus tinha interesse em desmascarar o embuste - se
embuste houvera - do desaparecimento, seguido da ressurreição, do seu corpo, a
qual, associada às repetidas aparições, tão decisiva influência deveria
exercer, e realmente exerceu, na propagação da fé cristã. Apesar contudo da
insistência com que os apóstolos timbravam, nas suas prédicas, em afirmar a ressurreição
corporal do Mestre, nunca foram desmentidos positivamente por aqueles inimigos,
que, se o pudessem, não deixariam, entre os meios de combate e as perseguições
que lhes moviam, de incluir a comprovação negativa de tal fato. Não o lograram
fazer. Por que? Indubitavelmente porque o corpo glorioso com que o Cristo ressuscitado
se apresentou repetidamente aos discípulos e com que, por fim, "subiu ao céu", era o mesmo que
desaparecera do túmulo, sem jamais ser reencontrado, o mesmo que servira aos
fins do sua missão terrestre. De que natureza então era ele - ocorre agora
perguntar - para poder assim, após a "ascensão", desaparecer para
sempre, sem deixar vestígios, e remontar às regiões superiores, se "o que é corruptível não pode fruir a imortalidade"?
Os católicos e os filiados às
diferentes seitas denominadas cristãs, sustentando embora a divindade de Jesus,
do mesmo modo que certos crentes modernos, que a impugnam, mas aceitam o seu
Evangelho, uns e outros partidários de ter Ele tido um corpo humano comum,
parece não terem suficientemente meditado sobre a singularidade daquela ressurreição
"em carne e osso". Como, em tal caso, teria ela ocorrido e, com ela,
a "ascensão" posterior' Que espécie de corpo teria então revestido o
Cristo para o exercício de seu ministério no mundo e para que, em seguida,
pudesse ocorrer aquele duplo fato?
Essa
questão embaraçosa, suscitada num dos primeiros séculos cristãos e que deu
lugar ao Docetismo, foi renovada em
nossos dias, provocando novas controvérsias, que a seu tempo, todavia, terão
que dissipar-se com o restabelecimento de todas as coisas, em seu verdadeiro
sentido, relativas aos ensinamentos e à vida do Divino Mestre.
Mas não o foi, senão que, verdadeiro
aquele testemunho palpitante da Imortalidade, tornou-se ele o inamovível
fundamento sobre que veio a alicerçar-se a estrutura moral do novo
mundo, organizado sob o lábaro cristão, constituindo-se ao mesmo tempo o eixo
em torno do qual entrou a gravitar a atividade evangelizadora dos apóstolos, o
mais poderoso estímulo da intrepidez com que as sucessivas gerações cristãs
afrontavam as torturas e a morte física, trocando-a jubilosamente pela vida
imortal, em que tinham certeza de, por sua
vez, ressuscitar.
Recordemos alguns dos mais
significativos episódios dessa incomparável epopeia.
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