Carta do Além
Antero
por Divaldo F. Franco
Reformador (Maio) 1962
Meu filho,
Perdoa-me voltar à tua consciência.
Continuo vivo e sei que na tua
memória estão impressos, a golpe de remorso implacável, os últimos dias do
nosso encontro, e, como tu, também eu não me olvido da nossa despedida.
Lembro-me bem: a dispneia
ultrajava-me o corpo vencido, quando te pedi a medicação calmante. Teu olhar,
porém, meu filho, quando me trazia o copo, disse-me tudo. Quis recuar; não
pude. A tua ansiedade parecia pedir-me que sorvesse o conteúdo do vasilhame em
que tuas mãos nervosas pingaram a dose fatal de arsênico. Essa ansiedade, que
não tenho conseguido esquecer, imprimiu na minha alma emoções desordenadas e,
no momento em que o veneno escorria pelo meu tubo digestivo e o suor vertia em
bagas pelo teu rosto, eu me revi moço, como se a aproximação da morte tivesse
vencido o tempo e eu recuasse aos primeiros dias do lar. Via-me a reter-te nos
meus braços vigorosos, após a partida da tua mãe para o mundo espiritual;
procurando ninar-te o sono leve. Lembrei-me das noites que passei debruçado
sobre o teu leito de criança, procurando acarinhar-te, esquecido de mim mesmo.
Via-te crescer, enquanto eu desenvolvia uma grande atividade para reunir as
moedas que iriam fazer a nossa felicidade no futuro, quando estivesses estuante
de mocidade e eu envelhecido. Recordei a educação primorosa que te dava, enquanto
as minhas mãos se calejavam no trabalho! Frequentavas a Faculdade de Medicina
e, nesse justo momento das lembranças, minha mente turbilhonou-se sob a força
incoercível da morte. Ainda pude concluir, antes do delíquio, que o filho que
eu ninara com
as minhas mãos assassinava-me para se apossar do cofre forte da nossa casa,
onde eu guardava as moedas e as cédulas que sempre foram tuas.
Não morri, meu filho. Não me
conseguiste matar. Rompeste somente as roupas velhas e cansadas que me pesavam,
que me vergastavam, porque, verdadeiramente, eu morrera muito antes, quando a
tua mãe partiu e não mais pude ser feliz... Já naquele tempo procurei
transfundir a minha vida na tua vida; o amor que a morte me roubara,
transferi-o para ti, em forma de confiança e alegria, de esperança e júbilo.
Porque
te precipitaste, meu filho?
Depois que os tecidos se desfizeram
e me descobri vivo, pus-me a examinar a própria situação e lembrei-me da
história da serpente que picara o peito que a amamentava. Fizeste o mesmo.
Assassinaste-me...
Acompanhei-te, a princípio, tomado
por um ódio que me requeimava mais do que o arsênico no estômago. Ódio que me
fazia enlouquecer, enquanto tuas mãos mergulhavam no dinheiro do meu suor,
vendendo as propriedades para gastares no lupanar, seduzido por infeliz mulher
que, por sua vez, era escrava de outra mulher desencarnada que te odiava e
odeia ainda, e a quem, em vida pregressa, destruíste o lar como agora me
destruíste o corpo.
Oh! meu filho! Não suporto mais
continuar com esta lembrança, revendo-me nas tuas mãos, impotente para reagir e
ouvindo a tua voz nervosa, a repetir: "beba meu pai, você vai
dormir."
Não, meu filho. Não dormi, pois o
pesadelo continua...
Vejo-te agora, sucumbindo
lentamente, dominado pela adversária do passado e utilizo-me deste Correio, por
falta de outro, para que a minha voz chegue aos ouvidos do teu coração.
Desperta, meu filho, antes que seja
tarde demais.
Já te perdoei a mão com que me
puniste em nome da Justiça indefectível... Também eu carregava crimes atrozes
de que, num estado de loucura, apressaste o resgate, ignorando que a Lei
Divina, oportunamente, se encarregaria de me justiçar.
- Libertei-me, mas te enrodilhaste
numa trama e não podemos prever quando o futuro te libertará.
Desperta, meu filho! Desperta e
vive!
De que vale a cultura numa
consciência culposa? Ainda não se passaram duas dezenas de anos, em que a
Humanidade presenciou o soçobro das suas mais nobres aquisições, na guerra das
civilizações super alfabetizadas, dirigidas pela ambição
que
se fez monstro de guerra, transformando homens em abutres, anulando o
patrimônio do saber, dizimando cidades, incendiando vilas, assassinando
mulheres, crianças e velhinhos indefesos dos povoados humildes, na ânsia
sanguinária da anarquia.
A cultura não representa tudo. Não
adianta o saber num caráter ultrajado. Abre os braços à Fé, volta a Jesus,
enquanto é tempo.
Eu sei que a minha voz chegará aos
teus ouvidos.
Pelo amor de Deus, arrepende-te. Mas
não te arrependas na aparência, e, sim, rompendo esse silêncio que te levará à
loucura, recuperando o tempo perdido e empregando os últimos dias da vida na
retificação da tua invigilância.
Filho do meu coração, revejo-te nas
minhas mãos, ainda pequenino, quando eu chorava a tua mãe ausente e, diante das
minhas lágrimas a caírem no teu rosto de anjo, indagavas, infantil: "estás
chorando, papai ?" Sim meu filho, continuo chorando. Estou chorando por
ti. Volta, pois. Volta, volta ao bem que eu quase não te soube ensinar.
Volta
a Jesus, e começa tudo de novo, outra vez, para a nossa felicidade.
O
teu
Antero
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