Será crime
a caridade?
A redação Reformador (FEB) Jan-Março 1943
Curai
os enfermos, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos, expeli os demônios: dai
de graça o que de graça recebestes”.
Mais tarde, nas últimas instruções
que dava aos seus discípulos, Jesus de novo afirmou: “Em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim, fará as
mesmas obras que eu faço e fará outras ainda maiores". (São João, caáp.
14. v. 12).
O fato é que os discípulos, pondo-se
a caminho, pregavam os ensinos do Cristo e confirmavam a sua pregação com as
curas que produziam, curando toda classe de enfermidades, impondo as mãos sobre
os doentes.
E não se diga que Jesus tenha
escolhido os seus discípulos entre a elite da sociedade israelita; eram eles
homens iletrados, pescadores que ganhavam a sua vida pescando e vendendo o
produto do seu labor.
Além dos doze, Jesus escolheu outros
70 entre a turba que o seguia atônita e mandou-os dois a dois e ordenou que
fizessem o mesmo que os 12 e quando eles voltaram, muito alegres, disseram: “Senhor, até os mesmos demônios se nos
submetem em virtude do Teu nome”.
Jesus lhes respondeu: “Eis aí vos dei eu poder de pisardes as
serpentes, e os escorpiões, e toda a força do inimigo; e nada vos fará dano. E
contudo, o sujeitarem-se vos os espíritos não é de que vós vos deveis alegrar,
mas sim deveis alegrar-vos de que os vossos nomes estão escritos nos céus”.
E exultando disse: “Graças Te dou, Pai,
Senhor do Céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e
entendidos, e as revelaste aos pequeninos”. (São Lucas, cap. 10).
Ainda disse Jesus, momentos antes de
sua ascensão: “E estes sinais seguirão
aos que crerem em mim: Expulsarão os demônios em meu nome; porão as mãos sobre
os enfermos e os sararão". (São Marcos, cap. 16, v. 17 e 18).
Há quase 80 anos, desde a introdução
do Espiritismo no Brasil, tem-se pregado o Evangelho em espirito e verdade e
confirmado a pregação com as curas de milhões de enfermos, dando-se de graça
tanto as receitas, como os remédios, e a mão que traça estas linhas, por graça de
Jesus, tem dado vista a cegos e curado milhares e milhares de doentes com a
imposição das mãos, seguindo o preceito de Jesus. Milhares de outros têm feito
o mesmo em todo o Brasil.
Não sei com que intuito se tem
procurado, e procura-se cercear a prática dessa caridade cristã que a tantas criaturas
tem felicitado em todo o território brasileiro.
O Sr.
presidente da República que tão sábias providencias tem sabido tomar para
favorecer os desprotegidos da sorte, os necessitados de socorro, a classe que
trabalha, que luta para criar a sua prole, certamente não teve ainda ocasião de
se inteirar do que se passa com referência à religião espirita e ás
dificuldades que se antepõem â sua livre prática.
Apelamos, pois, para S. Excia., para
que nos seja dada a mesma liberdade de que gozam todas as outras religiões no
nosso país. Que nos seja concedida a liberdade de “dar de graça o que de graça,
e por acréscimo, Nosso Senhor Jesus Cristo nos outorga”.
Inserto no “Correio da Manhã” de 6
do corrente, como objeto da "Crônica Espírita" que esse diário
costuma publicar aos domingos, o artigo que vimos de transcrever é da lavra do
velho trabalhador da Seara de N. S. Jesus Cristo, Fred Fígner, que, há muitas
dezenas de anos, como médium curador, tem posto os dons mediúnicos que o Senhor
lhe outorgou ao serviço do bem, curando um sem número de irmãos seus, presidiários,
como ele, da carne, aliviando os sofrimentos de inúmeros outros e iluminando a
muitos que, já evadidos dessa prisão, ainda escravizados se conservam ao mal,
que é filho da ignorância e do erro, sempre fiel, o caridoso obreiro, ao
preceito evangélico que manda se dê de graça o que de graça é recebido da munificência
do Pai celestial.
Assim, a frase interrogativa que ele
tomou para epígrafe do seu articulado não significa, nem poderia significar, é
bem de ver-se, que no seu espírito paire qualquer dúvida sobre a legitimidade
da prática da caridade cristã, sob todos os seus aspectos. Fora absurdo supô-lo,
por um instante sequer, pois ninguém, melhor do que ele, sabe quão profunda e
absolutamente verdadeira é a sentença que serve de lema à Doutrina Espirita,
estabelecendo que ela é a mesma doutrina do Crucificado, ou do puro
Cristianismo. O que a sua interrogação exprime, legitimando-se plenamente, é
antes um brado de angústia da sua alma de crente sincero, angústia de que também
a nossa participa, diante de circunstâncias e conjunturas que somente se
justificariam, ou, pelo menos, explicariam, se de alguma forma se pudesse
capitular de delituoso o exercício da caridade.
Entretanto, por muito que repugne à
razão e à consciência desanuviadas admiti-lo, de tal natureza se tornou a
mentalidade geral dos homens, no seio das sociedades ditas civilizadas e
qualificadas de cristãs, que unicamente pela afirmativa pareceria possível
responder-se à pergunta com que o nosso estimado companheiro de labor cristão
encimou o seu artigo. Dir-se-ia, com efeito, que, por se haver tornado
substancialmente cética e materialista entramada exclusivamente de egoísmo, de
orgulho, de vaidade, de superlativa presunção, aquela mentalidade acabou, como
aliás o estão revelando os fatos que há três anos se desenrolam em quase toda a
superfície do planeta, por escravizar inteiramente as almas aos interesses mais
subalternos e às ambições mais grosseiras, a uma cupidez tal, que as desvaira e
cega para a visão do que quer que não esteja no âmbito da mais sórdida
materialidade.
Ora, a caridade é filha primogênita
do amor, sentimento de ordem puramente espiritual, composto de devotamento, de
desinteresse, de abnegação, de renúncia, numa palavra: de altruísmo Integral e,
assim sendo, desde que sentimentos opostos ao amor são os que dominam o coração
do homem a verdadeira caridade deixa de ser compreendida o termo continua de
uso corrente, mas com uma significação totalmente abastardada, pois que a caridade
passou a consistir em dar esmolas e em fazer donativos mais ou menos vultosos, com
maior ou menor ostentação, sempre de modo a granjear para a vaidade o prêmio
que esta vive a buscar ansiosamente: os elogios, os louvores mundanos, as honras
da benemerência terrena. Ninguém mais portanto, entende, nem pode entender que
a caridade seja qual a definiu o Apóstolo Paulo, dizendo, no capítulo 13 da sua
Primeira Epístola aos Coríntios:
Dado Isso, chega-se, de dedução em
dedução, à conclusão lógica de que exercer a caridade, como a exercia Jesus,
cuja vida foi toda ela um ato de caridade, e mandava que os seus seguidores de
então e de todos os tempos a praticassem, é tão somente exercitar o curandeirismo,
donde o corolário tremendo, mas irrecusável, de que o Cristo de Deus, o Messias
prometido e mandado ao mundo, foi apenas o mais eminente curandeiro que a Terra
já conheceu, não sendo também outra coisa os seus apóstolos, os seus discípulos
e todos os cristãos primitivos, cuja fé e humildade lhes permitiam fazer o que
os apóstolos e discípulos faziam.
É possível e provável, quase certo
mesmo, que nos lembrem, ou apresentem, como objeção ao que vimos de dizer, a
divindade de Jesus, divindade que não só lhe facultava operar a série imensa
dos “milagres” que produziu, como outorgar aos seus escolhidos a capacidade de
igualmente os operar. Não colhe, todavia, a objeção.
Em primeiro lugar, a sua divinização foi obra de cunho
meramente humano, legitimada, até certo ponto, impossibilidade em que se
encontravam os homens, devido ao enormíssimo atraso das inteligências de
apreenderem e compreenderem as causas determinantes dos efeitos que observavam.
Tais efeitos então tiveram que ser considerados “milagres”; como só uma
divindade poderia realizar coisas que, pelo seu aspecto de prodígios extraordinários
pareciam inteiramente fora para sempre da alçada das criaturas, a deificação
daquele que as realizava em tão larga escala e só pelo poder da sua vontade foi
a consequência natural. Progredindo porém a inteligência do homem, por virtude
da lei universal da evolução, semelhante deificação perdeu a sua razão de ser e
se acha hoje abolida completamente para os que têm olhos de ver e ouvidas de
ouvir pela compreensão em espírito e verdade, graças ao advento do Consolador
prometido, dos Evangelhos, onde não há uma palavra do Cristo de Deus,
autorizando a divindade que lhe atribuíram; onde, ao contrário, superabundam,
conforme se acha demonstrado, à saciedade, em Allan Kardec e em Roustaing, as
com que Ele antecipadamente infirmou, privando-a de qualquer fundamento
durável, a que a sua presciência lhe mostrava de antemão que viriam a
atribuir-lhe, como efetivamente aconteceu.
Em segundo lugar, tanto não era na
qualidade de Deus que Ele praticava a caridade, como costumava praticá-la, com
as características que mais tarde Paulo, por Ele inspirado, lhe assinaria, que
declarou aos que lhe ouviam as prédicas: fareis as obras que eu faço e outras
ainda maiores, dirigindo-se, não somente aos discípulos ou aos que no momento o
rodeavam, mas aos que então e de futuro guardassem a sua palavra, isto é, lhe
seguissem os ensinamentos, que Ele próprio resumira num mandamento único, o do
amai a Deus sobre todas na coisas, amando ao próximo como a vós mesmos.
O que acabamos de expender basta, parece-nos, para
corroborar o que disse o irmão e amigo autor do artigo que nos moveu a traçar
estas linhas e para lhe testificar a nossa solidariedade no doloroso espanto
que o induziu a formular a interrogação com que intitulou o seu escrito.
Entretanto, convém atendamos ainda a uma, pelo menos, das contestações que o
espírito de seita não se furtará a contrapor-nos. Fá-loemos, contudo, de outra
vez, para não alongarmos demasiado estas observações que, apesar de sumárias,
já alcançaram excessiva longura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário