*
AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição – 1935
1b
Há quase dois milênios, recebeu a
Terra a visita do Plenipotenciário celeste, portador dessas virtudes redentoras.
Como agora - pois que os ciclos históricos se renovam, quase idênticos, a
intervalos regulares - a iminência de uma grande crise se desenhava para a
humanidade. Em vésperas de ruir o gigantesco Império Romano, alicerçado na
pilhagem, em que vinham por fim a culminar suas incursões e aventuras
guerreiras contra os outros povos, a civilização latina, desse modo transviada
de sua missão, depois de haver recolhido a herança de hegemonia helênica,
intelectual e artística, estaria condenada, com ele, a sucumbir poucos séculos
mais tarde, menos certamente ao ímpeto vingador das hostes bárbaras, que diluída
no aviltamento dos costumes e das instituições, se aquele crepúsculo do mundo
antigo não devesse, com o Cristianismo nascituro, suceder a aurora de uma
salvadora renovação.
Quando, pois, ainda atroava os ares
o passo das legiões romanas, levando por toda parte o signo de suas águias
vitoriosas, sobreveio o inesperado raiar desse novo dia. Dia definitivo
para a humanidade, posto que, ao começo, não somente ensombrado de nuvens que
por muito tempo, como ainda hoje, lhe haviam de toldar a limpidez e retardar a
plenitude, mas em condições, aparentemente, as menos expressivas de sua
magnitude e significação.
Que importância, com efeito, aos
olhos dos Césares, embriagados de triunfo, e aos do próprio povo, embrutecido
na ignorância e nas paixões, e que era, não obstante, o braço
executor
das violências planejadas pelas maiores forças políticas representativas do
mundo antigo, poderia revestir o nascimento do filho de um obscuro carpinteiro,
na mais humilde cidade da Judeia, nessa Palestina distante e escravizada.
E no entanto foi esse, que assinalou
o advento do Cristianismo, o fato culminante de toda a história humana, com
razão considerado o marco, inapagável e insubstituível, que a divide em duas
épocas perfeitamente definidas. Para traz ficavam a consagração da força, a
exploração do homem pelo homem, os privilégios de castas e de classes,
conferidos por toda parte a minorias insignificantes, em detrimento dos
direitos naturais de todos, o desprezo dos grandes e, conseguintemente, o ódio
dos pequenos, a ignorância geral, favorecendo o império das paixões inferiores,
como estimulante único das ações humanas, em uma palavra, treva nos corações e
treva nas inteligências, tendo como expressão inevitável desconhecimento e
indiferença pelo "amanhã", que há de fatalmente suceder ao breve dia
que representa uma existência aqui na Terra.
Com Jesus, e graças a Jesus, que
vinha fazer da sobrevivência e imortalidade da alma, isto é, da certeza de uma
vida futura a pedra angular de seus ensinamentos, o objetivo a que se deve
encaminhar a vida efêmera do homem, ia começar, no ponto de vista social, a era
da liberdade e da igualdade jurídica de todos, o primado do direito sobre a
força e, portanto, o império da Justiça, o estabelecimento da paz pelo
reconhecimento da fraternidade, baseada na paternidade universal de Deus, e, no
ponto de vista dos destinos eternos
que vinha revelar aos homens, era o reino do espírito que para estes devia
começar, pelo triunfo sobre a matéria e todas as suas seduções.
Para a realização inicial desse
admirável programa de reabilitação da nossa espécie, a que se descerravam tão
dilatados horizontes, contra o qual, todavia, por isso mesmo se haviam de
levantar, como o veremos no curso desta obra, todas as forças tenebrosas do
invisível, empenhadas em manter a humanidade escravizada ao seu domínio, não se
apresentou Jesus como um mero pregoeiro teórico, senão que, imprimindo as
verdades e aos preceitos, que o Pai o incumbira de lecionar aos homens, a
autoridade e a sanção do exemplo,
viveu um a um todos os seus ensinamentos nos atos de sua vida incomparável.
Neste, como, de resto, em todos os
sentidos, a sua figura, sobranceira às vicissitudes dos séculos, é única entre
as de todos os grandes Iniciados e Reformadores que, antes e depois d’Ele, têm
atuado no cenário terrestre.
Enquanto, por exemplo, o Buda (Sidarta
Gautama ou Çakya Muni) - sem dúvida excelso missionário, propulsor do mais
importante movimento de renovação religiosa, depois
dos Vedas, empreendido entre as populações da Índia, como da China e do Japão -
só aos 29 anos abandona o seu palácio real e as regalias de príncipe, que
desfrutava, para engolfar-se
no isolamento e na meditação, que precederam a sua jornada de proselitismo, e
esse outro eminente doutrinador, que foi Krishna, teria que, pela fatalidade de
suas circunstâncias pessoais, opor aos místicos arrazoados filosóficos, de que
se fez arauto, o contraste de sua condição de guerreiro e a fragilidade da poligamia,
sancionada embora pela
tolerância, em tal sentido, generalizada entre os orientais, o Cristo não somente
oferece ao mundo o testemunho de uma vida, de começo ao fim, absolutamente
imaculada, mas desde logo marca a originalidade e a coerência dessa vida com a
doutrina de que era Ele portador, elegendo para lugar de seu nascimento um estábulo
de animais. Escolha inconcebível, mas intencional da parte d'Aquele que, sempre
Espírito, presidiu a uma parte e prestou a outra parte dos sucessos,
relacionados com a sua investidura messiânica, o seu voluntário assentimento.
Desse modo começada no berço, a
apologia da pobreza - pois que o presépio de Belém é uma alegoria e um ensinamento
como expressão sintética de renúncia a todos os bens e opulências da terra, o
desapego, que semelhante escolha traduz, às coisas exteriores, consideradas
obstáculo à aquisição da riqueza moral interior, foi a primeira lição com que
Jesus entendeu conveniente edificar os homens. Lição igualmente de humildade,
que havia de ser, em todos os tempos, o inseparável característico do
verdadeiro cristão. Assim também o amor.
Por que motivo o Espírito perfeito,
que é o Cristo, no consenso unânime de quantos, através os séculos, têm
procurado contemplar de perto e entender a sua angélica figura -
exceção apenas feita de alguns de entes mentais que d'Ele têm,
irreverentemente, pretendido fazer um caso de psicologia mórbida - por que
motivo, perguntamos, teria o excelso Filho de Deus renunciado, temporariamente
embora, às esferas da luz eterna em que reside, para mergulhar nas trevas deste
mundo e entrar em contato direto com as misérias, enfermidades e paixões dos
que o habitam? - Se bem atentarmos em seu caráter, nas linhas estruturais de
sua missão divina, reconheceremos que o fez, não por necessidade ou interesse
próprio. Ele que jamais antepôs a um só de seus atos a menor sombra de
preocupação pessoal, mas unicamente por amor a esta pobre raça humana, falida e
estraviada, que, quanto mais sucumbe às tentações do espírito do mal, que aqui
impera, mais se recomenda à enternecida e misericordiosa piedade com que se tem
Ele proposto a redimir-nos. Redenção completa e universal, todavia, somente
quando um a um, na sucessão dos séculos, libertos da cegueira que nos obscurece
agora o entendimento e nos coloca à mercê daquelas tentações, nos houvermos
todos convertido, por uma adesão interior, sincera, inviolável e constante, à lei
de amor e de humildade, que é o angulo fundamental de todos os ensinamentos
evangélicos, do mesmo modo que foi o eixo em torno do qual girou toda a existência
de Jesus.
Humilde foi, portanto, o seu berço,
em intencional contraste com a sua inconfundível grandeza espiritual; acanhado
e pobre, humilde, portanto, o cenário em que desenvolveu
mais
tarde a sua ação evangelizadora; humildes as figuras de que se rodeou então,
recrutadas, em sua totalidade, nas classes mais obscuras da sociedade judaica,
para serem, durante o seu messianato, as urnas vivas encarregadas de recolher
os exemplos e as palavras de vida eterna que trazia aos homens, e depois de seu
regresso ao seio do Pai, que o enviara, os propagadores da Boa Nova que,
varando as fronteiras em todas as direções, abriria para o mundo a era da
verdadeira civilização, isto é, da civilização cristã, devesse embora
prolongar-se por dezenove séculos, a sua acidentada fase inicial.
Dentre os apóstolos, com efeito, aos
quais dirigiria mais tarde a significativa palavra de exaltação, advertindo-os:
“não fostes vós que me escolhestes a mim,
fui Eu que vos escolhi a vós", quatro - Pedro, André, Tiago e João -
eram rudes pescadores; um, Mateus, pertencia à odiada classe dos publicanos,
que o Mestre, em mais de uma ocasião, para confundir a arrogância dos que os
desprezavam, apresentaria, de par com os samaritanos, não menos odiados, como
paradigmas de fidelidade à lei divina, herdeiros legítimos do Reino; os
restantes eram, do mesmo modo, figuras plebeias, destituídas de toda
significação social.
E foi com esses elementos, na aparência
e segundo a cegueira do conceito humano, absolutamente negativos, que Jesus
empreendeu a obra gigantesca de transformar a face moral
do nosso mundo, começando por uma intrépida subversão dos consagrados valores
sociais e humanos, de que era expressão aquela mesma escolha dos apóstolos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário